“Todas as vezes que a África for vista com dignidade, com referências positivas e excelência, isso impactará positivamente o negro no Brasil.”
Diplomata com mais de 35 anos de carreira e especialista nas relações entre Brasil e África, a embaixadora Irene Vida Gala participou de diversas missões no continente africano, além de liderar a Embaixada do Brasil em Gana, entre 2011 e 2017.
Nesta conversa, a embaixadora trata da multiplicidade de relações com o continente em uma perspectiva histórica e a questão racial que une e divide os dois blocos, além das representações negra e feminina no Itamaraty.
O conteúdo é parte da série Brasil Visto de Fora, uma parceria entre a PB e o Canal UM BRASIL, com apoio cultural da revista piauí. Conduzida pelo jornalista Daniel Buarque, a entrevista foi dividida em dois blocos: o texto abaixo e o podcast disponível aqui.
“Todas as vezes que a África for vista com dignidade, com referências positivas e excelência, isso impactará positivamente o negro no Brasil.”
É preciso colocar essa relação em função do que é a África e da interlocução com outro continente. A partir do fim dos anos 1990, a África começa um processo de crescimento que só foi interrompido em 2020, em razão da pandemia. Entre os países que mais crescem no mundo, sempre há representantes africanos, o que garante um destaque do continente no cenário internacional.
Quando o presidente Lula assume em 2003, a África está “bombando”, e este crescimento foi reconhecido em revistas como The Economist e Time, com as manchetes “Africa Rising”. O presidente queria ir à África, e havia um compromisso de governo por força de um movimento social, em especial o movimento negro, que era parte da sua base.
A esquerda também tinha um componente associado ao movimento negro que colocou a África na pauta, mas, além disso, há o aspecto empresarial.
Empresas como Vale do Rio Doce e Petrobras já estavam no continente, havia construtoras em Angola buscando oportunidades. Então, foi um momento muito adequado – e o presidente “surfou esta onda”.
É interessante observar que, neste momento, há uma convergência muito grande com a pauta racial, o multilateralismo econômico, agendas mútuas no G20 e OMC [Organização Mundial do Comércio], além de interesses comuns em missões de paz, ou seja, toda uma agenda de convergência para o movimento negro, a diplomacia clássica e o empresariado.
Nesse período, a África continuou evoluindo muito positivamente, mas o Brasil parou por causa da Operação Lava Jato, que afetou as construtoras e o ecossistema que envolve empresas de outros setores, além da exportação de bens e serviços diversos. E, como diz o ditado, nós “jogamos a água do banho junto com a criança”; não soubemos separar as coisas, e isso jamais poderia ter acontecido, foi uma infelicidade.
Naquele momento em que tudo era mau e negativo, o Brasil perdeu presença na África. No entanto, é importante observar que o erro foi tão grande e a paixão tão deletéria que fomos incapazes de racionalizar o tema.
A grande maioria das empresas brasileiras na África, com exceção talvez da Odebrecht, encontrou um modo de se instalar como europeias.
Um exemplo é a Queiroz Galvão, que era a empresa mais forte em Angola. Ela abriu uma filial na Espanha e passou a operar como empresa espanhola, usando linhas de crédito comerciais e oficiais facilitadas pelo governo espanhol ou pela União Europeia e fazendo exportação de bens e serviços a partir da Espanha. Há outros exemplos, e isso mostra que não tivemos a capacidade de analisar o futuro.
E veja que o BNDES [Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social] era o grande esteio desta presença empresarial, não porque cedesse linhas de crédito, mas por fazer parte das configurações de garantia de crédito e engenharia financeira dos projetos.
É importante fazermos um trabalho honesto de reflexão sobre o que havia antes do período Lula do ponto de vista da não verificação de crédito. Isso porque, nos anos 1990, o Brasil já tinha linhas de crédito para Angola muito oxigenadas, mas sem elementos de compliance. E naquela época, o País já estava associado à ideia de corrupção em Angola.
Então, é preciso fazer uma limpeza e tirar o que não é bom e tentar recuperar isso em um esforço oficial, porque deixamos um bom nome. As empresas da construção civil que atuaram no continente africano se tornaram referência. Precisamos explorar outros nichos, e a construção civil era um nicho muito especial para o Brasil.
Há outros países entrando na África, como Israel, Turquia, Portugal e, além, claro, da China.
Acho que devemos fazer esta reflexão, não demonizar a presença nacional, porque até hoje continuamos ouvindo este discurso da corrupção das empresas brasileiras, e a continuação desse discurso é muito negativo.
