Há mais de duas semanas, 90% dos gaúchos convivem com as consequências da maior enchente da história do Estado. São mais de 200 mil pessoas sem luz, 159 mil sem água e 658 mil desalojados. Até agora, a Defesa Civil do Rio Grande do Sul confirmou 157 mortos, 88 desaparecidos e 806 feridos. Ao todo, mais de 2 milhões de habitantes foram atingidos pelas cheias de alguma maneira. No entanto, se a natureza não é controlável, as consequências da sua fúria poderiam ser.
O metereologista José Marengo é um dos cientistas mais citados no meio acadêmico quando o assunto é clima e desastres naturais. Coordenador-geral de Pesquisa e Desenvolvimento do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), ele é categórico ao afirmar que o resultado do evento climático extremo que assolou o Rio Grande do Sul poderia ser amenizado se a ciência fosse ouvida. Uma semana antes do início dos temporais, o órgão emitiu um alerta sobre a possibilidade de um desastre climático. “Nosso papel é apresentar os impactos do que pode acontecer se nada for feito”, afirma Marengo. “Contudo, ficamos frustrados por passar as informações e denunciar, mas os desastres acontecerem da mesma forma. Faltam políticas públicas”, critica.
Em entrevista à Problemas Brasileiros, o meteorologista lamenta a falta de aplicabilidade da ciência, tantas vezes desconsiderada na elaboração de políticas públicas voltadas à prevenção de desastres. E elencou alguns pontos a serem pensados daqui para a frente para que tragédias como a vivida pelos gaúchos não se repitam, já que eventos climáticos extremos devem ser cada vez mais frequentes.
Falta assumir que o clima está mudando, mas alguns céticos, com muita influência no setor da Agropecuária e do Agronegócio, mesmo no Congresso, ignoram as evidências. Cansamos de mostrar as evidências, de falar de mudança climática, mas os recursos não serem dedicados a proteger a população dos desastres mesmo enquanto estes se intensificam. Isso significa que o Poder Público age de uma forma mais reativa do que proativa. Existe o Cemaden, por exemplo, que emite os alertas de riscos de desastres, e o Inmet [Instituto Nacional de Meteorologia], que emite alertas meteorológicos. Isto é, a parte de prevenção existe, e nós alertamos, mas nada é implementado.
Muitas cidades foram construídas nos anos de 1960 e 1970, considerando o volume de chuva daquela época, mas isso mudou. O volume de chuva aumentou, então, as estruturas não suportam mais. Isso aconteceu em Porto Alegre, com o rompimento das comportas no Guaíba, ou mesmo em São Paulo, onde, toda vez que chove muito, as ruas ficam inundadas. As galerias pluviais não foram preparadas para um volume de chuva cada vez mais abundante. Um Plano Nacional de Habitação está sendo elaborado, considerando setores estratégicos, para checar a resiliência das cidades diante de desastres e o que precisa ser feito para protegê-las. A ideia é justamente buscar soluções para diferentes setores. Uma das soluções é procurar planos de adaptação municipal — evitar construções em áreas de riscos, por exemplo. É preciso realocar essas pessoas. A outra solução é melhorar a estrutura hidráulica que protege as cidades. Porto Alegre é um exemplo do que precisa ser revisto e atualizado: a comporta se rompeu, a maioria das bombas para tirar água parou de funcionar, ou seja, o pior cenário. Nada funcionou quando deveria funcionar.
Nosso papel no Cemaden é oferecer evidências científicas. Já apresentamos evidências acerca da tendência de alta no sistema de chuvas no mundo todo, no Brasil também e, particularmente, na região sudeste da América do Sul (Uruguai e Argentina). E isso se observa nos últimos 70 anos. Significa que os extremos de chuva estão aumentando, a frequência de ondas de calor é maior, a temperatura está cada vez mais alta em todo o Brasil, tanto em áreas rurais quanto em urbanas. Isso impacta a população e as seguranças hídrica, alimentar e energética.
A previsão era de 150 a 180 milímetros de chuvas em maio, mas, em quatro dias, choveu mais de 500 milímetros. Claro que a previsão meteorológica tem limitações: se o modelo prever que choverá 200 milímetros, pode ser que chova 600 em determinado ponto, e 50 em outro. De qualquer forma, já havia alertas de risco de desastres hidrológicos no Rio Grande do Sul. Começaram a evacuar as pessoas, mas não dá para evacuar todo mundo.
Em setembro do ano passado, o Vale do Taquari também foi inundado, uma consequência do fenômeno do El Niño. Isso se repetiu, só que pior. Agora, embora mais fraco, o El Niño ainda está presente. Existem mudanças atmosféricas que fazem com que as frentes frias passem pelo Sul e se propaguem pelo Sudoeste. Desta vez, as frentes frias não conseguiram avançar, e toda essa chuva caiu no Rio Grande do Sul. Isso aconteceu por dois fatores: havia um transporte intenso de umidade da Amazônia e, ao mesmo tempo, uma onda de calor no Sudeste e no Centro-Oeste que agiu como uma bolha de ar quente, impedindo a passagem das frentes frias.
A frustração é grande quando vemos que o que a ciência diz não é aplicado. Há evidências imensas sobre o aumento das chuvas, mas as verbas para contenção de desastres é cada vez menor. Quando elaboramos a ciência, esperamos que tenha aplicabilidade, mas, aparentemente, não tem. Não existe plano diretor para ordenar o crescimento das cidades, então, as pessoas mais pobres, por falta de opção, moram em áreas vulneráveis. É uma injustiça, porque os que menos poluem são os que mais sofrem. O conceito de injustiça climática já existe e já acontece. Tentamos não ser pessimistas e produzir a melhor ciência. Emitimos alertas e, ainda assim, as pessoas continuam morrendo.