entrevista

Reformas inevitáveis

22 de janeiro de 2021
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A reforma administrativa é importante para tornar o serviço público mais eficiente, além de racionalizar gastos e valorizar “o lado de cá do balcão”, beneficiando o funcionário que presta bom serviço ao seu principal cliente: o cidadão. A importância da reforma administrativa é o foco desta entrevista com o jurista Carlos Ari Sundfeld, professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e presidente da Sociedade Brasileira de Direito Público (SPDB), e a consultora e cientista política Leany Lemos, ex-secretária de Planejamento, Orçamento e Gestão do Estado do Rio Grande do Sul. Entrevista realizada em parceria com o República.org.

ESTE TEXTO FOI PUBLICADO NA EDIÇÃO ESPECIAL DA PB EM PARCERIA COM O CANAL UM BRASIL. AO LONGO DO MÊS DE JANEIRO, O CONTEÚDO COMPLETO DA REVISTA SERÁ OFERECIDO NO SITE DA PB.

Por que é importante discutir a Reforma Administrativa?

Carlos Ari Sundfeld – É fundamental que a máquina administrativa seja capaz de dar conta da sua missão: prestar serviço a um custo adequado e de maneira eficiente para a população. Há também profundas desigualdades
na máquina pública. Em algumas partes, há uma elite de trabalhadores públicos, muito bem tratada e remunerada. Entretanto, em outras partes – especialmente saúde e educação –, há pessoas que são molestadas pelo Estado e tratadas de maneira desigual em relação aos outros.

Leany Lemos – O olhar fiscal é essencial, ou seja, o custo da máquina. Deve haver um limite no peso que ela tem para não prejudicar a prestação de serviços públicos, que justifica a existência do próprio Estado. É necessário prestar serviços públicos de qualidade e universais, mas com custo suportável para a sociedade. Outro ponto importante é a questão da eficiência e qualidade do serviço. A Inglaterra está há 150 anos discutindo como melhorar o sistema de prestação de serviços públicos. São países que falam o tempo inteiro de Reforma Administrativa: como vai ser o serviço público, como vai ser prestado, o que pode ser melhorado. Esta agenda deve ser contínua.

Quais os principais pontos da Reforma Administrativa ideal?

Sundfeld – Um ponto relevante é fazer com que a carreira do servidor tenha a ver com o desempenho. Isso não é punição, mas um estímulo a melhorias. A avaliação tem de ser central na modernização do regime jurídico do servidor. E ele não é valorizado, porque a legislação, no decorrer do tempo, forneceu vantagens automáticas. O que isso produz? Desestímulo. Além disso, há progressão incontrolável dos gastos públicos. Muita gente atribui indevidamente à estabilidade os problemas de eficiência. Não é verdade, até porque há problemas de ineficiência também entre servidores não estáveis. A prioridade deve ser estimular e reconhecer o desempenho.

Leany – Do ponto de vista do funcionamento, é preciso incentivos financeiros e não financeiros para que as pessoas possam trabalhar bem. As pessoas querem autonomia, serem respeitadas, poderem dar ideias, terem voz e se desenvolverem. Há muita gente vocacionada e que trabalha por amor. É preciso identificar as formas de incentivos, há muita tecnologia e metodologia para se fazer isso. Uma delas é avaliar. Na escola, por exemplo, a avaliação tem de ser de alunos e pais.

A PEC 32/2020, enviada pelo governo federal ao parlamento, deixa de fora da reforma categorias como juízes, membros do Ministério Público, militares e parlamentares. É uma proposta justa?

Sundfeld – Grande parte da correção dos nossos problemas pode ser feita pelas leis. É fácil aprová-las? Não. É difícil, mas possível. Estamos numa democracia. Para isso, é preciso fazer coalizões, negociar e explicar às pessoas os motivos da reforma. É importante entender que, mesmo que haja uma mudança constitucional, isso não vai eliminar a necessidade de serem aprovadas leis específicas. Focar numa mudança de conceitos da Constituição só para servidores públicos desvia, em primeiro lugar, o foco da questão do ajuste fiscal. Foi posta a necessidade de dar estímulos às pessoas no serviço público. E um dos estímulos tem a ver com a correção das desigualdades. As carreiras privilegiadas são, em grande parte, as jurídicas, que têm benefícios que não fazem sentido. De outro lado, existem servidores que atuam em regime temporário, especialmente na saúde e na educação. É um regime precário que não tem nada parecido com a remuneração e com as vantagens daqueles que estão nas carreiras. Contudo, será que vamos conseguir fazer isso por meio de reforma constitucional? Será que a Constituição vai conseguir incorporar regras que ponham um regime de melhor igualdade para funcionar? É duvidoso. É muito complicado fazer reformas constitucionais que tentem tratar de todos os detalhes. É preciso, sim, ter maior padronização nacional, mas isso pode ser obtido por meio de leis complementares.

