Um dos primeiros sinais do transtorno do espectro autista (TEA) é a falta de contato visual. Crianças no espectro tendem a mostrar essa característica já a partir dos seis meses de idade, independentemente do ambiente cultural em que estejam inseridas. Dentre os desafios associados ao autismo está como identificar os subtipos, para que se indique as terapias mais adequadas para cada caso. Encontrar esses subtipos em uma população heterogênea é complexo e envolve uma grande quantidade de dados.
Apostando no uso do rastreamento ocular como uma opção para o diagnóstico de TEA, a médica psiquiatra Mirian Revers Biasão propôs um método não invasivo e que pode ser realizado em pessoas com diferentes níveis funcionais e idades. É um método de diagnóstico assistido por computador que usa dados de rastreamento ocular, ou seja, analisa o movimento do olho em relação à cabeça, soma modelos de atenção visual, processamento de imagens e inteligência artificial para diagnosticar o transtorno do espectro autista com precisão de 90% e especificidade de 93%. Os resultados estão no estudo “Computer-aided autism diagnosis based on visual attention models using eye tracking” (em português, “Diagnóstico de autismo pelo computador utilizando o rastreamento ocular baseado em modelos de atenção visual”), publicado na revista Scientific Reports, do grupo Nature.
No Dia Mundial de Conscientização do Autismo, celebrado neste sábado (2), a PB conversa com Mirian Revers Biasão, líder deste estudo e que atua há 11 anos em psiquiatria focada na infância e adolescência. Formada pela Universidade Estadual de Maringá, foi residente em psiquiatria na Universidade Estadual de Londrina (UEL) e em psiquiatria da infância e adolescência na Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas). Atuou como assistente de pesquisa no KIND-Karolinska Institutet, em Estocolmo, na Suécia. É médica psiquiatra e docente na Escola Internacional de Desenvolvimento (EID), em Curitiba, e mestra pela Universidade de São Paulo (USP).
Neste bate-papo, Mirian explica como se dá atualmente o diagnóstico de TEA e o que inspirou seu grupo a apostar no rastreamento ocular como uma nova opção. Comenta também os resultados do estudo, avalia como a sociedade entende a doença e a importância do conhecimento e da atuação multiprofissional na assistência aos pacientes e aos seus familiares e cuidadores. A especialista analisa ainda como o autismo foi assunto representado na cultura pop, em muitos casos, de forma estereotipada, enquanto outros personagens contribuem, de forma positiva, para o entendimento sobre o tema.
O diagnóstico do TEA é clínico, feito a partir de entrevistas com o paciente e familiares e da observação dos sinais e sintomas. É importante ressaltar que, na medida do possível, esta avaliação deve ser feita por uma equipe multidisciplinar, que traz informações importantes sobre o funcionamento da comunicação verbal e não verbal, dos padrões sensoriais, assim como da cognição global e social. Quanto mais soubermos sobre o padrão de funcionamento do indivíduo, mais fácil será entender o diagnóstico e orientar para as futuras intervenções. O PROTEA – grupo de estudos em TEA da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) – sob os cuidados da Dra. Helena Brentani e coordenado pela neuropsicóloga Joana Portolese, é focado no diagnóstico do TEA e conta com uma equipe multidisciplinar incrível.
A motivação para uso do rastreamento ocular foi pela vontade de ter dados objetivos e mensuráveis para somar as características que observamos nos atendimentos. Ao mesmo tempo, a Jéssica dos Santos, que fez seu mestrado no Laboratório de Pesquisa em Saúde da EACH (Lápis), viu uma reportagem sobre o uso da técnica em autismo e direcionou sua pesquisa para o tema sob o comando da Profa. Dra. Fátima Nunes, firmando a parceria entre os dois grupos. Hoje, esse recurso está disponível apenas para pesquisas, mas acredito que, futuramente, será usado na clínica. Ter um exame de auxílio diagnóstico, como o rastreamento ocular, favorecerá o reconhecimento precoce e, em casos de dúvidas, facilitará e acelerará o processo.
Os dados de rastreamento ocular que coletamos foram processados por um software desenvolvido especificamente para isso, pela Jéssica. A primeira etapa foi fazer um modelo e treinar a inteligência artificial do computador para identificar o padrão das crianças TEA e não TEA. Depois, o modelo criado pela equipe foi testado. Nós pedíamos para o computador ler os dados de uma criança e classificar como TEA ou controle. A precisão significa que o modelo acertou 90% dos pacientes com diagnóstico de TEA. Apesar desses resultados excelentes e animadores, ainda há um longo caminho para a aplicabilidade na clínica. Para começar, é necessário avaliar e testar um número maior de crianças, com faixa etária variada e, com isso, refinar o resultado.
O TEA é muito heterogêneo. Existem, sim, critérios diagnósticos que devem ser preenchidos, de forma simplificada: alteração na comunicação social e comportamentos e interesses restritos e estereotipados. Mas a apresentação é única em cada pessoa, variando também com a idade e o ambiente em que o indivíduo está. Por isso, o profissional precisa estar treinado, ter visto diversos pacientes com TEA e estar atento aos sintomas durante as sessões. É necessário tempo e, por vezes, informações de diversas pessoas para que o diagnóstico seja dado. A prevalência do TEA é em cerca de 1% da população, mas, durante a formação de médicos e outros profissionais da saúde, este não é um assunto abordado com a profundidade e a importância necessárias. Felizmente, isto está mudando, mas ainda há muito para evoluir.
