Passou-se somente um mês, mas a sensação é que o terceiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva à frente do Brasil já começou há muito mais tempo. Parte disso se deve, claro, às negociações durante o período de transição – logo após o segundo turno da eleição. É fato também que, do primeiro dia de janeiro até agora, o governo já atravessou episódios que dariam conta de um ano inteiro.
Primeiro, foram as invasões golpistas às sedes dos poderes em Brasília, no domingo seguinte à posse. Logo após, uma crise institucional com o governo do Distrito Federal (DF) – o ex-ministro da Justiça, Anderson Torres, que ocupava o cargo de secretário de Segurança Pública do DF, foi preso preventivamente acusado de omissão – e com as Forças Armadas. Há uma semana, o presidente trocou o comando do Exército, também motivado pelos episódios de 8 de janeiro e, desde então, vem demitindo diariamente militares que estavam lotados em cargos do Executivo.
Em meio a isso, o presidente conseguiu desviar holofotes à situação grave dos ianomâmis, em Roraima, e viajou ao Canal da Prata para restabelecer a relação com a Argentina e negociar o futuro do Mercosul com o presidente do Uruguai, Luis Lacalle Pou, que tem discutido um acordo tarifário com a China para além do bloco continental.
Para a cientista política Graziella Testa, professora da Escola de Políticas Públicas e Governo da Fundação Getulio Vargas (FGV-EPPG), este período intenso descortina relevantes sinalizações do que será o governo Lula. Para além do controle da agenda pública, ele ainda conseguiu iniciar discussões importantes, como a da Reforma Tributária, que “aponta para um desejo de montar um conjunto normativo-fiscal sustentável e justo”, destaca.
Graziella, no entanto, vê desafios grandes pela frente, como a relação tumultuada com os militares e a construção de governabilidade com o Congresso. Daqui a alguns dias, Arthur Lira deve se reeleger para a presidência da Câmara, com o apoio de Lula. “Ele fez uma leitura (correta) da dificuldade que enfrentará no Legislativo”, afirma a cientista política, em entrevista à Problemas Brasileiros. Acompanhe.
É um conjunto de sinalizações. Um deles é a capacidade em manter o controle da agenda. Havia uma expectativa de que o bolsonarismo, com suas estratégias de comunicação, conseguisse dominar a circulação das narrativas, mas isso não aconteceu. Ao contrário: a relação do bolsonarismo com os episódios do 8 de janeiro foi um facilitador para este início de governo – que poderia ter sido mais difícil.
Por dois motivos: o primeiro é que metade da população não o escolheu na eleição. Muita gente não o apoia. O segundo é um Congresso consideravelmente mais à direita do que o partido do presidente. É por isso que o domínio da agenda pública é algo a ser destacado. Aliás, há outra sinalização importante: sobre a relação do Brasil com outros países, tanto em arenas multilaterais quanto nas visitas como as que Lula fez à Argentina e ao Uruguai nos últimos dias. Estas mostram um primeiro esforço de uma reinserção do Estado brasileiro no contexto internacional. Ainda citaria sinais ligados a questões do futuro do País.
Lula já falou bastante da Reforma Tributária e montou uma equipe com background pesado na formulação dela. É uma boa sinalização, porque aponta para um desejo de montar um conjunto normativo-fiscal sustentável e justo. A discussão sobre como o Estado se financia e onde gasta os recursos públicos seria central de qualquer jeito, mas existia um temor sobre o posicionamento de Lula quanto ao tema. A gente sabe que existem vários Lulas, e como não estava muito claro como ele se colocaria no debate, estes primeiros movimentos são positivos. É evidente que, em um mês, nada é possível de se concretizar. São sinalizações apenas, mas compatíveis com os elementos que fizeram parte da campanha eleitoral, confrontando aqueles que preferem que Jair Bolsonaro tivesse sido reeleito.
A relação com os militares é um tema muito delicado e difícil de ser trabalhado pelo governo. Eles não são servidores públicos sem posicionamento político, e, pensando nos membros das Forças Armadas, há o agravamento no fato de existir uma formação única deles com um direcionamento bem claro. O que não pode é este agir político passar de limites razoáveis. No caso de agora, estamos falando tanto da cadeia de comando dos militares quanto do que acontece dali para baixo. Construir a possibilidade de atuar em conjunto passa, talvez, por trabalhar políticas públicas que eles historicamente abraçaram, como o acolhimento de migrantes ou o combate ao garimpo ilegal. Contudo, de fato, trabalhar ao lado das Forças Armadas será um dos grandes desafios do governo Lula.
