entrevista

O problema da gestão

08 de abril de 2024

Luiz Carlos Bresser-Pereira tem um diagnóstico — e que persiste há três décadas: o problema de fundo da economia brasileira está em uma crise fiscal do Estado que, à medida que se aprofunda, limita a capacidade de investimento público do País. Se a solução não é fácil nem rápida, há alguns instrumentos que podem ser utilizados para atenuá-lo, como uma reforma do aparelho do Estado, por exemplo, que foi desenhada por ele quando encabeçou o Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado (MARE), a partir de 1995. Até hoje, o projeto, batizado de “reforma gerencial”, serve como referência para moldar os horizontes de uma máquina estatal mais eficiente sem, ao mesmo tempo, deixar de prezar pela competência dos quadros. Um dos economistas brasileiros mais relevantes, ele foi ministro da Fazenda durante o governo de José Sarney (1987), além de liderar o MARE em 1995 e passar alguns meses na Ciência e Tecnologia, em 1999 – ambos a convite do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Hoje, ele segue lecionando na Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP), onde é professor desde o final da década de 1950. 

Q
Quando assumiu o MARE, em 1995, saiu um artigo de sua autoria em uma revista científica dizendo que tudo o que tinha acontecido no Brasil e na América Latina naqueles 15 anos anteriores fora resultado de “crises dos Estados”. Elas permanecem até hoje?

Sim. Por volta de 1982, eu percebi — e nos sete meses em que estive no Ministério da Fazenda ficou ainda mais claro para mim — como o Estado brasileiro tinha perdido sua capacidade de poupança pública, considerando isso como o que se arrecada menos o que se gasta em consumo (despesas com pessoal e com materiais necessários para ele trabalhar). Nos anos 1970, essa poupança era algo em torno de 5% do PIB. Teve um ano que chegou a 7%. De repente, por uma série de fatores, isso mudou. O governo militar se endividou absurdamente no exterior utilizando as empresas estatais, que tinham crédito e davam lucro. Elas eram uma grande fonte de poupança. Os militares também se valeram delas para controlar a inflação, segurando os preços delas. Essas estatais não chegaram a quebrar, mas os lucros foram todos embora. A consequência foi que a poupança pública brasileira caiu violentamente. Houve também um abuso da previdência – que continua acontecendo mesmo com todas as reformas já feitas. O resultado disso tudo é que, de uma poupança pública de 5% do PIB nós passamos para despoupança de 2%. Foi trágico para o investimento público.

O investimento também é uma questão até hoje?

Sim. Inclusive, eu li hoje no jornal uma reportagem mostrando como os investimentos públicos em todos os níveis de governo seriam muito mais altos se eles tivessem conservado os patamares anteriores da poupança pública. Mas apenas alguns conseguiram organizar as finanças e ter algo do tipo agora. Naquela época, eu entendi que era necessária uma reforma. O curioso é que eu não me dediquei ali a fazer uma reforma do Estado, porque isso se faz mudando a Constituição — o que havia acontecido apenas oito anos antes — ou reestruturando a as finanças públicas, e eu não tinha poder sobre nenhuma delas. O que dava para fazer era uma reforma do aparelho do Estado.

Como foi isso?

Nós fizemos um plano diretor, desenvolvemos toda uma teoria de como seria a reforma e, então, demos início a ela. Está sendo feita até hoje, mas às vezes fica esquecida. Tem ministros, até atuais, por exemplo, que a ignora, mas ela foi ganhando prestígio em diferentes setores da administração pública brasileira – muitos que, no começo, reagiram até de forma contrária. Foi só depois que eles perceberam que o projeto prestigiava o trabalho deles e que meu interesse era valorizar os servidores muito competentes. 

Naquele e mesmo artigo, o senhor aponta como a Constituição de 1988 resolveu uma série de demandas que vinham do regime militar, mas acabou tornando o Estado mais burocrático. Qual é a leitura que o senhor faz hoje disso?

Houve progressos. Em termos de pessoal e de gestão pública, o Estado melhorou muito. Houve um tempo em que havia muita gente desprovida de condições. Mas não só: as organizações sociais (OSs), que foi uma das iniciativas mais interessantes daquela reforma, se mostraram um grande sucesso, mesmo que algumas delas não tenham dado certo ou que acabaram usadas apenas para vantagens pessoais. Ainda assim, tornaram o Estado mais eficiente. Mas há muita coisa a ser feita, e não vejo nada nesse sentido nesse governo. Ele vai muito bem em vários aspectos, mas não na área da administração pública.

