LIRA NETO, jornalista e escritor cearense, é especialista em biografias. Somente Getúlio, considerado um dos títulos mais completos sobre o ex-presidente Getúlio Vargas, rendeu-lhe, em 2013 e 2014, dois prêmios Jabutis – o mais tradicional da literatura do País –, pelo primeiro e pelo segundo volumes da trilogia. “Decidi escrever ao constatar que Getúlio, a figura mais importante e controvertida da história brasileira, ainda não tinha uma biografia exaustiva, moderna, jornalística e isenta”, diz ele, contemplado com outros dois Jabutis – pelas narrativas da vida de José de Alencar, em 2007, e de Padre Cícero, em 2010. Em Maysa – só numa multidão de amores, resgatou a trajetória da cantora que despontou para o sucesso na década de 1950. Com 12 livros no currículo, o atual doutorando em História na Universidade do Porto, em Portugal, lançou recentemente nova versão de Castello – a marcha para a ditadura (Companhia das Letras), publicada originalmente em 2004, quando o golpe militar de 1964 completou 40 anos. Nela, joga luz sobre os fatos mais relevantes vividos por Humberto de Alencar Castello Branco, primeiro presidente desse período. Ao falar deste, Lira critica os setores da sociedade cuja visão é favorável a esse regime. “O saudosismo da ditadura tem duas fontes básicas: a ignorância histórica e o negacionismo ardiloso, baseado no cinismo e na má-fé.”
Esse, que já foi considerado um gênero menor – e mesmo bastardo – nos meios acadêmicos, tem sido cada vez mais revalorizado pela historiografia. Afinal, esse tipo de narrativa não tem o objetivo de reconstituir a trajetória de uma pessoa por si mesma. É uma obra que sempre tentará descortinar não apenas aspectos e intenções que singularizem o biografado, mas também (e, principalmente) o contexto histórico em que ele se move e no qual foi enredado. Isso nos remete a uma outra noção de tempo, menos efêmero. Depois, creio que a evolução da literatura, ao implodir o romance tradicional, nos deixou órfãos da velha e boa narrativa, que é devolvida pelos livros do gênero. O rigor da pesquisa não é incompatível com o prazer do texto. Como jornalista, escrevo preocupado com a recepção do meu trabalho. Busco ser absolutamente rigoroso no trato com as fontes de pesquisa. Ao mesmo tempo, pretendo atingir um público amplo, de não especialistas. Por isso, não creio que a leveza seja inimiga da consistência.
No caso de Castello Branco, considero pertinente compreender, entre outras questões, a construção do modo de pensar que se tornou hegemônico na caserna ao longo do século 20. Biografar Castello Branco significou, sobretudo, proceder a uma arqueologia do pensamento autoritário brasileiro que sempre esteve presente no Exército e nas Forças Armadas, um de seus principais focos de doutrinação e difusão. Ao reconstituir a vida do personagem desde os tempos do colégio militar até a sua chegada ao poder, por meio do golpe de 1964, tive em mente interrogar o passado para compreender a recorrência de certas estratégias discursivas do espectro conservador ao longo de nossa existência republicana. No momento em que as sombras do revisionismo histórico e do negacionismo dos horrores da ditadura tentam se impor como discurso oficial, cabe a nós revisitar o pano de fundo que conduziu o País ao regime autoritário, inaugurado pelo marechal Castello Branco.
Isso é importante na medida em que nos permite identificar as matrizes ideológicas que inspiraram o golpe contra o presidente João Goulart [vice-presidente da República que assumiu a presidência em 1961, após a renúncia de Jânio Quadros]. Desde a sua remodelação, no início do século 20, o Exército brasileiro tem se arvorado uma espécie de árbitro supremo da Nação, intervindo pela força das armas diante de potenciais situações de crise política. Uma análise do discurso evidencia que certas fantasmagorias alarmistas, como a do suposto “perigo vermelho”, foram insistentemente utilizadas para justificar a satanização dos adversários e mobilizar a sociedade em torno das mesmas bandeiras, como a do discurso seletivo contra a corrupção e a do ufanismo mais ingênuo. O mais surpreendente é que essa fórmula continue a produzir efeitos em pleno século 21.
Getúlio Vargas e Castello Branco são antípodas quase perfeitos. Um [Getúlio] era carismático; o outro [Castello], completamente desprovido dessa qualidade. Um era um líder das massas; o outro, um homem profundamente impopular. Castello, aliás, era um antigetulista ferrenho. Assinou o manifesto dos generais, documento que aprofundou a crise de 1954, a mesma que iria levar Getúlio ao suicídio. A única semelhança que percebo entre os dois é que cada um, ao seu tempo e à sua maneira, foram ditadores.
“No momento em que as sombras do revisionismo histórico e do negacionismo dos horrores da ditadura tentam se impor como discurso oficial, cabe a nós revisitar o pano de fundo que conduziu o País ao regime autoritário, inaugurado pelo marechal Castello Branco.”
Getúlio e a chamada “Era Vargas” são fruto de uma determinada época e de um tempo específico. Impossível querer imaginar alguma possibilidade de repetição do mesmo fenômeno, tomando como base momentos tão distintos.
Uma dificuldade inicial básica foi acessar os arquivos reservados dos anos de ditadura, muitos dos quais ainda estavam sob sigilo quando iniciei o trabalho, em 2001. Não digo que chegou a ser propriamente uma surpresa, mas foi, no mínimo, instigante rastrear a carreira militar de Castello, especialmente buscar documentação a respeito de sua participação como um dos estrategistas da Força Expedicionária Brasileira, a FEB, durante a Segunda Guerra Mundial.
Vivemos um momento político tenebroso, em que muitas das conquistas sociais, econômicas e mesmo civilizacionais, fruto do trabalho e da luta de gerações, estão sendo bombardeadas pelo grupo que chegou ao poder na última eleição presidencial.