Em menos de 60 dias de governo, o presidente Lula já visitou três países. Na Argentina, em janeiro, desenterrou a polêmica ideia de uma moeda comum com o país vizinho. No Uruguai, dias depois, reforçou a preocupação do Mercosul, principal bloco econômico da América do Sul, diante das negociações que o presidente uruguaio, Luis Lacalle Pou, tem mantido por conta própria com a China. Na metade de fevereiro, então, foi a Washington, nos Estados Unidos, para ser fotografado ao lado de Joe Biden e dar entrevistas às redes de televisão norte-americanas – ansiosas para saber sobre o Brasil pós-Bolsonaro. O presidente brasileiro ainda recebeu a visita do chanceler alemão, Olaf Scholz, e aguarda a formalização da chancelaria francesa sobre a vinda de Emmanuel Macron. No fim deste mês, passará quatro dias na China, onde vai se encontrar com Xi Jinping, em Pequim.
Estes encontros giram em torno temas centrais do mundo atual: a guerra na Ucrânia, o conflito velado entre China e Estados Unidos, possíveis acordos comerciais e a retomada de uma agenda de preservação ambiental, por meio da qual o Brasil espera incorporar um protagonismo sempre ostentado, mas jamais assumido de fato.
Na visão de Vinicius Mariano de Carvalho, professor do Departamento de Guerra do King’s College, em Londres, no Reino Unido, em meio ao esforço estratégico do Planalto, há o empenho do Itamaraty para retomar a presença internacional perdida nos últimos anos, a exemplo da liderança entre os países sul-americanos. Segundo a opinião dele, o mundo está atento a todos estes movimentos e, mais do que isso, espera por posturas contundentes em torno dos grandes problemas mundiais. “Existe uma grande pressão para que o País condene explicitamente a invasão russa na Ucrânia, por exemplo”, destaca Carvalho, ao lembrar que Scholz veio a Brasília justamente para pedir ajuda bélica aos ucranianos.
Em entrevista à PB, o ex-diretor do Brazil Institute do King’s College fala sobre a postura da atual gestão perante o mundo, as relações com China e Estados Unidos, entre outras questões, como a presença de militares no governo. A seguir, os principais trechos do bate-papo.
Há, agora, uma maior reinserção do País no contexto internacional – ou, ao menos, um desejo do Brasil em atuar mais em alguns fóruns e de ser ativo em questões multilaterais ou bilaterais. A diplomacia se mostra mais ativa, buscando colocar o País em uma posição eficaz e contundente nas relações internacionais.
Principalmente um posicionamento em tornos de alguns fatores centrais na discussão internacional da atualidade. Um deles é a guerra na Ucrânia. Outro, o atrito entre China e Estados Unidos.
Existe uma grande pressão, especialmente do mundo ocidental, para que o Brasil condene explicitamente a invasão russa na Ucrânia. Ela se estende ao convite para o País fazer parte do grupo que está apoiando os ucranianos com material bélico. Com todas estas pressões, o Brasil não pode se eximir de participar do debate. Há alguns dias, lideranças de defesa e segurança do mundo todo se encontraram em Munique, na Alemanha, e saíram da reunião com uma posição clara em favor da Ucrânia. Logo em seguida, [o presidente dos Estados Unidos] Joe Biden fez uma visita surpresa a Kiev. Em meio a essa pressão, é uma tradição da diplomacia brasileira manter neutralidade perante grandes conflitos em que o País não esteja envolvido – e mesmo quando é instado a tomar um lado, não costuma fazê-lo. Lembro, por exemplo, da Guerra das Malvinas, nos anos de 1980, quando, ainda que apoiasse a demanda argentina, o Itamaraty se posicionou contrário à guerra e não apoiou formalmente nenhum dos dois países envolvidos [a Argentina e o Reino Unido].
Vai exigir uma diplomacia forte e coerente, principalmente porque essa guerra transcende o ambiente bélico. Lembremos que o Brasil tem relações comerciais estreitas com a Rússia, que faz parte de um grupo bastante valorizado pelo presidente Lula: o Brics. Diante disso, é necessário saber se o Brasil condenará veementemente a Rússia, como o Ocidente tem cobrado. Se o fizer, terá que tomar algumas posturas mais contundentes também na ONU. O primeiro sinal do que parece ser o posicionamento do Brasil foi dado quando Lula propôs ao chanceler alemão, Olaf Scholz, criar um “grupo de países não envolvidos” para colaborar em negociações para uma solução do conflito. Esta pode ser uma postura importante, embora dependa da robustez que o Brasil demonstre internacionalmente para iniciar uma agenda de diálogo. Não há dúvidas, contudo, que a posição brasileira diante do conflito seja importante para o mundo, e, por causa disso, a decisão de seguir neutro deve ser acompanhada por uma análise dos impactos que este posicionamento terá a médio e a longo prazos para nós.
