Uma das afirmações mais comuns a respeito do abismo social brasileiro é de que ele é único no mundo. Mas em que sentido? Para o sociólogo Sérgio Costa, professor titular e diretor do Instituto de Estudos Latino-Americanos (LAI, na sigla em alemão) da Universidade Livre de Berlim, na Alemanha, a resposta está na capacidade que o País tem em oferecer boas condições de vida para toda a população — o que não acontece em decorrência da concentração excessiva de renda. Leia a seguir, trechos da entrevista à Problemas Brasileiros concedida no Instituto Ibero-americano na capital alemã.
Se considerarmos a concentração de riqueza medida pelo coeficiente de Gini [medida estatística que indica o grau de concentração de renda de uma região] — que capta apenas a desigualdade de renda, não de patrimônio ou de poder, por exemplo —, o Brasil não é a nação mais desigual do mundo. Nossa especificidade é o tamanho do PIB per capita. Países pobres tendem a ser mais desiguais à medida que contam com elites muitíssimo ricas convivendo com populações inteiras na pobreza — às vezes, até extrema. No Brasil, ao contrário, o nosso PIB per capita permitiria que todo mundo vivesse em condições confortáveis, mas a concentração de renda é tão grande que tem gente literalmente passando fome de um lado e, do outro, pessoas que não sabem mais como gastar o tanto de recursos que possuem.
Ao analisá-la atualmente, a desigualdade diminuiu muito pouco. Houve um aumento significativo da concentração de patrimônio, como se vê em pesquisas baseadas no Imposto de Renda. O 1% mais rico do País ficou ainda mais rico ao longo desse período.
É mais uma organização do sistema que deve ser feita, sem dúvida. Mas uma reforma que se preste a diminuir a desigualdade no Brasil ainda não foi sequer desenhada no nosso cenário político.
O mecanismo clássico de redução da desigualdade é retirar rendimentos dos grupos mais ricos e passá-los aos mais pobres. Isso não houve no Brasil. A base da pirâmide experimentou um crescimento relativamente maior da renda do que a classe média, em especial nesse intervalo entre 2003 e 2013, impactada pelos ajustes do salário mínimo acima da inflação e pelas mudanças no mercado de trabalho. Naquele cenário, a desigualdade econômica caía por causa da conjuntura, e, em paralelo, programas como o Bolsa Família eram fundamentais para reduzir a pobreza, embora mantendo a desigualdade no mesmo patamar. A partir de 2014, porém, a recessão atingiu em cheio os mais pobres, e, depois, durante o governo Temer, os cortes previstos dentro do teto de gastos completaram o ciclo de novo crescimento da desigualdade.
Depende da economia e da política. Parece-me que o Brasil vai experimentar uma nova redução moderada da desigualdade, com a volta da política do salário mínimo e a Reforma Tributária. No entanto, caso o Brasil entre em recessão de novo, os pobres serão os que mais vão perder — e isso pode até compensar essas políticas, porque mesmo que elas existam e sejam implementadas, não adiantam nada se, ao mesmo tempo, a economia estiver gerando mais pobreza.
É preciso olhar como o Estado arrecada e gasta os recursos. Uma das medidas clássicas do Estado de bem-estar social é criar impostos progressivos que taxam menos salários e consumo e mais rendimentos do capital. No âmbito das despesas, o governo deve utilizar esses recursos oferecendo bens públicos de qualidade, como a educação. As cotas raciais e sociais promoveram uma revolução na universidade brasileira, mas, sozinhas, não conseguem redistribuir renda. Para que um investimento em educação tenha efeito real sobre a desigualdade, é preciso que a escola pública seja tão boa quanto a privada, porque é isso que sustenta as diferenças sociais no Brasil.
Tem sido usado de maneira pouco criteriosa. Há um papel político fundamental de mostrar que atitudes racistas não são eventos individuais, mas que o racismo se reproduz nas estruturas sociais. Ele ajuda a entender como alguém pode se beneficiar socialmente apenas por ser branco, por exemplo. Mas acho melhor falar sobre isso de outra forma: como um regime racista com vários níveis.
Um é o das estruturas sociais, no qual estão mecanismos como o da escola — explicado na resposta anterior —, que reproduzem a desigualdade. Outro é o campo das relações cotidianas. A presença do corpo negro na sociedade brasileira é muito mais visível hoje do que há algumas décadas, por exemplo, ocupando lugares de poder que estavam restritos antes. Nesse sentido, a desigualdade na esfera do dia a dia do País diminuiu, ainda que não tenha desaparecido totalmente. O terceiro campo é o do Direito e das políticas públicas, ou efetivamente o do Estado: em uma sociedade racista como a nossa, se não tivermos políticas como a das cotas, haverá políticas de reprodução do racismo. É por isso que é necessário criar dispositivos efetivos de compensação do racismo existente nas estruturas sociais e na esfera cotidiana. O último campo é o dos discursos, de insultos a ironias — que mudam na gramática, mas não no conteúdo. Veja como o racismo biológico do começo do século 20 é punido hoje em dia e como desapareceu do espaço público, mas não do privado. O racismo estrutural, então, é apenas um entre esses quatro campos de análise do fenômeno de reprodução do racismo.