Existe uma narrativa de que a flutuação da presença do Brasil no continente africano passa pela ideologização da diplomacia. Há, de fato, um conteúdo ideológico ou esta narrativa está desconectada da realidade?
Eu credito [a flutuação da presença brasileira] muito ao ideológico e de uma forma histórica. Os acadêmicos não seguem este caminho, mas trata-se da minha apreciação, de quem tem 35 anos de experiência nessa relação.
Mesmo a partir dos anos 1960, quando se inicia a historiografia oficial, o Brasil reage aos momentos da África ao contrário de projetar estrategicamente a região. E é possível fazer esta correlação em tempos de independência, crises, pujança comercial, etc. Nunca somos nós que projetamos o interesse, e isso é estratégico, porque não somos capazes de olhar a África como um player.
De modo geral, não somos muito bons de planejamento e sofremos hoje esta percepção de que nos falta capacidade e deveríamos melhorar essa percepção estratégica.
O Itamaraty até conseguiu manter uma relação com a África com o endosso do governo militar, porque havia essa percepção enquanto instituição diplomática. Um exemplo é o reconhecimento da independência de Angola [1975], mostrando a capacidade de pensar nosso ambiente de política externa.
Entretanto, nossa atuação é ideológica, porque continuamos olhando a África como um universo de segunda ou até terceira classe, e esta desqualificação nos faz perder a capacidade de pensar estrategicamente.
Porém, quando a África se impõe na agenda, nós saímos correndo atrás.
As empresas brasileiras que são muito mais pragmáticas e inseridas no contexto internacional sabem que o continente está “bombando” e vão para lá.
Talvez a grande exceção nesta história seja a criação da CPLP [Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, em 1996], porque tivemos uma figura visionária que foi o embaixador José Aparecido de Oliveira, cujo papel nesta aproximação ainda não foi devidamente reconhecido, pelo menos na literatura acadêmica.
Ele criou o Instituto Internacional da Língua Portuguesa quando foi ministro da Cultura, em 1989. Quando Itamar Franco se tornou presidente, Oliveira teve intenção de continuar esse projeto, que na verdade, vem do período de Jânio Quadros – porque o que ninguém sabe é que José Aparecido de Oliveira foi chefe de gabinete de Jânio Quadros.
Então, aquela ideia da política externa independente dos anos 1960 mantinha o seu vigor na cabeça do embaixador Oliveira.
“Se as mulheres podem ser promovidas, ocupar as posições [no Itamaraty], e isso não acontece, é certa e sabidamente porque existem tetos de vidro para elas. Porque é uma instituição machista, então, temos de denunciar isso.”
Adoro falar disso, porque mesmo no período do presidente Lula, se analisarmos os discursos, ainda há uma visão paternalista, de dívida.
É natural que o Brasil tenha uma dívida em relação à África, mas ela se manifesta, sobretudo, dentro do território brasileiro, quando os afrodescendentes vivem uma situação que muitos sabem qual é. Então, a melhor forma de pagar essa dívida começa no Brasil.
Essa relação não se construirá dentro de um componente de dívida, de gratidão. Defendo que a relação com os países africanos se sustente sobre um pilar de interesses comuns e compartilhados, pois ambos têm o que dar.
No caso da África, devemos observar a referência de dignidade e legitimidade de poder associada ao negro. Todas as vezes que a África for vista com dignidade, com referências positivas e excelência, isso impactará positivamente o negro no Brasil.
Conto uma história: uma das primeiras viagens do presidente Lula, salvo engano, foi ao Benin, onde ele foi recebido em uma cerimônia muito tradicional. Nessa cerimônia, colocaram sobre ele um manto, uma pele de um felino, ao som de tambores. Traçando um paralelo, seria como para nós levarmos uma autoridade a uma escola de samba. Nós não vivemos em uma escola de samba, mas é uma referência cultural.
Esse episódio [cerimônia em Benin] foi primeira página nos jornais brasileiros. Ninguém falou da agenda com a África, mas houve referência àquele momento.
Na ocasião, um líder do movimento negro comentou comigo que este estereótipo era muito ruim para os negros no Brasil, pois enquanto a África for vista como um continente onde todos continuam tocando tambor, a nossa capacidade de, no País, dizer que somos seres iguais está diminuída, porque a nossa referência cultural ainda é um continente atrasado.