Como a participação intensa de muitos militares na administração federal é recente, talvez haja uma dificuldade em processar essas demissões – mas, para as Forças Armadas, não há uma grande vantagem em proteger entes individuais. O conflito maior se dá quando os efeitos são coletivos, como mexer nos currículos de formação para inserir temas relacionados à democracia; ou sobre o que é o Estado; ou, então, quando o governo faz alguma mudança nas aposentadorias. Questões corporativistas são mais fundamentais para as Forças Armadas. Não tem se mexido muito nelas. Até vale perguntarmos o quanto é possível de se fazer. É uma mácula da nossa democracia, em que o Executivo e o Legislativo “pisam em ovos” para tomar decisões normativas relacionadas às Forças Armadas por causa de uma ausência de legitimidade. Isso é muito delicado. Fica claro, inclusive, que “deixar os anéis para manter os dedos” é uma estratégia dos militares – e os anéis, neste caso, são os membros individuais que ocupam cargos de confiança no governo e que serão “sacrificados” em prol da manutenção das vantagens que eles têm.
Não. É muito difícil uma candidatura viável para competir com Arthur Lira.
Não o apoio, mas a altura em que este aconteceu. É que Lula fez uma leitura (correta, aliás) da dificuldade que enfrentará no Legislativo. A tentativa é conciliar as posições de comando que já existem na Casa, e, hoje, Lira tem um apoio muito forte dos partidos mais relevantes. É melhor conseguir apoio em um amadurecimento institucional do PT, que está construindo a governabilidade com um ator muito diferente dele: um apoiador explícito de Jair Bolsonaro. Neste processo, ninguém sai totalmente feliz, mas também ninguém sai totalmente insatisfeito. As pessoas costumam olhar isso pelo lado negativo, mas considero como parte do equilíbrio democrático.
Existem muitas variáveis de análise do Legislativo para além do espectro entre esquerda e direita. Há diferenças entre as casas, por exemplo, em que o Senado é muito mais individualista do que a Câmara. É por isso que, ali, onde apoiadores mais diretos de Bolsonaro venceram nas urnas, o bolsonarismo vai seguir vivo. Na Câmara, não será tão forte assim – talvez pelo sistema proporcional em si ou por efeitos da Reforma Política de 2017, que diminuiu o número de partidos e centralizou as decisões.
Com a redução de partidos na Câmara, a construção da governabilidade, agora, será mais parecida ao que acontecia entre 2006 e 2010. Isso significa, por um lado, que é mais “fácil” para o presidente, porque ele precisará negociar apoio com menos gente. Por outro lado, há uma famosa casta de líderes partidários no Brasil que, hoje, estão mais fortes do que nunca. Em outras palavras, foi bom diminuir a fragmentação partidária, mas isso não se refletiu em mais democracia dentro dos partidos ou em ferramentas formais de processos decisórios institucionalizados. O resultado disso é que os pequenos “reis” dos partidos estão um pouco mais poderosos. Mas há um ponto de complexidade: se esses atores têm uma relevância muito grande dentro dos partidos, não necessariamente conseguem uma votação relevante em seus Estados. Ou seja, não possuem uma grande legitimidade. O poder deles é pouco equilibrado dentro do contexto todo, como é o caso do [presidente do PL] Valdemar da Costa Neto e do[presidente do União Brasil] Luciano Bivar, que carregam muito peso dentro da arena política há algum tempo e, por isso, conseguem eleger as pautas que vão ser tratadas no Congresso.
Conseguir apoio pode ser um problema. Neste momento, não é uma questão, porque estamos no início do governo. A tendência é que haja um apoio popular maior agora, o que ajuda na governabilidade, mas quando o movimento natural de queda de popularidade começar a acontecer, esta regra seguirá valendo, a governabilidade ficará mais difícil. Sem contar o fato de que esta relação estava sendo marcada pela construção de bases orçamentárias e de emendas do relator, algo que não poderá mais ser feito. Não está claro como o Executivo vai costurar estes acordos.
Não vejo o posicionamento conservador como a principal orientação. Há um elemento regionalista, no sentido de levar recursos para as bases eleitorais, que é muito mais importante do que o conflito entre conservadores e progressistas. Isso significa que a necessidade de se manter a transferência de dinheiro via orçamento secreto, por exemplo, é muito mais valiosa para esses políticos do que falar em questões como restrição de direitos, decisão da mulher sobre o próprio corpo ou outras pautas do tipo. O que pode acontecer é esse grupo usar pautas sociais conservadoras só como elementos de pressão para que o presidente não seque a fonte do recurso que estava sendo tão importante para manter bases locais.