Sim. Regime racista é um conceito totalizante que ajuda a entender uma sociedade no tempo e no espaço. O racismo que existia durante a escravidão no Brasil é totalmente diferente do que temos hoje, em que existem características compensatórias e um Direito que, na sua maior parte, contribui para reduzi-lo.
Os conceitos estão sempre em uma competição saudável. Nosso modelo com quatro dimensões do racismo me parece capaz de abarcar mais coisas. [O antropólogo] Roberto DaMatta, por exemplo, escreveu obras importantes sobre o tema nos anos de 1970 e 1980 que, agora, talvez já não sejam tão úteis. Ele observou a esfera cotidiana, que é apenas uma das dimensões. [O sociólogo] Muniz Sodré abarca, agora, as dimensões das estruturas e dos discursos, mas os movimentos contrários ao racismo dentro das políticas públicas, do Direito e mesmo dos discursos ficam ofuscados nas observações que ele faz. São análises que precisariam ser calibradas. A ideia de “regime” me parece a expressão já calibrada das diferentes interpretações existentes sobre racismo.
A política se parece muito com a economia quando notamos que é gerida mais por expectativas do que por situações dadas. Essas pessoas tinham uma expectativa de ascensão social permanente que não aconteceu, principalmente depois que começou a crise econômica, em 2014. Elas tinham chegado a um padrão mais alto de consumo, e quando o viram desmoronar, sentiram uma espécie de traição das promessas feitas pelos governos petistas. A ideologia do mérito também tem o seu papel, porque são populações que compraram a ideia de que não precisam de políticas sociais, pois devem fazer as coisas por conta própria — um comportamento que a direita batizou de “coitadismo”. Como elas também estavam esquecidas pela política, isso serviu como um poder de ação, como o encontro com um lugar de fala, e elas puderam se constituir novamente como um ator político — agora em rebelião contra esse “coitadismo”. Foi um discurso velho reciclado com êxito. No sentido de classe, essas camadas médias vão continuar exercendo um papel importante no Brasil, principalmente como eleitores, e é por isso que o governo Lula tem criado programas voltados a eles, como o Desenrola. No entanto, é preciso fazer sempre uma análise interseccional.
Podemos ver que brancos tendem mais a votar na direita do que negros, assim como homens, evangélicos e pessoas que vivem no Sul e no Sudeste.
Muita gente foca na renda, como o pessoal que está estudando com [o economista francês Thomas] Piketty. Há pesquisadores mais qualitativos, como [a antropóloga] Rosana Pinheiro-Machado, que insiste no gênero, ou [a cientista social] Patrícia Pinho, que analisa com base na raça. Parece-me ser um debate desnecessário, porque só a análise interseccional dá conta de tudo isso. A questão é que há situações determinadas. Por exemplo, se a pauta estiver ligada aos “costumes”, é possível que a religião tenha mais peso para o voto à direita, mas uma pauta econômica dá mais força à questão de classe. Fato é que o governo está sendo muito inteligente em criar programas para esse grupo.
Depende de quantas pessoas esses programas vão atingir, mas veremos, sim. O Desenrola é uma política pública complicada. A curto prazo é inteligente, mas, no longo, vai atrair a população novamente ao mercado de crédito, o que significará saldar as dívidas de hoje para contrair novas no futuro. Isto é: o governo sabe o que vai acontecer e, mesmo assim, entende que precisa disso para alavancar a economia. A ideia é tirar as pessoas do vermelho para que, daqui a três ou quatro anos, todo mundo esteja afogado pelos créditos assumidos.
Durante muito tempo, acreditou-se que o Brasil tinha contatos interculturais, interraciais e interétnicos que poderiam ser um padrão para o mundo. Contudo, nos últimos tempos, nós nos demos conta de que essa convivência mais plástica, moldada às diferentes situações, na verdade, escondia hierarquias e preconceitos muito duros. Por outro lado, sociedades completamente engessadas pela quantidade de mecanismos de proteção para administrar esses contatos também não são ideais. Logo, entender o balanço entre ambas — protegendo grupos mais vulneráveis sem endurecer as relações sociais — é o que o Brasil poderia oferecer ao mundo. Em que medida isso vai ser possível não dá para saber.
Depende do que vai acontecer a partir de agora. Quando tínhamos um governo avesso a multilateralismo, mecanismos internacionais de controle, direitos humanos ou meio ambiente, a tendência foi o mundo se afastar de nós. Isso mostrou que a quantidade de recursos e de pessoas e o tamanho do Brasil, em si, não são tão definidores do papel do País quanto à própria política. No longo prazo, se tivermos governos capazes de assumir as responsabilidades que o Brasil tem para o mundo — dos pontos de vista ambiental, social e cultural —, certamente terá um lugar importante no Ocidente. Mas se continuarmos sendo só exportadores de matéria-prima, um país em que a violência organizada dita o cotidiano, então, nosso papel será muito pequeno e, claro, negativo. As coisas estão em aberto.