Uma mirada rápida para o ano que se aproxima tende a se assemelhar a um quadro famoso do pintor suíço Paul Klee (1879-1940), Angelus Novus. Na obra, um rosto abstrato parece fugir, em desespero, de algo que o precipita ao fundo. Anos depois, o filósofo alemão Walter Benjamin o chamaria de “anjo da história” – e diria que a fuga é do passado, embora o futuro que o espera não seja tão esperançoso.
Na economia, a imagem é semelhante: a guerra da Ucrânia está longe de cessar, o acirramento da competição entre Estados Unidos e China dá o tom das conversas internacionais e, no Brasil, velhas discussões voltaram à tona diante da mudança iminente de governo. “O contexto externo está muito pior”, analisa o economista André Sacconato, consultor da Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de São Paulo (FecomercioSP).
“Contudo, se isso poderia indicar um 2023 mais duro para nós, não é exatamente assim”, completa, dando um pouco menos de desespero ao anjo da nossa história. Na perspectiva de Sacconato – que também é membro do conselho de Economia Empresarial e Política (CEEP) da Entidade –, a retomada consistente do crescimento dependerá das respostas do governo eleito às demandas do mercado, como estabilidade econômica e responsabilidade fiscal, além da capacidade brasileira em satisfazer a demanda crescente por negócios ligados ao conceito ESG.
Leia a entrevista.
Em primeiro lugar, o contexto externo está muito pior. A verdade é que a economia global vive de auxílios há duas décadas. Desde os ataques ao World Trade Center, em 2001, passando pela falência do [banco norte-americano] Lehman Brothers e chegando à pandemia de covid-19, os mercados mundiais se acostumaram com governos que compram títulos cada vez que surge uma recessão. Isso é possível porque foi um período com condições muito particulares para que não houvesse inflação: a China passou a vender milhares de produtos baratos, os países em desenvolvimento contaram com o reforço demográfico dos jovens – que tendem a ser mais poupadores – e a política climática, que é cara, não era um problema relevante. Enquanto existiu, foi um mundo perfeito, em que as bolsas mal começavam a cair e os governos já entravam no circuito comprando papéis e, assim, impediam grandes quedas.
Sim. Estas condições não existem mais. A China, hoje, é inimiga dos Estados Unidos e, além disso, não tem mais capacidade de mobilizar mão de obra barata. A demografia deixou de ser um bônus no Sul global, e, para completar, as exigências climáticas hoje determinam que haja uma virada em direção à matriz elétrica. Tudo isso fez a inflação voltar. Os países desenvolvidos precisaram correr para tirar moeda dos seus mercados como forma de segurar a subida dos preços, o que significou, por tabela, uma restrição por algum tempo ao crescimento – já que os juros aumentaram, fazendo com que as divisas investidas em outros países voltassem para lá, além de diminuir a liquidez. É este o mundo onde o Brasil está inserido, o que poderia indicar um 2023 muito ruim. Não é exatamente assim.
Porque apesar do cenário negativo, o Brasil está em uma posição muito privilegiada, do ponto de vista institucional, em relação aos seus concorrentes de investimento. A Turquia é governada por um ditador maluco. A Rússia está envolvida em uma guerra sem pé nem cabeça com a Ucrânia, além de também ser liderada por um autocrata. A Argentina nunca definhou tanto, assim como o México, e mesmo a China passa por problemas. No meio disso tudo, o Brasil acaba tendo condições mais definidas para atrair investidores. Um segundo argumento é que o Banco Central aumentou os juros antes de todo mundo, permitindo, agora, uma situação inflacionária mais cômoda. É tanto assim que há a possibilidade de até começar a baixar os juros. Por outro lado, eu ouvi de muitos investidores estrangeiros, nos últimos tempos, que, embora tenham vontade de injetar dinheiro aqui, não o fazem porque as margens que têm para investir precisam se direcionar a negócios com selo ESG – principalmente o “E”, de environment.
Nos últimos quatro anos, é fato que o Brasil passou a ser considerado um país que não trata do meio ambiente. Esta negligência fez com que muitos fundos, corretoras e bancos estrangeiros não pudessem investir aqui por força dos próprios regulamentos, que exigem investimentos em negócios que protejam a natureza. A mudança de governo mostrou – e até mesmo a ida do presidente eleito à reunião da COP27, no Egito – que o mundo acredita que o Brasil vai dar esta virada agora. Se acontecer mesmo, abrirá espaço para a entrada de bastante investimento privado. Então, apesar do cenário externo negativo, nós temos condições de abocanhar mais dinheiro de fora.