Sim, é possível. O protagonismo do Legislativo durante a pandemia foi muito grande em comparação a outros contextos – e isso aconteceu por três motivos: o primeiro deles foi a agenda pouco propositiva de Bolsonaro, abrindo espaço para o parlamento formular políticas públicas; o segundo é que o ex-presidente também não deu relevância para o tema, legando o trabalho aos parlamentares. É muito interessante observar como, em outros países da América Latina, aconteceu justamente o contrário, com o Executivo governando por decretos e, assim, se fortalecendo, fazendo o Legislativo desaparecer no mesmo processo. No Brasil, foi o Congresso que atuou mais diretamente sobre as decisões da covid-19, a despeito do governo federal. O terceiro motivo é mais paulatino: o Legislativo já vinha aprovando mais proposições próprias do que há 25 anos, por exemplo. Faz mais uso das próprias PECs [Propostas de Emenda à Constituição], que superam o trancamento de pautas das Medidas Provisórias (MPs) ou do chamado “meio conclusivo”. Esta esfera já estava se empoderando há algum tempo, e, durante o governo Bolsonaro e a pandemia, isso se fortaleceu.
Agora é um Executivo com agenda. O problema de Lula e da frente política que o apoiou na campanha é que há muitas ideias diferentes dentro dela. Se pode ser muito interessante no sentido de dar uma atuação própria ao governo, também permite que surjam problemas internos, sobretudo porque existe pouca base partidária. O presidente fez escolhas mais baseadas na formação técnica e na relevância social destes atores dentro dos respectivos campos do que nos partidos políticos aos quais pertencem. Para a governabilidade, trata-se de um desafio, porque alçar ministros pela base partidária é meio caminho andado para construi-la. Mas é fato que há muita gente, com muita agenda, mas pouco espaço para execução.
É interessante observar como a gente construiu nossa relação entre poderes baseada no modelo dos Estados Unidos, que foi desenhado depois de 200 anos de história política. Na nossa cópia, ainda não conseguimos digerir o que é o Supremo Tribunal Federal (STF), por exemplo. Fizemos isso melhor com o Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Na verdade, ainda estamos descobrindo o papel do Judiciário na divisão de poderes da democracia brasileira. Neste processo, há desequilíbrios oriundos de vários lados. De um, por exemplo, é o próprio Judiciário que tem este apetite [em exercer o poder]. De outro, há um Executivo e um Legislativo que entram sempre em conflito no processo de construção de governabilidade, quando não em disputas internas. Nisso, as relações de confiança são quebradas, e a tendência é a de formalização de regras informais por meio de leis. Nada mais é do que um convite para que o Judiciário resolva estas contendas.
Na arena do TSE, houve uma atuação muito rápida e efetiva durante o processo eleitoral, que foi fundamental (e que precisa até virar regra). As novas formas de comunicação influenciam muito as democracias, e é preciso responsabilizar as empresas de mídia que coordenam estas redes para que não haja nenhum tipo de irregularidade decidindo as eleições. Por outro lado, a atuação dele durante o mandato precisa encontrar as barreiras necessárias dentro do que chamamos de democracia. O que eu vejo é que há um desequilíbrio nos altos salários da cúpula do Judiciário muito parecida ao que vemos nas Forças Armadas.
Há uma questão pessoal de busca de atenção, de gostar de exposição, que nem todos os membros do STF têm. Esta característica o torna mais visível. Entretanto, a despeito dos espaços que existem para atuação individual, existem algumas regras informais entre os ministros da Corte que a protegem. Gosto de pensar que o ministro Alexandre de Moraes dará um passo atrás durante a legislatura em relação ao que foi na campanha eleitoral. Da parte dele, seria a coisa mais republicana a ser feita.
Bolsonaro nunca foi oposição. Sempre que foi deputado, pertenceu àquela base do Centrão mais preocupada com transferir recursos para a própria base. Um perfil parlamentar comum. Agora, se por um lado é fácil ocupar o papel de oposição, por outro não há mais acesso ao dinheiro. Estar distante dele é algo muito difícil no sistema político brasileiro, e não à toa o próprio Centrão existe. Hoje, ele é membro do PL, que tem uma quantidade relevante de recursos, mas que não vai ser um partido de oposição forte, sobretudo se houver uma construção de governabilidade bem elaborada por Lula. Tudo isso para dizer que a forma como essa oposição vai se estruturar institucionalmente demorará um pouco, porque terá um custo de aprendizado. Em outras palavras: o bolsonarismo, como oposição institucional, levará um tempo para se organizar – mas é inevitável que isso acontecerá, porque uma parte da sociedade pensa da mesma forma. Neste processo, nós vamos saber também quem era bolsonarista por ideologia ou por conveniência. Se Lula for esperto, usará este intervalo de tempo para passar as pautas mais relevantes.
Seguirá sendo uma liderança muito relevante na oposição ao governo Lula do ponto de vista social, de parte da população que ainda o apoia. Todavia, institucionalmente, acredito que será mais difícil, porque ele não consegue agir por meio de partidos políticos. Bolsonaro não tem uma agenda clara para o País. A agenda dele é muito voltada para um tipo de conservadorismo. Sem ela, não há como fazer oposição institucional clara.