O enfraquecimento do multilateralismo é preocupante para o mundo em razão do surgimento de interesses geopolíticos localizados e territoriais. “O que é uma relação bilateral? É a lei do mais forte”, opina o engenheiro agrônomo e professor Marcos Jank, ao analisar os impactos da guerra russo-ucraniana. Ele vê com ressalvas a aliança entre Rússia e China, já queo gigante asiático é o maior cliente do Brasil no agronegócio. “A Rússia é o nosso competidor potencial, pois dispõe de quantidade absurda de terras e está ampliando as áreas produtivas.”
Jank avalia também a insegurança alimentar global e a inflação, ambas desencadeadas pelo conflito. Leia os principais trechos da entrevista concedida ao Canal UM BRASIL e publicada pela PB, realizações da FecomercioSP.
A volta da geopolítica – combinada à pandemia e aos problemas de oferta e demanda pelo mundo afora – fez com que os mercados agrícolas já estivessem muito estressados, com preços e custos altos. O problema dos fertilizantes já estava colocado antes mesmo da guerra, porque a Rússia decidiu não exportar para privilegiar a produção doméstica, e vários países fizeram isso. Então, já vínhamos de uma situação complicada. De repente, aparece essa guerra, que envolve dois países grandes supridores de energia, fertilizantes e produtos agropecuários. A Rússia tem o seu papel em petróleo e gás natural para a Europa e para a China. A Rússia é o maior exportador mundial de fertilizantes, ao lado da Bielorússia – e as duas, juntas, ficam ainda maiores. Rússia e Ucrânia, juntas, representam quase 30% da exportação mundial de trigo e quase 20% da exportação mundial de milho. Isso é muito assustador. O último estresse ocorreu em 2008, quando enfrentamos problemas de safras, os preços dos grãos subiram e houve uma crise muito forte no Oriente Médio e no Norte da África, que resultou na Primavera Árabe. Agora, estamos vendo o mesmo cenário, porque, basicamente,75% dos grãos importados pelo Oriente Médio e pelo Norte da África são oriundos de Rússia e Ucrânia. Fora isso, no Brasil, por exemplo,atualmente,85% do seu consumo são de matérias-primas importadas, nitrogênio, fósforo e potássio, e a Rússia é o nosso principal fornecedor. Atualmente, importamos, da Rússia e da Bielorússia, 25% das nossas necessidades de fertilizantes. A safra começa com as águas de setembro, e não há garantia que teremos volume suficiente.
Dois grandes problemas resultam do conflito. O primeiro é o de inflação e insegurança alimentar. Se analisarmos os dois últimos anos, tivemos um IPCA [Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo],o principal índice de inflação, de 15%,e o grupo de alimentação, dentro do IPCA, chegou a 24% de aumento. A insegurança alimentar é uma realidade no Brasil e será também, graças à guerra, em várias regiões do mundo, com destaque para o Oriente Médio.
O outro impacto complicado está nos custos de produção, porque a falta de fertilizantes se soma à alta dos preços de petróleo, gasolina e diesel, o que já está claramente aparecendo no País, ao lado de problemas de aprovisionamento de máquinas, equipamentos, tratores e colheitadeiras, adversidades que também resultaram da pandemia. Estamos assistindo a um aumento acentuado de custos de produção na agricultura.
O lado positivo é que o Brasil é um grande supridor de soja e milho. Por exemplo, estamos entre os quatro maiores exportadores do cereal no mundo – o primeiro são os Estados Unidos; o segundo é o Brasil; o terceiro, Argentina; e o quarto, a Ucrânia. O fato de este último estar impossibilitado de vender vai permitir que exportemos mais milho. Também há oportunidades que surgem no óleo de soja e nas carnes. Outro lado positivo é que, de certa maneira, nestes últimos anos todos, houve uma demanda muito firme da Ásia para os nossos produtos. A China, sozinha, representa quase 40% do que exportamos. Os bons preços também beneficiaram o setor.
Precisamos ter um plano para fertilizantes, que é muito estratégico, mas não vai resolver o curto prazo. O que pode ser feito pelo governo é facilitar as importações e buscar novos fornecedores. A respeito do petróleo, um choque afeta toda a economia. Espero que essa guerra termine antes disso.
Temos um enfraquecimento do multilateralismo em todas as áreas. O que vejo de mais preocupante, hoje, é este mundo que reaparece com interesses geopolíticos localizados, territoriais. A Rússia, preocupada com as áreas da antiga União Soviética, faz uma invasão de uma violência absurda. A China, que tem dificuldades em todo o seu entorno, enfrenta problemas com Coreia, Japão, Taiwan, Hong Kong, o mar do Sul e a Índia. Os norte-americanos fazem uma aliança com os ingleses e os australianos. Isso tudo está voltando. Então, me preocupa muito uma aliança entre Rússia e China, porque o gigante asiático é o nosso maior cliente atual do agro – aliás, do mundo –, e a Rússia é o nosso competidor potencial, pois dispõe de quantidade absurda de terras e está ampliando as áreas produtivas, em decorrência da mudança do clima. Isso, para nós, é prejudicial, mas, para eles, faz novas áreas surgirem. Além disso, estão, desde a invasão da Crimeia, aumentando a autossuficiência rapidamente.