entrevista

Paralelos com o Oriente

16 de julho de 2021
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Diretor do Centro de Estudos e Culturas da América Latina da Universidade Saint-Esprit de Kaslik (Usek) e pesquisador no Centro de Estudos da Emigração Libanesa da Universidade Notre Dame-Louaize (NDU), ambas no Líbano, Roberto Khatlab é um dos grandes estudiosos da relação entre o Brasil e o país asiático.

Nesta entrevista, o historiador fala sobre a força da imigração entre os dois países, o comércio bilateral e as relações do Brasil com a região do Oriente Médio.

O conteúdo é parte da série Brasil Visto de Fora, uma parceria entre a PB e o Canal UM BRASIL, com apoio cultural da revista piauí. Conduzida pelo jornalista Daniel Buarque, a entrevista foi dividida em dois blocos: o texto a seguir e o podcast disponível aqui.

“Os árabes veem o Brasil como um país amigo, mas distante dos problemas políticos.”

A ideia de transferir a embaixada brasileira de Tel-Aviv para Jerusalém fez com que a população libanesa e dos demais países que não mantêm relação com Israel vissem o Brasil de forma diferente?

Não afetou tanto. Mesmo com as conversações, que não tiveram continuidade, o comércio continuou normal entre os países árabes e o Brasil. Existe uma corrente comercial muito forte envolvendo produtos alimentares, sobretudo com a Arábia Saudita, e não houve nenhuma quebra ou dificuldade para seguir com as relações.

O Brasil sempre recebeu muito bem a comunidade árabe, de forma que existe uma grande comunidade em solo brasileiro. Isso contribui para que os árabes vejam o Brasil como um país amigo.

O Líbano tem ainda uma grande colônia de brasileiros-libaneses que voltaram para o Líbano trazendo a família e, hoje, possuem dupla nacionalidade. São relações em que a política acaba não repercutindo tão fortemente.

Existe uma diferença na forma como o Brasil se relaciona com os diferentes países do Oriente Médio? Há uma interpretação diferente do Brasil entre eles ou se trata de uma imagem mais uniforme?

O Líbano é um país muito mais ocidentalizado, então, existe uma abertura maior, mas a receptividade do Brasil é grande, mesmo nos demais países. Podemos sentir isso na Síria, na Jordânia, no Egito, na Palestina e no Iraque.

Já nos países do Golfo, a presença do Brasil é mais recente e se dá muito por causa de trabalhadores brasileiros atuando na região, e não tanto em decorrência da imigração. 

Para muitas famílias, existe um sentimento de dívida com o Brasil, pois a imigração aconteceu em momentos de vulnerabilidade. A grande explosão [que atingiu o porto de Beirute em 2020], inclusive, reativou este movimento de imigração, e o Brasil os acolheu muito bem.

Existe também uma diferença de percepção do acolhimento do Brasil em comparação com os demais países europeus. O imigrante não se sente estrangeiro no Brasil; existe um esforço por parte da população brasileira para entender e acolher quem vem de fora. Por isso, eu sinto aqui, no Líbano, um apreço à hospitalidade brasileira. E se trata de um valor importante para a cultura árabe

Recentemente, estive em Damasco e ouvi muitos deles [sírios] falando da abertura dada pelo Brasil, com a concessão de vistos humanitários e possibilidade de permanência.

Mesmo o País tendo todas as suas dificuldades, muitos deles se adaptaram e transmitem esta mensagem, de um país grande, onde se pode transitar em busca de oportunidades pelos Estados. Aqui [no Oriente Médio], são países pequenos, e, quando há um problema, não há para onde fugir.

Agora, recebemos mais de 1 milhão de refugiados sírios e muitos iraquianos que tentam imigrar para outros países, dentre eles o Brasil. Existe uma paixão muito grande pelo povo, pela cultura e, claro, pelo futebol.

“Eu sinto aqui, no Líbano, um apreço à hospitalidade brasileira. E se trata de um valor importante para a cultura árabe.”

E como a região é vista sob o olhar do Brasil? É um olhar superficial ou estereotipado da região ou a amizade supera esta imagem?

A maior parte dos imigrantes árabes no Brasil é formada por sírios ou libaneses, que já estão em sua quarta ou quinta geração. O conhecimento do que acontece no Oriente Médio é, muitas vezes, transmitido pela televisão e pelos jornais que priorizam o lado negativo, que envolve crises e guerras.

Muitas destas famílias, inclusive, têm histórias de perseguição ou mesmo massacres, por isso há uma visão ruim do Oriente, que remete a conflitos e extremismo. Poucos conhecem a cultura que existe aqui.

Por outro lado, muitos têm uma visão de que o Brasil é uma grande favela ou que só existem futebol e carnaval. Esta relação superficial é uma via de mão dupla.

Uma das grandes fontes de renda do Líbano é o turismo, e, nos últimos anos antes de 2019, a grande parte dos turistas era de origem brasileira. Isso ajuda a romper com o estereótipo. Muitos dos visitantes que recebi ficaram admirados com cidades como Damasco e Beirute.

Pelo que o senhor diz, a imigração e a troca por meio de viagens ajuda a quebrar esta simplificação…

Sim, inclusive professores de história que nos visitam na universidade dizem que precisam rever todo o seu curso. A visão orientalista [que envolve uma visão eurocêntrica] é muito criticada aqui – e com razão.

Quando Dom Pedro II esteve aqui [em 1876], escreveu um diário bastante crítico, longe da visão orientalista. Ele falou da pobreza, do povo, da educação, não foi uma literatura enfeitada do Oriente Médio. Inclusive, aprendeu sobre a cultura árabe a partir de uma escola orientalista alemã, mais rigorosa na sua interpretação.

O Brasil tem se colocado como um mediador no Oriente Médio em discussões sobre o programa nuclear iraniano ou mesmo sobre as disputas entre Israel e Palestina. Como esta postura diplomática é vista?

À época das negociações com o Irã, não se viu nenhum jornal árabe repercutindo este assunto [a mediação], assim como as questões envolvendo a Palestina.

Já em 2020, após a explosão do porto de Beirute, o Brasil mandou uma missão humanitária ao Líbano. Na ocasião, o Brasil se prontificou a apoiar questões geopolíticas da região, mas igualmente houve pouca repercussão.

Os árabes veem o Brasil como um país amigo, mas distante dos problemas políticos. Além disso, existe uma influência histórica dos países europeus na política da região. 

Eu creio que precisemos dar mais passos para que o Brasil seja visto como um intermediário político aqui, no Oriente Médio. As ações, até agora, são muito pontuais.

E para reforçar esta relação, o Brasil deveria mudar o perfil ou seguir com um papel mais benigno, focando em imigração e comércio, por exemplo?

Acredito que ele deva focar mais na relação comercial e, como consequência, fortalecer a relação cultural. Veja que no Líbano temos o único centro de cultura brasileira no Oriente Médio, e muitos libaneses procuram aprender o português, justamente para fazer comércio com o Brasil.

A partir do momento que existe uma base comercial sólida, há também um fortalecimento do certame político, mas a balança comercial ainda é fraca.

Fernando Sacco/Daniel Buarque Divulgação
Fernando Sacco/Daniel Buarque Divulgação
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