É impressionante notar como o mundo se adaptou à guerra. No princípio, os efeitos econômicos pareciam devastadores, principalmente em termos de energia e grãos, mas foram acontecendo adaptações que fizeram os países sentirem muito menos o peso do conflito hoje do que há seis meses. Para se ter uma ideia, o preço do petróleo está desabando – fazendo cair, inclusive, os combustíveis no mercado brasileiro e desacelerando a nossa inflação. O ponto principal dessa adaptação, talvez, foi a política chinesa contra a covid-19, que derrubou o crescimento deles e, por consequência, a demanda por petróleo. É óbvio que se tivesse um fornecimento normal das energias russa e ucraniana para a Europa, a inflação global estaria muito mais baixa. Este efeito vai permanecer, aliás. Os próprios Estados Unidos só sentiam isso quando a Rússia diminuía a oferta de petróleo, mas nem este impacto está acontecendo, o que é sinal de que a guerra terá cada vez menos peso nos indicadores mundiais.
Há uma pegadinha comum de que, com a guerra, o Brasil tomará o espaço da Rússia e da Ucrânia no mercado de commodities. Na realidade, a grande consumidora dos nossos commodities é a China – que não aplicou nenhuma sanção aos russos. Na verdade, os chineses estão aproveitando o preço ainda menor da Rússia, que não pode vender para outras partes do mundo. Dito de outra forma, este ganho de substituição não é tão direto, o que fará com que nossa balança comercial não tenha mudanças significativas. No fim, há muito mais pontos negativos nessa guerra para a economia brasileira.
Cada vez menos. O desafio do novo governo será outro: lidar com a pressão dos Estados Unidos para se afastar da China. Não se trata daquele teatro que [o ex-presidente estadunidense] Donald Trump chamava de “guerra comercial”. É mais sério do que isso. É um conflito tecnológico em que os norte-americanos passaram a ver a China como uma competidora e, mais do que isso, identificaram como ela não tem algo fundamental neste processo de automação global: os semicondutores. São os estadunidenses que permitem fabricar celular, robô, drone, rede 5G etc. Então, os Estados Unidos estão barrando qualquer desenvolvimento da tecnologia na China. As empresas norte-americanas não podem nem falar com chineses sobre o assunto. Neste cenário, o Itamaraty terá de ser habilidoso, porque não poderá nunca tomar um posicionamento claro. Esta pauta será muito mais forte, na agenda do novo governo, do que a guerra.
O mercado só pede uma coisa em troca: estabilidades econômica e fiscal. Ele não está sugerindo que os programas sociais acabem, mas que o governo defina quanto vai gastar e por quanto tempo – e que faça isso de forma consciente, até porque todo mundo sabe que estamos em um país pobre e que precisa, de fato de auxílios, de políticas afirmativas e de distribuição de renda. Além disso, o mercado quer sempre ver uma máquina pública mais eficiente, de tal modo que seja possível eliminar “penduricalhos”, como salários de grandes funcionários públicos, e realocar estes recursos onde deveriam estar, como os próprios gastos sociais. Esta demanda não existe porque o mercado é bom ou ruim, mas porque é essa estabilidade que permitirá investimentos. E entende-se por mercado, aqui, não a Faria Lima, mas empresas, investidores, quem está querendo gerar empregos. A Faria Lima só quer fazer o dinheiro render – e não há nenhum problema nisso também. Contudo, se tudo isso acontecer, as chances de crescimento do País, em 2023, são muito maiores do que este 0,5% que corretoras e bancos estão esperando nos relatórios de agora.
Do jeito que está sendo aprovada, ela tem uma vantagem. Havia duas possibilidades de tratar o Bolsa Família. A primeira era simplesmente tirá-la do teto de gastos – o que seria muito perigoso, porque daria uma “carta branca” para que o governo usasse o dinheiro sem controle. A segunda, que está na PEC, é continuar com o programa dentro do teto, mas esticando-o. Em outras palavras, o governo continua limitado de fazer estripulias fiscais e, com isso, oferece mais tranquilidade ao mercado.
