Há quase uma década, o Brasil recebeu o seu último “grande evento”: os Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, em 2016. Segundo dados oficiais, 1,2 milhão de pessoas circularam pela cidade no período das competições, principalmente por uma infraestrutura que, em valores atualizados, custou cerca de R$ 41 bilhões. Perto de completar o décimo aniversário (a Copa do Mundo chega lá neste ano), já é hora de se perguntar: o que ficou, efetivamente, para o País?
Segundo Daniela Castro, do Pacto pelo Esporte, são muitas as respostas, desde a mobilização dos atletas dentro das entidades que administram as modalidades até indicadores de monitoramento dos gastos públicos, por exemplo. Para ela, que também fez parte do projeto Jogos Limpos Dentro e Fora dos Estádios, do Instituto Ethos, a discussão atual sobre as Sociedades Anônimas de Futebol (SAFs) nos clubes é parte desse legado. “Muitas mudanças estruturais aconteceram [dos grandes eventos para cá], apesar dos riscos que existiam e que fomentaram áreas de entorno do esporte e da infraestrutura, como o turismo”, disse Daniela, na ocasião do Ethos 360, organizado no fim do ano passado, em São Paulo. “O desafio que estava posto era fazer esses eventos direito.” A seguir, trechos da conversa que ela teve com a PB.
O impacto sobre o esporte, em especial, serve hoje de exemplo para muitas outras áreas. Um deles é a associação de atletas que se formou ali, com gente como [os ex-jogadores de futebol] Sócrates, Raí e[o ex-nadador] Gustavo Borges, que tentava influenciar políticas públicas para a área e se perguntava sobre o legado esportivo desses eventos. Era uma discussão para além da infraestrutura, que era o tema comum naquela época. Acho até que falar sobre legado começou ali, crescendo muito depois dos protestos de 2013.
Sim. Naquele momento, o Instituto Ethos começou o projeto Jogos Limpos Dentro e Fora dos Estádios, que procurava monitorar gastos com a infraestrutura nas sedes da Copa. Nesse sentido, dá para falar de legado, porque, agora, a Controladoria-Geral da União (CGU) acompanha muito melhor esses processos, além das ferramentas de monitoramento que foram criadas. No âmbito esportivo, o pacto definiu como empresas só podem patrocinar entidades esportivas que tenham boas práticas. Sem contar a conquista do direito ao voto de atletas em muitas dessas instituições e a própria Lei Anticorrupção [de 2013]. Os eventos tiveram começo, meio e fim, mas como foram feitos e os impactos que geraram vão para além da infraestrutura: são práticas.
Foi uma demanda social dos atletas. Grandes eventos, como uma Copa do Mundo ou uma Olimpíada, são realizados com a ajuda de leis especiais em relação à legislação comum do país, o que gerou muita insegurança no Brasil. As regras sobre licitações foram modificadas, por exemplo, assim como a venda de cerveja nos estádios. Tudo isso fez com que essa agenda ganhasse relevância. Foi a primeira vez que sediamos eventos dessa ordem também em termos de recursos, de gastos em geral, e mostraram a mobilização da sociedade civil. Ali havia uma mensagem clara: “Vamos fazer da melhor forma, mas não pode ser de qualquer jeito”. É um legado fundamental.
Sim. Hoje se fiscaliza mais, por exemplo. O Jogos Limpos elaborou ótimos indicadores utilizados nas cidades e em vários setores produtivos, assim como a CGU, que passou a mensurar uma série de indicadores e seguir protocolos. Se acontecer de o Brasil receber outro grande evento no futuro, o País já terá um marco legal, pois saberá mapear o que funciona e o que não. O sistema foi aprimorado.
Muita coisa, mas a mobilização dos atletas é o principal. Como estava dizendo, eles se juntaram em uma associação para influenciar políticas públicas e conseguiram, dentre outras coisas, pressionar o Congresso pela aprovação de uma lei contra a corrupção. Mesmo nas entidades a coisa mudou. Um exemplo é que, hoje, eles podem votar no Comitê Olímpico Brasileiro (COB)[no último pleito da entidade, em 2020, 12 atletas participaram, segundo o próprio COB. Foi a primeira vez na história que atletas votaram na eleição]. Na última eleição, aliás, os votos dos atletas foram decisivos [para a vitória de Paulo Wanderley Teixeira]. Essas entidades ainda devem prestar contas — uma mudança importante, já que, antes, recebiam uma série de recursos sem nenhum tipo de contrapartida ou transparência, além de terem fixado limites de mandatos para dirigentes. Em meados de 2006, quando comecei a atuar dentro da área, o esporte era uma das mais atrasadas do País em temas como gestão e governança. De lá para cá, apesar dos desafios, muita coisa melhorou. Basta pensar no próprio pacto, em que mais de 40 empresas, muitas delas concorrentes entre si — como bancos e companhias aéreas —, estipularam conjuntamente que só injetarão dinheiro em entidades adequadas às boas práticas. Estamos falando de uma mobilização que abrange grandes atores: mercado, governo e sociedade civil.
Isso foi uma grande polêmica na época, né?!
Os atletas queriam, mas também não queriam… Particularmente, foi uma grande oportunidade para o Brasil. Muitas mudanças estruturais aconteceram, apesar dos riscos que existiam, e fomentaram áreas de entorno do esporte e da infraestrutura, como o turismo. O desafio que estava posto era fazer esses eventos direito.
O que aproxima é o fato de o esporte ser um grande mobilizador — em especial, o futebol. É uma indústria que cresce muito, movida pelo apelo, mas também pelos valores envolvidos, como o trabalho em equipe, o apoio, o mérito etc. O que tem acontecido muito, nesse tipo de relação, é o patrocínio individual na formação de atletas. Eu acrescentaria ainda a própria mobilização do esporte entre alguns CEOs, seja porque são pessoas fanáticas por alguma modalidade, seja porque têm uma história esportiva de alguma forma.
Os escândalos. Ainda existe uma preocupação com a forma como o dinheiro é gasto. Há ainda a questão das apostas, que, se não cuidada, vai ferir os principais aspectos do esporte: a imprevisibilidade do jogo, a ética etc.
O rúgbi é um exemplo. Outro é a Confederação Brasileira de Desportos na Neve (CBDN), que investe muito em boas práticas. É bom dizer que o Instituto Ethos e o Pacto pelo Esporte dispõem de um ratingsobre gestão das entidades esportivas. Hoje, 11 delas têm o selo de boas práticas, entregue àquelas que atingem uma pontuação mínima desses critérios. É um caminho que está sendo trilhado — e, mais do que isso, é inevitável. Não tem como voltar atrás.
É um desafio. O futebol precisa mudar, principalmente por causa do tamanho da dívida [dos clubes]e pela modernização que o esporte passou de forma geral. Eu acho que o passo seguinte é passar à prática. Já contamos com legislação, recursos e algumas boas práticas em vigor. Agora, é hora de dar o passo seguinte em direção à gestão profissional.
Tem a ver com o sistema político do futebol. Mas, antes disso, é uma modalidade que precisa entender que é uma indústria. Não é como era antigamente.
Não. Na Europa, alguns clubes fizeram essa virada sem se tornarem SAFs. Boas práticas podem ser aplicadas em qualquer organização. Essas coisas parecem ligadas, porque o clube-empresa é um modelo empresarial, que envolve dono, acionistas etc. Associações [que dão a tônica do futebol hoje] não têm dono: é um presidente que assume por um período — depois sai, e, daí, tudo muda. Isso está enraizado no Brasil. É uma das causas do problema..