Voltando à pergunta anterior, porque a Constituição tornou o Estado mais burocrático, como o senhor dizia naquele texto?

A Constituição foi ótima porque veio de baixo, não imposta por um grupo de técnicos. Existia ali uma reação contra os militares que, liderados pelo [ex-deputado federal] Roberto Campos, fizeram uma reforma importante do Estado em 1967 dentro do chamado Decreto-lei 200, criando as fundações públicas e várias outras instituições. Quando foram derrotados, na transição de 1985 e, depois, na Constituinte, aquela tentativa de modernização do Estado — que pode ser lida como uma pré-reforma à minha — passou a ser vista como errada. O certo era copiar a ENA [École Nationale d’Administration], da França. Se pensava em voltar a um Estado absolutamente centralizado, burocrático, fechado, uma coisa que nem o Estado francês era tanto mais. Ao mesmo tempo, alguns servidores públicos aproveitaram esse clima para conseguir privilégios. Uma coisa impressionante daquela época foi o Regime Jurídico Único. Quando fui ministro, tive um secretário chamado Luiz Carlos Capela que pegou aquela lei, consultou advogados – ele também era – e, imbuído de espírito público, propôs duas medidas provisórias para acabar com privilégios. Foi curiosíssimo que não houve nenhuma reação, de tão escandalosa que a coisa era.  

Mas eles permaneceram…

Não acabou porque o sistema da Previdência não acabou… Eu tentei limitar o teto salarial da melhor forma possível. Fui falar com o [ex-procurador-geral da República, José Paulo] Sepúlveda Pertence e ele concordou com tudo, mas depois o próprio Superior Tribunal Federal rompeu, permitindo os penduricalhos. É uma luta difícil.

O senhor costuma fazer uma divisão conceitual de modelos de Estado quase em uma ordem cronológica: o patrimonialista, o burocrático e o gerencial. Dá para dizer que eles coexistem no caso brasileiro?

Patrimonialismo tem dois sentidos, e o que se dá hoje é para descrever pura corrupção. Não é o caso do Estado patrimonialista do [antigo rei francês] Luís XIV ou do [antigo imperador português] D. João VI. Neles, não havia clareza do que era patrimônio público e do que era privado. O monarca podia vender até cartórios e, com isso, obter receitas para o Estado. Eram as regras do jogo. Isso acabou. Em meados do século XIX, países como a França e a Alemanha fizeram reformas burocráticas – brilhantemente analisadas pelo [sociólogo alemão] Max Weber no começo do século 20. Já a reforma gerencial tem data e lugar: a Inglaterra, em 1987. No Brasil, ela inclusive chegou rapidamente, já em 1995. Certamente fomos pioneiros no Sul global. É claro que a resistência burocrática ainda é muito forte no nosso país, mas o patrimonialismo que permanece é mera corrupção.

Em que sentido?

Você vê as emendas parlamentares? É um escândalo. Dá para dizer que isso é Estado patrimonialista, mas, para mim, é apenas corrupção. Trata-se de uma captura do patrimônio público. Quando eu estava no MARE, fiz uma conferência no Largo do São Francisco, na USP, discutindo a emergência dos direitos republicanos. Depois isso até foi publicado. Eu tentava avançar na classificação de direitos do [sociólogo britânico Thomas] Marshall. Em 1950, ele publicou um ensaio maravilhoso apontando como os direitos civis foram os primeiros a surgir, no começo do século XIX, depois, no final daquele século, vieram os direitos políticos, como o sufrágio universal, e, finalmente, a partir da Segunda Guerra Mundial, apareceram os direitos sociais. Então, eu defendia que naquele final do século XX estavam emergindo os direitos republicanos, como eu resolvi chamá-los.

E o que são eles?

