entrevista

Quem faz tanta notícia?

23 de abril de 2024

Se, duas décadas atrás, alguém contasse à jornalista Flávia Lima que ela seria um dos grandes nomes do debate racial no Brasil, ela certamente se surpreenderia. À época trabalhando como repórter no jornal Valor Econômico, Lima passaria por algumas redações até chegar à Folha de S.Paulo como repórter, passou pelo cargo de ombudsman e, hoje, é responsável pela editoria de Diversidade, criada em 2019 para discutir a “variedade da vida social” brasileira.

N

Nesse período, não somente ela, mas a própria discussão ganhou espaço e robustez. “Há dez anos, por exemplo, eu certamente não estaria aqui falando sobre esse assunto com você”, comentou, durante o Ethos 360, evento organizado pelo Instituto Ethos, no fim de 2023, para debater diversidade nas empresas brasileiras. A PB foi a única mídia a cobrir o encontro.

“Isso aconteceu porque esse é um tema com muitos atores relevantes: a televisão, os jornais, o streamingas redes sociais… Todos vocalizando esse desejo de mais inclusão”, completou.

A seguir, trechos da conversa de Flávia com a PB, logo após falar sobre diversidade e imprensa em um dos painéis do Ethos 360.

As redações estão mais diversas?

Certamente. Quando comecei a trabalhar como jornalista, há 20 anos, a diversidade não era um tema nas redações. Dava para contar os profissionais negros nos dedos, sobretudo na área de Economia, na qual trabalho. Meu período como ombudsman [entre maio de 2019 e maio de 2021], na Folha de S.Paulome permitiu observar melhor o aumento da presença de pessoas negras, de mulheres em cargos de chefia, de jornalistas de outras regiões do País, coisas que não aconteciam lá atrás. Mais do que isso, a imprensa não costumava contemplar os assuntos que envolvem a população negra — e quando fazia, era sempre em editorias muito específicas: nos esportes, na cultura, mas nunca nas consideradas mais importantes. Mesmo como fontes, como colunistas, podendo dar opinião em economia, política, tudo era muito difícil. Hoje, vejo como a diversidade tem sido levada mais a sério. Dá para ver pelo ativismo, pelos profissionais negros nas empresas.

Qual é o impacto disso sobre a cobertura diária da imprensa?

A imprensa tem aspiração de refletir as questões da sociedade — ou do que chamamos de “interesse público”. Não contemplar os temas das diferentes populações impede que esse objetivo seja alcançado, ou pelo menos limita que isso aconteça na extensão necessária. Era o que acontecia com a população preta. Se quisermos refletir democraticamente a sociedade — e levarmos em conta a afirmação de que, com racismo, não há democracia —, então, deveremos entender a forma como os jornais encaram esses problemas.

Esse processo está acontecendo?

Ele é muito longo e está muito longe de uma conclusão — e nem sei se o verei acabar. O assunto está crescendo em uma velocidade importante, mas ainda longe do ideal. Há dez anos, por exemplo, eu certamente não estaria aqui falando sobre isso com você. Isso aconteceu porque é um tema com muitos atores relevantes agora: a televisão, os jornais, o streamingas redes sociais… Todos vocalizando esse desejo de mais inclusão. Se lembrarmos do assassinato de George Floyd naquele momento [em maio de 2020, o segurança George Floyd foi asfixiado pelo policial Derek Chauvin, durante uma abordagem policial em Minneapolis, no Estado de Minnesota, nos Estados Unidos, por uma suposta tentativa de compra com uma nota falsa de US$ 20. Um ano depois, Chauvin foi sentenciado a 22 anos de prisão], foi a demanda das redes sociais sobre como a imprensa estava enquadrando aquele acontecimento que fez com que houvesse uma mudança na cobertura. 

O debate sobre inclusão e diversidade serem coisas diferentes, cada uma com sua própria importância, caminhou junto com tudo isso?

