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“Ou é imparcial ou não é Judiciário”

29 de janeiro de 2021
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A sensatez e a experiência dos 40 anos de carreira jurídica marcam a avaliação de Cármen Lúcia – ministra do Supremo Tribunal federal (STF) desde 2006 e presidente da Corte entre 2016 e 2018 – sobre o atual Brasil. “Vejo esta polarização como um mundo que ensurdeceu para o outro. E não acho, lamentavelmente, que ao perdermos um sentido, todos os outros sejam aguçados. Às vezes, não ouvimos o outro porque nem sequer o vemos”. Nesta entrevista, ela fala sobre polarização, fake news, papel das mulheres em postos de destaque, crise democrática e, claro, o protagonismo do Judiciário. “Imparcialidade no Judiciário é: ou é imparcial ou não é Judiciário. Simples assim. Ninguém cogita um juízo parcial. Imparcial é não ter partes. Agora, se ele toma partido, deixou de ser juiz”. A entrevista é parte de uma série de debates realizados em parceria com a Brazilian Student Association (BRASA), associação formada por brasileiros que estudam no exterior.

ESTE TEXTO FOI PUBLICADO NA EDIÇÃO ESPECIAL DA PB EM PARCERIA COM O CANAL UM BRASIL. AO LONGO DO MÊS DE JANEIRO, O CONTEÚDO COMPLETO DA REVISTA SERÁ OFERECIDO NO SITE DA PB.

Guilherme Baroli – Temos visto uma ascensão do nacional-populismo em vários países. Como a senhora interpreta a situação político-social brasileira e o papel do País no mundo?

A visão de que estamos num momento de polarização é tristemente verdadeira. O que me parece é que estamos num momento de “surdez”, em que a pessoa se acha tão imbuída de certezas, num mundo de incertezas – o que é, por si, paradoxal –, que não precisa nem ouvir o outro. Vejo essa polarização como um mundo que ensurdeceu para o outro. E não acho, lamentavelmente, que ao perdermos um sentido, todos os outros sejam aguçados. Às vezes, não ouvimos o outro porque nem sequer o vemos. Talvez, neste ano, por termos sido postos diante de problemas tão graves – que nos foi levado, pela pandemia, ao afastamento obrigatório –, chegaremos a pensar se não é hora de superar, não o diferente, não o outro polo, não de fazer necessariamente uma travessia, mas de não ficar, de uma margem, achando que o outro lado é que tem problema. Não tem problema nenhum, tem outro ser humano que, talvez, me convença que o lado de lá seja melhor, seja possível. Vejo este momento do mundo e do Brasil como preocupante não apenas quanto às crises política, econômica, do capitalismo ou do que poderia ser chamada de “crise da democracia”. É uma crise humanitária. O ser humano chegou ao ponto de conversar com o outro lado do mundo, ou com alguém que ele nem sabe se é um computador ou um ser humano, mas não conversa com o irmão que está no quarto ao lado – às vezes, precisando de ajuda. Acho que essa crise humanitária precisa ser enfrentada, porque ela foi posta de maneira muito escancarada em 2020. Preocupa-me tudo que seja porta fechada, que se fecha ao outro, fecha-se ao mundo; o momento é de abertura, porque as possibilidades que o ser humano criou, com a tecnologia, com os meios de comunicação, fazem com que queiramos estar com o outro. Ser diferente faz parte. O que não me parece um bom sinal é estarmos a fechar portas, limites e fronteiras – porque não se fecha só um país, fecha-se uma sociedade, o cidadão, como ser humano.

Rafael Martins – Há uma crise democrática no Brasil? Se sim, quais são os fatores que levaram a ela e o que as instituições podem fazer?

Penso ser uma crise, talvez, de modelo democrático em todo o mundo. Não sei se ela é apenas aguçada em alguns momentos, porque a democracia é dinâmica. Parece-me que falamos em crise no Brasil porque o aguçamento que se deu entre tendências opostas se tornou patente. Quando falamos em crise democrática no Brasil, as instituições estão funcionando? Sim. Estamos fazendo valer a Constituição. Todos nós, brasileiros. Há, claro, os questionamentos que, se ultrapassam os limites que o Direito fixa, são feitos pela via judicial. Vivemos mesmo tempos difíceis, inclusive [porque enfrentamos] uma pandemia. Difíceis também por causa da questão econômica, porque temos esse aguçamento de ânimos contrários e acirramentos, muitas vezes, virulentos. Ainda assim, consolidamos uma democracia que não está apenas no papel, numa carta. É num sentimento constitucional que prevalece, e que tem dado seiva, para fazer frutificar esta tendência democrática que o Brasil abrigou na década de 1980 e que tem, acho, se realizado.