É o direito de cada cidadão que a coisa pública seja utilizada apenas para fins públicos. Você pode dizer que isso é óbvio, e que tudo fora disso é só corrupção, mas não é bem verdade, porque há uma série capturas do patrimônio público que são legalizadas. As emendas parlamentares são um exemplo claro disso. Os salários e, especialmente as aposentadorias dos servidores, é outro. Os juros que o Estado paga, a mesma coisa: é uma captura pelos rentistas e financistas. É por isso que uma reforma mais ampla precisa ver o Estado como uma caixa de redistribuição de riqueza, cuja lógica seria que ele fizesse isso em favor dos mais pobres e das atividades mais dinâmicas da economia. Não é o que acontece porque, no Brasil, a lógica é o poder que cada um tem para conseguir agarrar o “seu”. Aí está a importância da democracia, da vigilância da imprensa, dos próprios servidores, como o Tribunal de Contas da União (TCU).

Quais eram os desafios à implementação daquela reforma gerencial que o senhor propôs? E quais são eles hoje?

Na gestão pública, eu acho que as universidades deveriam ser organizações sociais. Para que isso acontecesse era necessária uma lei especial para elas. A mesma coisa para hospitais públicos federais. Nada foi feito em relação a isso, e eu tentei muito naquela época. A nível federal, o que deu certo foram os centros de pesquisa, organizações sociais que hoje servem de modelo de eficiência. Mas falta muita coisa.

O senhor criticou bastante o concurso público unificado que o governo está organizando.

É uma coisa absurda. Primeiro que não se abre tanta vaga de uma única vez. Em segundo lugar, pegando os cargos de ensino superior voltados à gestão pública, a previsão é de contratar 900 servidores. Com o resto do quadro, significa que 1.300 pessoas que vão entrar na máquina em um único dia. Eu tinha uma fórmula para calcular quantos servidores deveriam ser chamados em cada concurso: pegava o total de vagas disponíveis em cada carreira e dividia pelo tempo médio dos funcionários na ativa. Vamos supor, hoje, que sejam 1.200 postos de trabalho para uma carreira média de 30 anos. Então, é só fazer essa conta e ver que são precisos 40 gestores para agora. Esse cálculo funciona considerando a necessidade de fazer concursos rigorosamente todo ano. Se for feita dessa forma, o Estado terá gestores de todas as idades ao longo desse período. Alguém até pode falar que há um déficit de funcionários na administração pública, mas daí basta multiplica essa conta em duas ou três vezes, não mais do que isso. Eu já cheguei a multiplicar por 3. Por aí você vê como esse concurso unificado é uma loucura.

Qual será o resultado dele?

Um monte de pessoas que, de repente, não vão saber como treinar e não serão aproveitadas. Mas é uma gente que não sabe nada de administração pública. A ministra que está lá [Esther Dweck, da pasta da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos] é economista, mas…

Qual é a relação entre a reforma do Estado e a crise econômica dos últimos anos, que muita gente chama de “década perdida”?

A reforma [gerencial] tornou o Estado melhor e, por isso, o deveria ter ajudado a crescer. Mas a crise econômica começou realmente em 2013, no terceiro ano do governo Dilma Rousseff, quando ela perdeu o controle da economia. Dali em diante houve a crise financeira em 2014, com muitas empresas quebrando e estados ficando em situações muito difíceis. Veio o tratamento neoliberal com o [ex-presidente Michel] Temer, que não resolveu nada, depois um outro tratamento neoliberal radical, louco, absurdo, sem nome, que foi o governo [do ex-presidente Jair] Bolsonaro – uma coisa inaceitável em qualquer país do mundo – e, agora, há um ano, o Lula, que claramente é uma reconstrução dos problemas que começaram com a própria Dilma e terminaram no Bolsonaro. Eu vejo que foi por isso que a economia brasileira não caminhou, e não pela reforma do Estado. Na verdade, ela foi prejudicada por isso. 

Qual é a sua análise sobre a conjuntura atual?

Nós temos dois males muito graves, e que não são exclusivos do Brasil. Um é o neoliberalismo. Acabei de escrever um livro sobre isso que, traduzindo para o português, se chama “A Ascensão e Queda do Capitalismo Neoliberal Financeiro Rentista”. Vai sair pela [editora britânica] Oxford University Press. Ele está morrendo, mas fez um mal muito grande para os países. Devido a esse fracasso, surgiu um populismo de extrema-direita cujo grande representante é o [ex-presidente dos EUA, Donald] Trump, e cujo pior representante de todos foi o Bolsonaro. O Trump é “fichinha” perto dele. Agora tem o [Javier] Milei na Argentina. É um desastre. Os EUA, que continuam sendo o país mais poderoso do mundo, perdeu muito ao longo desses anos por causa do neoliberalismo, enquanto a China foi a grande beneficiária da globalização. 