Leany – Não há reforma que consiga resolver todas as questões imediatamente. Ela pode tentar gerar mais igualdade dentro do sistema, incorporada à gestão fiscal saudável. Existem boas coisas nessa reforma que podem ser aprovadas, e, em seguida, haver outras reformas. A maior crítica que tenho da proposta é não valer para os atuais servidores. É um absurdo. Outro ponto importante é a estabilidade. Há maneiras de demitir com uma regulamentação do que é produtividade. O fim da estabilidade provoca riscos de patronagem e aparelhamento [do Estado] em governos populistas ou que não valorizem corretamente a gestão.

Como a discussão sobre a Reforma Administrativa deve ser conduzida para não se tornar sinônimo de precarização do serviço público e convencer a população sobre a sua necessidade?

Sundfeld – Reformas difíceis são aprovadas. Há um custo, e a aprovação da Reforma da Previdência mostra isso. As reformas adquirem legitimidade pelas ideias, pelas soluções e pelas frases com base em diagnósticos corretos. É perigoso apostar em ideias muito vagas. É preciso adquirir legitimidade pela qualidade de soluções, e elas não podem ser abertas. Ninguém no Brasil será convencido por uma proposta de simplesmente abrir a possibilidade de municípios e Estados deixarem de lado o concurso público e a estabilidade. Não é correto que seja assim. Nós podemos dar mais estímulos às reformas de Estados e municípios proibindo, por exemplo, vantagens automáticas, licenças-prêmio, etc. É preciso seduzir as pessoas com legitimidade, e propostas muito vagas têm dificuldade de conquistar a simpatia das pessoas. A incerteza nos afasta. E nós precisamos criar espaço para a modernização sem pôr em risco as conquistas que obtivemos.

Leany – Outro fator muito importante é a condução do processo. Estas reformas muito grandes e estruturantes são custosas e afetam muitas pessoas. Os afetados são facilmente identificáveis, mas os beneficiários estão difusos na sociedade. É difícil se organizar para pressionar pela Reforma Administrativa. Quem vai pressionar? O pai na escola ou o cidadão que foi ao hospital e não foi atendido. As corporações são muito bem organizadas e estão fazendo o seu papel. Não estou querendo tirar a função dos sindicatos, porque eles existem no mundo inteiro e estão aqui para defender, mas estão defendendo interesses particulares. O presidente da República não tem de conduzir todas as reformas, mas precisa haver uma condução da alta liderança que vá para o Congresso Nacional. Faltam coordenação ao governo em relação ao Congresso e aprovação das matérias. Quanto maiores a força e a visão de quem está conduzindo o processo, mais chances teremos de aprovação de uma proposta mais ampla.

Com a experiência da pandemia de covid-19, qual Brasil inspira na gestão pública e qual entristece?

Sundfeld – O Brasil que inspira é o Brasil público, com progressos incríveis nas áreas de educação e saúde. O Sistema Único de Saúde (SUS) é um exemplo. O que incomoda no debate sobre a Reforma Administrativa é que seja perdida a oportunidade de mostrar que ela não é contra ninguém, mas em favor do trabalho, da população e do desenvolvimento do Brasil. Não podemos apostar na ideia de que vamos melhorar o País acabando com a máquina pública. Temos de corrigir distorções e acabar com privilégios, para reconhecer o valor da máquina pública.

Leany – O Brasil da alegria, da criatividade e do otimismo. Enxergamos no setor público a quantidade de pessoas que se dedicam, porque acreditam no que estão fazendo. Isso anima muito, saber que essas pessoas existem e têm o propósito de ver o melhor acontecer. O que entristece é vivermos em um país que, apesar de ter essa cultura da alegria, tem também a cultura da desigualdade.

Entrevista concedida ao UM BRASIL – uma realização da FecomercioSP. UM BRASIL é uma plataforma multimídia composta por entrevistas, debates e documentários com nomes dos meios acadêmico, intelectual e empresarial. O conteúdo desses encontros aborda questões importantes sobre os quadros econômico, político e social do Brasil. Confira aqui a entrevista completa.

Leda Rosa Divulgação
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