Antes de tentar resolver o grande conflito do mundo atual, o Brasil deve dar passos dentro do seu chamado “entorno estratégico”. Penso, por exemplo, nas questões venezuelana e nicaraguense. Se o País reunir condições internacionais de ajudar nas resoluções de ambos os certames, demonstrará que tem a reputação necessária para propor negociações mais amplas ao mundo.
Não podemos ter a ilusão de que, porque fomos grandes negociadores no passado, seremos hoje também. Da mesma forma que países conquistam reputação internacional, também podem perdê-la. Uma posição relevante no contexto global não é definitiva, mas algo que deve ser cultivado. O silêncio brasileiro atual sobre a Venezuela e a Nicarágua não ajuda a alçar o lugar de negociador global, embora esta seja, aparentemente, a intenção da diplomacia deste governo. Esse lugar precisa ser reconquistado a partir do que nossos braços alcançam – e, para fazer isso, o primeiro passo é reforçar a atuação em relação aos países que estão ao nosso lado.
Em situações assim, todos os países se questionam sobre os próprios interesses. Se há ganhos em tomar um lado ou de abster. O Brasil deve se fazer esta pergunta agora. Podemos até dizer que queremos a paz, o que é a mesma resposta dos países que, para alcançá-la, estão fornecendo armas para a Ucrânia ou impondo sanções econômicas à Rússia. Isso significa dizer que, se o Brasil quer a paz, deve responder de que maneira deseja alcançá-la e qual é o engajamento internacional que o País procura para chegar a ela, sem contar outros fatores que são relevantes neste contexto. Ressalto aqui dois deles: o setor agrícola, por exemplo, que tem sido profundamente afetado pela guerra; e a própria indústria de defesa, que não é tão competitiva a nível global, mas tem suas potencialidades. Muito se fala no Astros, o sistema de lançadores múltiplos de foguetes brasileiro, e também na produção nacional de blindados ou nos aviões C-390 Millennium da Embraer. O Brasil quer que esta capacidade industrial seja empregada nessa guerra? Se a resposta for positiva, então, agora é a hora de fazer uso desse potencial. Não estou defendendo aqui que isso seja feito, mas ressaltando que essa é uma questão que o Brasil deve se perguntar.
É importante ressaltar que o Brasil é membro do Brics e que a China é, hoje, o maior parceiro comercial do País. A economia nacional depende imensamente das exportações para lá. Por outro lado, os Estados também são um parceiro econômico relevante. Neste sentido, devemos nos perguntar acerca dos impactos, dos interesses e dos objetivos em curto, médio e longo prazos ao tomar um posicionamento alinhado a um ou outro lado.
Não podemos esquecer que o Brasil ainda é uma das maiores economias do mundo. O peso dessa posição é sempre importante. Nesta situação, o Brasil deve se perguntar qual é o benefício em assumir um lado específico. Ao pensar nos benefícios das relações econômicas que o País tem com ambos os países, não me parece que este seja o momento de se tomar uma posição.
Sim. Foi o que aconteceu na discussão sobre o 5G. Quando momentos como esse ocorrerem, o País deve deixar claro que não está tomando um lado, mas apenas agindo a partir do que é do próprio interesse dentro da questão em específico. Para ter direcionamento sobre quais posturas tomar em situações assim, é necessário que o Brasil discuta a sua estratégia de forma mais ampla. Algo que reflita a compreensão dos vários atores que compõem a pluralidade nacional e direcione os posicionamentos brasileiros em suas intenções globais. Para que o País tenha uma voz ativa no cenário internacional, é preciso que construa um acordo nacional que elimine a necessidade de sempre ter que escolher um lado nos conflitos internacionais.