Não sei se caminhou junto, mas é um tema que também vem sendo discutido com bastante ênfase. Na Folha, por exemplo, há uma regra de que os salários precisam ser iguais entre pessoas que desempenhem uma mesma função e que o façam com a mesma qualidade. O debate sobre mulheres ganharem menos do que os homens é mais antigo, porque elas estão há mais tempo dividindo esses espaços do que nós, negros. Percebe como é tudo ao mesmo tempo, agora? E muitas questões precisam ser equacionadas: o acesso, os salários, as funções…

As funções têm sido discutidas?

Sim. Essas pessoas precisam estar em cargos mais altos. Eu faço parte da chefia da Folha hoje, mas não posso ser a única. Mesmo a questão da permanência é relevante, tal como se vê nas universidades. Não é só dar acesso, mas também ter políticas que permitam aos estudantes negros permanecerem ali, como bolsas, um ambiente saudável etc. Essas discussões se refletem muito nas redações.

Vocês têm algum modelo de inspiração?

O [jornal norte-americano] New York Times sempre foi uma referência para a Folha. As mudanças que o jornal faz são acompanhadas há décadas, muito na questão racial. Mas não é só ele: o que acontece nas redações norte-americanas, em geral, sempre surte efeitos em jornais como a Folha. Eu acompanho, lá fora, a partir desses meios, e não só em relação aos negros, mas também em relação às mulheres. Temas como a menopausa, que eram pouquíssimo abordados na imprensa, agora são bastante pautados. E vale dizer ainda que muitas coisas inspiram no sentido exatamente do que não fazer.

Há algum tipo de desigualdade mais atacada do que outras?

O momento é da questão racial. A desigualdade de gênero é muito importante, como se vê sempre nas redações, em empresas, mesmo a presença de PcDs [Pessoas com Deficiência], que demandam maior participação e acessos melhores — literalmente até — nesses ambientes, ou, ainda, as populações LGBTQIAP+, o etarismo, enfim, tudo. Mas a questão racial é a que está mais em voga hoje. Depois de muitos anos, em que as pessoas olhavam ao redor e só viam gente branca, finalmente chegou o nosso momento de discutir isso com mais seriedade.

Você acha que a imprensa teve um papel ativo nesse processo? 

Exerce um papel misto. Às vezes, só reage ao que está acontecendo, mas, em outros momentos, age ativamente. Não vejo uma imprensa “na banheira”, embora não esteja sempre na vanguarda. Eu me sinto privilegiada por, ao longo da minha carreira, além de ter vivenciado essas mudanças, ter podido olhar para elas e poder criticá-las — como no período em que fui ombudsman. Mesmo com a força das redes sociais, espero que a imprensa continue servindo de baliza para o que o somos e o que queremos ser.

O conceito de “racismo estrutural” dá conta de explicar essa experiência?

É um conceito importante, retomado e, principalmente, popularizado pelo [ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania] Sílvio de Almeida. Hoje, todo mundo fala de racismo estrutural, embora muita gente discorde. O professor [emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro — UFRJ] Muniz Sodré, por exemplo, diz que nós não vivemos em um racismo estrutural, que seria mais um racismo institucional ou sistêmico. Acho que um termo só não consegue dar conta de uma realidade tão complexa e que produziu tanta desigualdade no Brasil. Os indicadores são assustadores. Os dados da violência, vistos a partir de recortes raciais, são absurdos. A mesma coisa com os níveis de pobreza, com indicadores de Saúde, Educação… Os conceitos servem para ajudar a pensar a sociedade, procurar saídas, mas, obviamente, não dão conta de uma realidade complexa como a nossa.

Essa preocupação conceitual se reflete no jornalismo?

Às vezes, olho com um pouco de temor, que deveríamos ler mais quando estamos lendo menos. Até para ter noção de como esses conceitos nos ajudam a pensar o Brasil e a explicar a nossa sociedade.

Vinícius Mendes UM BRASIL
Vinícius Mendes UM BRASIL
leia também