Mas é bom ter um teto. Os brasileiros não aguentam mais pagar impostos, e o teto de gastos é uma forma de limitar uma expansão fiscal por esta via. Cerca de 40% do Produto Interno Bruto (PIB) já são formados por impostos, o que prova que o Brasil precisa de um arcabouço desses. Entretanto, do jeito que a PEC está sendo aprovada, com um prazo de dois anos, a visão do mercado é de que a concessão ainda se mantém alta, embora tenha um formato que agrade.
Não há críticas aos gastos sociais. Economistas sérios já sedimentaram que o gasto social é muito necessário no Brasil, tanto é que o Bolsa Família é um exemplo para o mundo. O problema é outro. A discussão fiscal existe para dizer que não se pode onerar ainda mais o contribuinte, porque se os gastos forem exagerados, estes vão se voltar justamente contra quem, em teoria, está se buscando ajudar. Um gasto público grande gera aumento de oferta monetária e, por consequência, inflação, e esta corrói a renda dos pobres – já que os ricos têm fundos para se protegerem. Há outra questão, que é o fato de cerca de 90% do orçamento público do País estarem engessados, diminuindo muito o potencial fiscal. No debate de agora, me parece que o mercado está dizendo para o governo: “Ok, gaste estes R$ 198 bilhões, mas também abra uma discussão de longo prazo sobre como podemos fazer uma reforma nas contas do Brasil, atacando privilégios, tirando auxílios tributários para ramos específicos e enfrentando problemas estruturais da economia”. Para responder melhor à sua pergunta, tenho sentimentos diversos: é uma discussão madura, sim, mas que deveria ter sido feita há 30 anos. Deveríamos estar no próximo passo, com essas reformas feitas e discutindo, agora, programas educacionais. No Brasil, sempre pensamos no urgente, nunca no importante.
É uma pergunta interessante. Eu vejo o efeito rebote da pandemia no fim. O nível da poupança já voltou ao normal, porque as pessoas que não perderam os empregos durante a fase crítica da covid-19 não foram a restaurantes, não viajaram, não saíram de casa – e daí acumularam dinheiro. O setor de eventos sente fortemente esta demanda reprimida, enquanto o comércio e os serviços já percebem a voracidade de consumo passar. Em 2023, será preciso renda nova, com investimentos e geração de empregos, porque a poupança não vai manter este fenômeno. No turismo, isso é claro, por exemplo. O mercado de trabalho até está melhorando, mas a desaceleração da atividade econômica pode fazer com que, no meio do ano que vem, a necessidade de renda nova seja ainda mais forte. Sem contar tudo o que está nas costas do governo, porque o mercado está querendo investir.
O aumento dos juros contribuiu, mas não foi o principal fator. A queda nos preços aconteceu mais por causa da retração dos combustíveis, que chegou a bater US$ 100 por barril e, agora, está na casa dos US$ 80, e não é à toa que a desaceleração foi mais forte em grupos como transportes e habitação. Se você observar a inflação em outros segmentos, como vestuário ou alimentos, porém, segue bombando. E a diminuição do ICMS terá de ser resolvida agora, porque os Estados vão precisar lidar com a renúncia fiscal. Entretanto, no geral, o quadro é de controle, embora a tendência seja de que a taxa de inflação só volte para a meta em 2024. Para o mercado, o que vale é a convergência, ou seja, a percepção de que a inflação está baixando gradativamente. Hoje, não é uma preocupação como foi há um ano.
Endividamento nem sempre é ruim. No nosso caso, é pernicioso na medida em que acontece por meio do cartão de crédito, uma modalidade com juros muito altos e que, mais do que isso, não representa um investimento de longo prazo, como comprar um imóvel. A qualidade da dívida é pior, portanto. Neste cenário, a perspectiva é de menor possibilidade de consumo. Por outro lado, o mercado de trabalho melhorou, com muita gente na formalidade, o que também ajuda no custo do crédito. A inadimplência ainda não está em níveis preocupantes, mas sua a tendência é um problema.
Tudo vai depender do mercado de trabalho. Se desacelerar, as pessoas não terão como pagar as dívidas. Se aquecer, as condições serão melhores. Daí voltamos ao início da conversa, em que tudo será definido a partir do que o mercado está pedindo ao governo: fornecer estabilidade econômica, para que se possa vislumbrar a longo prazo e seja possível investir de forma segura. O endividamento e a inadimplência vão preocupar mais (ou menos) dependendo das respostas do novo governo. Se forem negativas, é possível que os indicadores explodam a partir do segundo ou do terceiro trimestre de 2023.