Pense que em uma visita de uma autoridade à África se vá visitar um centro de excelência, por exemplo. A Google montou em Gana o primeiro centro de desenvolvimento de inteligência artificial no continente, pois haverá no futuro uma população gigantesca que precisará ser identificada de forma biométrica. E isso deve ser feito dentro do continente.
Outro exemplo: o Facebook, com dois outros grupos de comunicação, está instalando um cabo submarino de 37 mil quilômetros em torno da África.
Então, o que a África pode nos dar? Acho que o Brasil precisa buscar estas referências da excelência africana, do negro, das universidades que estão mais bem situadas que as brasileiras, e trazer isso para dentro do Brasil.
Devemos olhar para a África e legitimar aquela população, e isso tem um impacto dentro do País. E existem, claro, as relações tradicionais, como votos multilaterais e parcerias. Quando quebramos a patente dos medicamentos contra a aids, o posicionamento africano foi vital, portanto, a agenda é múltipla.
Não será dádiva, não será gratidão. Serão interesses comuns e, sobretudo, pensar como a África se projeta sobre o Brasil para empoderar, para mostrar qualificação do homem negro e da mulher negra.
Até um tempo muito recente, o Brasil, oficial e majoritariamente não tinha nenhuma propensão a discutir questões de raça e gênero. O Itamaraty foi precursor em trazer ações afirmativas, e, por isso, no começo do século [2002] tivemos o início do programa de ação afirmativa para permitir que jovens negros pudessem se preparar para o exame. Hoje, temos até um programa de cotas.
Representatividade não significa mandar embaixadores negros para a África. Quando Raimundo Sousa Dantas foi a Gana, sendo o primeiro embaixador negro mandado para lá, o presidente do país afirmou que era preciso mandar embaixadores negros para a Europa.
Atualmente, a embaixadora dos Estados Unidos na ONU [Linda Thomas-Greenfield] é negra, por exemplo. Então, o que precisamos é ter negros em representações de destaque na diplomacia brasileira.
Em relação à representação feminina, é importante destacar que as mulheres estão no Itamaraty há mais de cem anos, mas, dando um salto histórico para o período pós-democratização, vê-se que as mulheres têm sido invisibilizadas no Itamaraty. Elas não são porta-vozes, não estão em postos importantes.
Na gestão do ministro Celso Amorim [2003-2010], houve um esforço informal, mas não como uma norma, e após esse período houve uma regressão.
A invisibilidade das mulheres depõe contra o Brasil. Hoje, em pleno ano de 2021, as mulheres estão em postos importantes em outras chancelarias.
Segundo uma reportagem recente do The Guardian, os principais postos da diplomacia inglesa são, hoje, ocupados por mulheres, além de postos do G6 e outras representações importantes.
Então, o Brasil demonstra, ao não dar visibilidade para mulheres na sua diplomacia, que não está habilitado a participar de um mundo que, hoje, impõe a regra de dar voz às mulheres.
Tenho um colega embaixador que ocupou postos importantes e, recentemente, comentei com ele sobre a falta de representação feminina no Itamaraty para cargos de chefia, subsecretarias, etc. E ele me respondeu: “Mas temos mulheres para colocar?”.
Isso é uma afronta, um descaso com a qualificação que o Itamaraty dá ao seus funcionários independentemente do gênero. Se as mulheres podem ser promovidas, ocupar as posições e isso não acontecer, é certa e sabidamente porque existem tetos de vidro para as mulheres, porque é uma instituição machista. Então, temos de denunciar isso.
Eu, que cheguei ao cargo de embaixadora, faço essa denúncia, sobretudo para as próximas gerações.
O pessoal mais jovem costuma me chamar de Irene, informalmente, mas reforço: “Embaixadora Irene”. Primeiro, porque há muito poucas mulheres que chegam à posição de embaixadora; segundo, porque tenho a obrigação de funcionar como visibilidade, de modo a trazer mais mulheres ao Itamaraty e fazer com que as minhas colegas que estão lá dentro acreditem que podem chegar à minha posição.
Sigo dizendo, nós não falamos da presença de mulheres no Itamaraty, mas da ausência, sobretudo em postos de chefia. Espero que isso mude, tenho confiança.
O atual ministro [Carlos Alberto] França, no seu discurso de posse, mencionou a questão de gênero e a importância da representação feminina. Então, faço votos que ele torne isso realidade, o País precisa disso. Estamos aqui, como diplomatas, prontas para servir ao Brasil.