Leila Cordeiro – Em 2017, tivemos mulheres na frente de instituições brasileiras: a senhora no STF, a ministra Laurita Vaz no Supremo Tribunal de Justiça (STJ), Grace Mendonça na Advocacia Geral da União (AGU) e Raquel Dodge no Ministério Público Federal (MPF), mas ainda são situações excepcionais. Por que isso acontece e como podemos participar mais do comando de instituições?

Somos um País preconceituoso e machista. É fato. E o preconceito, no Brasil, é patente em todas as instâncias. Temos esta tensão porque nós, mulheres, sabemos que o preconceito é grande. É grande contra mim, que sou juíza, e muito maior contra aquelas que não tiveram as oportunidades que tive. Isto que é o pior: a violência é muito maior contra aquela que, às vezes, tem até receio de reagir contra as agressões, contra as violências física, psíquica e social. O preconceito nem é, às vezes, formalizado ou verbalizado, ele passa no olhar. É também o jeito de falar, a brincadeira, o deboche – que não é só uma jocosidade, é uma forma de desmoralizar e desmotivar. É um triste fato, e acho que se transformou muito numa forma de violência quando mulheres entraram – e chegaram até a superar um determinado patamar histórico – no mercado de trabalho. Parece que estamos competindo. Não, ele compete com outro homem, ele compete com o profissional na mesma área. Então, é um dado grave, a violência contra a mulher não para. Não sei quanto tempo precisaremos para ter uma sociedade na qual as pessoas sejam tratadas e se achem realmente iguais. Ainda há um longo caminho. Dizem que somos uma maioria em número e minoria em direitos. Não, nós fomos uma maioria silenciada historicamente por uma sociedade que não gosta de ouvir a voz da mulher. Não vamos ser silenciadas de novo. A mordaça caiu, mas há quem queira restabelecê-la.

Guilherme – Somos, de fato, iguais perante a lei, como determina a Constituição?

A igualdade é um construir permanente. A igualação é a dinâmica da igualdade. A Constituição nos dá o instrumento. Entretanto, há poucos dias, quando uma empresa abriu espaço de ênfase aos negros, as reações se fizeram presentes. É bom reagir, para que todo mundo tome posições. Agora, é preciso igualar. Para isso, temos as cotas, que não são a forma mais democrática de convivência, mas necessárias para se chegar a uma melhor convivência. É assim com as mulheres na política. “Ah, mas os 30% mínimos não são só para mulheres”. Vamos combinar que é para mulher, sim, porque tínhamos 100% de homens.

Rafael – Como podemos garantir que, no futuro, nossas instituições se manterão imparciais? Qual o papel do STF neste processo?

A imparcialidade no Judiciário é: ou é imparcial, ou não é Judiciário. Simples assim. Ninguém cogita um juízo parcial. Imparcial é não ter partes. Agora, se ele toma partido, deixou de ser juiz. Então, o Brasil continua a ter juízes, e a Constituição sobreviverá com juízes que vão guardar, respeitar e fazer com que ela prevaleça. O papel do Poder Judiciário, do STF, é, principalmente, sinalizar, para os 18 mil juízes brasileiros, que temos deveres com a República, com os cidadãos, para sermos juízes imparciais, com as consequências que isso tem, porque, como disse Rui Barbosa: “O ladrão salvou-se, mas para o juiz covarde não haverá salvação”.

Isabelly Veríssimo – O ativismo judicial é positivo ou negativo no atual cenário brasileiro?

 Depende do que se considera ativismo. Já vi pessoas se referindo a ativismo pela circunstância de o Supremo, por exemplo, se manifestar sobre questões sociais, questões graves de direitos humanos. Neste sentido, acho que é papel do Poder Judiciário, do STF especificamente, atuar. Tem de haver uma autocontenção no que se refere ao desempenho dos outros poderes. O que é do Poder Legislativo legislar, que ele legisle. O que é do Poder Executivo fazer, que ele o faça. O espaço da política é próprio para políticos; nós não fomos eleitos para legislar. Sobre a atuação específica em casos muito rumorosos – como de anencefalia ou das criminalizações da homofobia e da transfobia –, o que falamos é que a ausência de atuação durante décadas teve como consequência a ruptura dos direitos constitucionais, ou a afronta aos direitos constitucionais. A permanência do quadro significava a ausência da própria Constituição, a qual, a nós, foi entregue a função de guardar. Tem de ter ativismo, mas em casos nos quais seja espaço próprio e único da política, temos de nos autoconter.

“Tem de haver uma autocontenção. O que é do Poder Legislativo legislar, que ele legisle. O que é do Poder Executivo fazer, que ele o faça. O espaço da política é próprio para políticos, não fomos eleitos para legislar.”

Leila – Vimos, nos últimos anos, uma hiperjudicialização em várias áreas. Em que medida este movimento é efeito de uma crise de representatividade do Legislativo e do Executivo?