São muitos fatores. O primeiro deles é o nível de divisão social que o País vive hoje. É um elemento pontual, que não responde sozinho pelo problema, mas que deve ser abordado. Além disso, o fato de o nosso desenvolvimento ter acontecido em meio a várias desigualdades – econômicas, sociais, regionais etc. – excluiu uma parte grande de atores na definição desta estratégia. É um país com uma multiplicidade tão grande, mas que ainda sustenta uma representatividade univocal e excludente. A isso, junta-se o fato de que ainda não há um entendimento claro no Brasil sobre o que se quer dizer com desenvolvimento. Isso fica evidente quando se fala da Amazônia, por exemplo. É comum os discursos de que a região precisa “se desenvolver”, sem uma definição precisa do que se quer dizer com isso.
Já é protagonista na questão ambiental, por exemplo. Os recursos naturais e as condições geográficas, além de toda a produção científica produzida, o colocam em condição de grande potência neste campo. Podemos dizer que o Brasil dispõe de um “capital ambiental” único no mundo, mas precisa apenas assumir este papel de protagonismo, gerenciando a linguagem e os discursos globais acerca do assunto. Muitos países fazem pressão sobre algumas tomadas de decisão sem dispor de nenhum desse capital ambiental, ao contrário do Brasil, que o tem e deve fazê-lo valer. Além disso, o mundo precisa de mais lideranças fora da disputa pela hegemonia global, como Estados Unidos e China. Este é um lugar que o Brasil pode ocupar, já que sempre se destacou entre países latino-americanos e africanos, em arenas políticas, econômicas e mesmo em negociações mais estreitas no âmbito da ONU. Este é o momento para retomar esta capacidade.
Assumindo posturas mais efetivas em relação a regimes que permanecem com características autoritárias na região, a Venezuela e a Nicarágua, por exemplo. Novamente: o Brasil não foi efetivo nestes dois casos até agora. Não falo apenas em termos econômicos, mas em contribuir para que esses países retornem à dinâmica democrática. A violação de direitos humanos sob o governo de Daniel Ortega [ditador da Nicarágua] é especialmente grave, e, nisso, o Brasil tem um dever moral em se posicionar.
É uma pergunta difícil. Por um lado, entrar na OCDE fará com que o País perca a qualificação para receber recursos hoje destinados a países em desenvolvimento. Por outro, significaria entrar no clube das grandes economias globais, o que nos projetaria de uma maneira diferente perante o mundo. Entendo que esta decisão precise passar por uma reflexão mais profunda sobre quais são as potencialidades brasileiras e os ganhos para o interesse nacional – e que ela não pode ser pautada apenas no critério da imagem que o Brasil quer alcançar no exterior.
Nos últimos seis anos, duas questões fundamentais aparecem com força. A primeira é a ambiental, sobretudo o posicionamento do País nos debates a respeito da mudança climática, o potencial brasileiro em relação à gestão e à manutenção desse capital ambiental etc. Outro é a democracia, abordando desde pesquisas sobre a saúde das instituições até a ascensão da extrema direita, passando ainda pela divisão social e pela presença de militares enquanto atores políticos.
Militares não devem ser perguntados sobre o que se espera deles ou qual papel devem desempenhar. Eles são atores armados do Estado, instituídos constitucionalmente para garantir a defesa nacional sob ordens específicas e explícitas do governo democraticamente eleito. Como instituição, os militares não são força política, não têm posicionamento político e não podem ser vistos, nem tratados, como um partido. O que acontece – e é um problema muito recorrente no Brasil – é que toda vez que acontece algo, pergunta-se sobre o que os militares estão pensando. Esta postura entrega uma autoridade que não lhes cabe, porque diz a eles que o que eles dizem e pensam têm valor político. E, aqui, a questão mais relevante está em fazer com que a grande parcela da população que ainda considera as Forças Armadas como ator político compreenda que isso não é o que se espera destas instituições em sociedades democráticas.
Muitos fatores já foram apontados nos últimos anos. O governo deve recordar sempre à população qual é o papel dos militares para o Estado brasileiro, e pode fazer isso diminuindo demandas que não estejam no escopo de atuação deles, como a execução de políticas públicas em obras de construção de estradas. O emprego das Forças Armadas em operações de GLOs [Garantia de Lei e Ordem] também reforça a compreensão de que elas são úteis porque atuam como polícia e que podem se ocupar com questões efetivamente políticas, como é a segurança pública. O mesmo acontece em situações de calamidade pública. O ambiente político brasileiro não deve recorrer às Forças Armadas a todo momento em que demandas políticas requeiram respostas que sejam, na verdade, da ordem de políticas públicas. Devem entender que elas existem por um motivo muito específico, a defesa nacional, e que é para isso devem estar treinadas, equipadas e prontas.