E o Brasil?

Nós temos que dar nossa virada. Ainda não conseguimos. 

Há algumas experiências estaduais de reformas, como no Espírito Santo, no Rio Grande do Sul e, mais recentemente, em São Paulo. Qual é a avaliação do senhor sobre elas?

A reforma que eu conheço é a de Pernambuco, que foi muito boa. O governo do Ceará é bem governado há muito tempo. No Rio Grande do Sul e em São Paulo não tenho notícias. Muitas vezes se fala em reforma do Estado, mas não necessariamente significa mudanças na gestão pública ou no aparelho do Estado, mas apenas uma reforma para redução de despesas. Isso é outra coisa: é uma reforma fiscal, onde se localiza uma parte do problema dos gastos estatais. Eu diria até que é uma parte estritamente econômica. A reforma que foi proposta pelo Temer era justamente isso: uma tentativa de reduzir os benefícios dos servidores e, com isso, cortar despesas. Nesse sentido, era ela boa.

A principal discussão econômica hoje é sobre a questão fiscal. Mas também era nos anos 1990. Ela está acontecendo nos mesmos termos?

São diferentes. Havia uma redundância na forma como eu chamava aquilo à época, de falar em crise fiscal do Estado, mas queria salientar o fenômeno da queda da poupança pública e da decorrente retração do investimento. Agora existe um debate entre economistas neoliberais, ortodoxos neoliberais, e economistas progressistas, desenvolvimentistas, em que os primeiros só falam em déficit público. Eles querem acabar de todas as maneiras possíveis e imagináveis com ele – embora apoiem esses juros escandalosos que estão aí e os deputados apoiados por eles, o próprio Partido Liberal (PL), façam essa captura do patrimônio público. Os progressistas, por sua vez, dizem que é preciso um ajuste fiscal. Tem uns keynesianos vulgares que querem fazer despesa pública de qualquer jeito, mas bons economistas sabem que só se entra em déficit público quando é uma política contracíclica. Foi uma grande contribuição de [economista britânico John] Keynes: se a economia está entrando em recessão, é preciso temporariamente ter uma despesa pública maior. Um déficit moderado é compatível com um crescimento satisfatório. Tudo isso para dizer que não é preciso ter déficit zero. Nenhum país do mundo tem isso – mesmo os mais ricos. 

Há um problema na própria discussão, então?

Ela é de curto prazo. Ninguém está disposto a retomar a questão de como recuperar a poupança, que é muito mais complicado. Daí precisa de uma reforma do Estado, de emendas em relação à taxa de juros, ao câmbio etc. Uma coisa terrível para um país, muito pior do que déficit público, é déficit de conta corrente, que o Brasil tem sistematicamente de 2% a 3% do PIB. Daí vem um boom de exportações e isso acaba. A taxa de câmbio fica apreciada e tira competitividade das empresas nacionais industriais. As commodities não têm esse problema, porque são elas que determinam a taxa de câmbio e, portanto, essa valorização é sempre positiva para elas.

A crise fiscal do Estado permanece, portanto?

Sim, porque a poupança pública continua negativa e o investimento público segue muito baixo. E quando o investimento público é baixo, o privado também é. O que os neoliberais dizem, que o investimento público tira espaço do privado, é falso. Na verdade, o investimento público cria espaço para o privado.

A ENTREVISTA COM LUIZ CARLOS BRESSER-PEREIRA FAZ PARTE DA EDIÇÃO #480 IMPRESSA DA REVISTA PB. PARA CONTINUAR LENDO, ACESSE A VERSÃO DIGITAL, DISPONÍVEL NAS PLATAFORMAS BANCAH E REVISTARIAS.

CONFIRA TAMBÉM A ENTREVISTA EM VÍDEO NO CANAL UM BRASIL

Vinícius Mendes CANAL UM BRASIL
Vinícius Mendes CANAL UM BRASIL
leia também