O aumento da judicialização se deve a um conjunto de circunstâncias, não é isolado. Não acredito que seja decorrente da crise de representatividade. A Constituição de 1988 expandiu direitos – em primeiro lugar, direitos fundamentais individuais, coletivos e sociais. Quando vimos, depois da Constituição, um aumento da judicialização, se deve também a isto: o cidadão passou a ter direitos. Quando estudei, na década de 1970, tinha uma frase horrorosa, na faculdade de Direito, repetida por professores: “É melhor um acordo do que uma boa demanda”. Hoje, ninguém quer nem um mau acordo, nem uma má demanda. Quer-se a solução do problema. Por isso, o Direito caminhou para ter mediação, conciliação, juizados especiais, outras formas mais fáceis e mais rápidas. Estamos chegando, neste ano, a ter os julgamentos virtuais; até mesmo no STF a pessoa acompanha os votos dados por todos nós. Mudou-se em benefício de uma cidadania que não quer absolutamente ceder direitos, porque foram [os constitucionais] conquistados com muitas dificuldades. Não é mais tempo de reforma, é tempo de transformação. E é um tempo difícil para o ser humano, porque mudar é muito difícil. Queremos que o outro mude. Sobre representatividade, acho que essa é a grande mudança que estamos vendo no sentido transformador das nossas relações. Será que o cidadão quer mesmo se representar? A tecnologia já nos oferece condições de o cidadão querer se apresentar. Ele quer estar presente não apenas no espaço estatal, que é obrigatório, mas no espaço das relações humanas. Quanto mais livre for a pessoa para se posicionar e atuar, mais democrática é a sua relação. A democracia é inerente à vida de todos, que transportamos para a política, para a pólis, para o espaço de todos. Agora, queremos discutir no trabalho, na nossa casa, na escola, na política – isso no mundo inteiro. E, aí, surgiram as vozes que achávamos que não existiam mais, pois, provavelmente, só estavam caladas. E começamos a ver os polos todos aparecendo – muitas vezes, com virulência.

Rafael – Como combater as fake news sem desrespeitar a liberdade de expressão?

A liberdade de expressão é um valor. Quando se transforma em ofensa, em calúnia, em crime, não está resguardado pelo Direito. “A Constituição garante a liberdade de expressão e, aí, fica contra as fake news…”. Não. A Constituição garante a liberdade, ponto. Ninguém é livre para mentir sobre o outro e destruir o outro. Isso é guerra, não direito. O modo como vamos chegar a este cuidado precisa ser uma grande construção, para mantermos a liberdade sempre, garantida constitucional, judicial, jurídica e politicamente, mas impeça expressões que sejam manifestações de agressão, de ofensa – não de informação, mas de deformação; não de liberdade, mas de criminalidade. Esse é o desafio. Quando alguém calunia e fala que você cometeu um crime – e isso não aconteceu –, mas isso “viraliza” numa rede social, destrói a sua vida. Então, é preciso que tenhamos cuidado e espaço expressivo. E isso não é fácil, porque está no abstrato: a liberdade é algo que exercemos e desenvolvemos, mas não é algo que possamos, inicialmente, delimitar o limite e a forma, porque ela não tem forma.

Guilherme – Qual é o Brasil que mais lhe entristece e qual Brasil mais lhe orgulha?

O Brasil que me entristece é o do menino sem escola, porque é um menino sem cidadania. É um País que não cuida do presente e certamente está descuidando do futuro. Acredito que o grande tema do mundo seja a aprendizagem com o outro, mas pela educação. Portanto, o Brasil que me entristece é o desse menino que não tem a oportunidade que tive e que, possivelmente, sofrerá muito com todas as formas de preconceito, porque se nega a educação e, depois, se discrimina pela falta dela. O Brasil que me orgulha é o do professor que vai dar aula; da professora que fala, vai, faz um lanche e faz a festa junina. Acho de uma riqueza humana essa professora que nunca sai da nossa cabeça, porque ela marca um caminho que podemos seguir. Então, o País que me orgulha é o Brasil dos nossos professores. Meu pai, aos 97 anos, pouco antes de morrer, disse, quando reclamei de algo: “A vida é boa, dura, mas curta, mesmo para mim, que tenho quase cem anos”. E, hoje, percebo que, para fazer algo pelo outro, é isto mesmo: a vida não é fácil, ela é boa. Por isso, continuo acreditando. Então, desejo a todo mundo “saúde e sorte”, como disse Gonzaguinha. O Brasil merece. E como dizia também Guimarães Rosa: “Sorte é isto. Merecer e ter”.

Entrevista concedida ao UM BRASIL – uma realização da FecomercioSP. UM BRASIL é uma plataforma multimídia composta por entrevistas, debates e documentários com nomes dos meios acadêmico, intelectual e empresarial. O conteúdo desses encontros aborda questões importantes sobre os quadros econômico, político e social do Brasil. Confira aqui a entrevista completa.

Leda Rosa Rosinei Coutinho
Leda Rosa Rosinei Coutinho
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