A classificação em níveis é relativa a quanto de auxílio a pessoa precisa nas suas atividades diárias. Se é independente e precisa de pouco ou nenhum auxílio, será nível 1. Se precisa de muito suporte, com demanda de supervisão mesmo para atividades básicas, como higiene, alimentação e autocuidado, será nível 3. E o nível 2 é o intermediário. O objetivo dessa divisão é auxiliar no entendimento e na programação das intervenções terapêuticas. Essa classificação não é fixa, sendo que a mesma pessoa pode ter níveis diferentes ao longo da vida. E é válido ressaltar que o nível do TEA não está necessariamente ligado à capacidade cognitiva. Mesmo com a cognição preservada, com a inteligência dentro da média, pode precisar de bastante auxílio no cotidiano e vice-versa.
O planejamento do tratamento é individualizado, de acordo com as necessidades do paciente e da família, e pode contar com diversos profissionais: fonoterapeuta, terapeuta ocupacional, psicólogo, fisioterapeuta, psiquiatra, neurologista, treinador físico, psicopedagogo, dentre outros. Independentemente do nível de funcionamento, deve se entender e minimizar o que está impactando de forma negativa e quais são os pontos fortes que podem ser ampliados. Olhar para as fortalezas e até mesmo usá-las como base para aquisição de novas habilidades é o melhor caminho.
A participação da família é fundamental, afinal, é ela que está a maior parte do tempo com o paciente. Entender sobre o transtorno, quais são suas características, e facilitar a comunicação eficaz favorece uma convivência alegre e produtiva para todos. Os cuidadores podem ficar sobrecarregados e, por isso, merecem um olhar zeloso da equipe de saúde, recebendo também o suporte de que precisam.
Uma segunda etapa do nosso trabalho foi exatamente testar o modelo computacional para avaliar a eficácia para classificar os indivíduos a partir do nível de gravidade. Essa classificação não é mais utilizada hoje, não falamos mais em autismo leve/moderado ou grave, mas, por ser a classificação utilizada no questionário (CARS – Childhood Autism Rating Scale) aplicado no estudo, esse era o nosso dado. Assim, o software foi capaz de identificar corretamente, em 88% das vezes, se o paciente era classificado como grave ou não. Esse foi um primeiro passo para o uso futuro na clínica, talvez até para avaliar se o paciente está respondendo às intervenções de forma adequada ou não. Para isso, ainda são necessários mais estudos.
Infelizmente, vivemos em uma sociedade que não valoriza a diferença. Com isso, perdemos todos. Variar é o segredo para a manutenção das espécies, mutações promovem melhorias e levam à evolução. Diferentes pontos de vista nos levam às melhores soluções. Só iremos progredir como sociedade quando tivermos segurança para exprimir diversas formas de pensar. Para mim, o estigma está relacionado ao preconceito e à falta de informação. Acredito que, quanto mais falarmos sobre o TEA, difundindo informação baseada em ciência e de forma acessível, o estigma dará espaço para o entendimento, o respeito e a verdadeira inclusão.
A representação do TEA na cultura pop reforça estigmas e ajudam a ampliar o entendimento sobre o tema. Precisamos ter em mente que a construção de um personagem é limitada, com um papel específico na história e, por isso, muitas vezes, é estereotipada. Necessitamos de um olhar crítico para entender essas nuances. Em alguns casos, o autismo é tratado como uma característica do personagem, e não como o próprio personagem em si, aproximando-o da realidade. Exemplos desses casos são a detetive Saga, do seriado nórdico A Ponte, e a médica Virginia Dixon, da série norte-americana Grey´s Anatomy.
São tantas quanto conseguirmos imaginar. O TEA foi descrito a primeira vez por Kanner, em 1943, há menos de 80 anos, portanto. Isso, para a ciência, é pouquíssimo tempo. Desde a década de 1940, ampliamos muito o conhecimento sobre o transtorno. Isso se reflete, por exemplo, na mudança dos critérios diagnósticos, no aumento do reconhecimento e, portanto, da prevalência do transtorno. Ainda assim, precisamos entender melhor a genética, os fatores ambientais, a fisiopatologia, a manifestação dos sintomas em diferentes idades (há pouquíssimos estudos em idosos, por exemplo), como se manifesta nos diferentes gêneros, novas técnicas de diagnóstico, novas intervenções. Enfim, são grupos de pesquisa em todo o mundo com o olhar voltado para inúmeros aspectos do TEA, desde o nível molecular até o comportamento manifesto. A vantagem disso é que é muito estimulante vivenciar todas essas descobertas. A desvantagem é ficarmos suscetíveis a erros e ideias ainda não bem estabelecidas, mas tomadas como verdades absolutas. Por isso, é fundamental que os achados sejam replicados por diferentes grupos, com várias técnicas e no maior número de indivíduos possível. O caminho é valorizar a ciência e estimular as pesquisas, como pesquisador, voluntário, consumidor ou entusiasta.