“O que me assusta é a tônica da comunicação agressiva”
Olhar em perspectiva para o passado e o presente, na tentativa de avaliar o futuro. Essa é a estratégia do historiador Leandro Karnal – nome entre os mais reconhecidos intelectuais da atualidade – para repensar as estruturas sociais e o que nos aguarda diante da crise sem precedentes do coronavírus. As fraturas são duras e dolorosas. Ainda assim, Karnal se mantém otimista, “quase cronicamente otimista”, mas admite que as crises também exaltam os canalhas. “o que me assusta é a tônica da comunicação agressiva. Primeiro, é preciso preservar a vida; depois, empregos e economia; e, por fim, a nossa capacidade de comunicação.”
“O que me assusta é a tônica da comunicação agressiva”
A velocidade da integração econômica aumenta a velocidade da integração biológica. Qualquer epidemia, hoje, tem uma capacidade imensamente maior de se alastrar do que no passado. A gripe espanhola atingiu jovens, e a atual crise atinge, em sua maioria, pessoas mais velhas e com problemas crônicos. No entanto, hoje, temos mais informação e recursos, a resposta da ciência é muito mais rápida. Há mais gente consciente, mas toda epidemia gera negacionistas e histéricos, dois polos terríveis: aqueles que dizem que não está ocorrendo nada e aqueles que dizem que é o fim do mundo. Há paralelos sempre, mas cada epidemia é única. A atual mata menos do que a peste bubônica e a varíola, mas tem um poder de informação, de destruição econômica, talvez ainda pior do que as outras no passado.
Quando se fala em falha de comunicação, pressupõe-se que, na República Velha, existia uma secretaria da comunicação. Não, o autoritarismo era maior – e a cobrança do público, menor – do que hoje. As classes chamadas de “perigosas”, as baixas, eram alvo do mais profundo ataque, não havia nenhuma concessão, porque as eleições, apesar de o voto ser universal masculino, eram totalmente fraudadas. As campanhas, cheias de boas intenções – lideradas por sanitaristas como Osvaldo Cruz –, falavam de uma coisa nova, a vacina, que significava lancetar, fazer uma ferida no braço de alguém, introduzir ali uma patologia e fechar. Isso feito com o auxílio da polícia batendo com a bota na casa das pessoas, vacinando à força. É falta de comunicação, de capacidade das classes dominantes de pensar as classes baixas. Tudo em meio a um processo de botar abaixo os cortiços do Rio de Janeiro para construir as grandes avenidas de uma cidade que tinha de ser europeizada, seguir o modelo de Paris. É uma repressão política misturada com falta de comunicação. A imprensa carioca tratou como um choque entre a ignorância e a ciência, mas é um choque entre o autoritarismo e as pessoas. Não é um povo ignorante, é um povo resistente ao autoritarismo.
Quando os grandes teóricos pensavam na arte da retórica, pensavam num público homogêneo. Entretanto, o que existe hoje é uma dissociação de públicos. Se o político “A” faz um discurso dizendo “não se preocupem, não é nada, isso é um plano da China, vamos continuar vivendo normalmente”, há um público enorme que aceita isso. Se o político “B” diz “vamos fechar tudo, isso é terrível, nós estamos enfrentando a pior crise da história”, também há público para isso. Há público para alarmistas, há público para negacionistas, há público que segue a Organização Mundial de Saúde (OMS) e há público para a histeria máxima. Hoje, a grande questão da retórica não é mais a eficácia, mas o conhecimento de um público muito heterogêneo, difícil de ser dominado. E a internet, ao dar voz a todos que tenham acesso a ela, produz uma falsa igualdade.
Gostaria que fosse. Vou usar o futuro do pretérito, porque é o que eu gostaria. Meu desejo é que a grande lição da crise seja a consciência de que estamos inseridos em uma realidade maior e que não adianta eu me fechar no meu condomínio, não adianta eu me fechar na minha ilha de conforto, porque um dia, se eu ignorar o todo, os bárbaros tomam Roma. Eu sou otimista, quase cronicamente otimista. Sou professor, lido com jovens, e é um defeito de caráter um professor ser pessimista. Quem tem filhos ou quem educa tem de ser cronicamente otimista para dar o direito à próxima geração de fazer melhor. Todavia, também sou realista. Dentro da minha Realpolitik, devo enxergar que as crises também exaltam os canalhas, aqueles que querem tirar proveito ou fazer da tragédia um capital político. O que me assusta na crise é a tônica da comunicação agressiva, de todo mundo se insultando, achando que o perigo é o vizinho que bate (ou não bate) panela, e não o vírus. Acho isso muito perigoso. Então, é preciso enfatizar esta questão: primeiro, preservar a vida; segundo, empregos e economia; e, por fim, a nossa capacidade de comunicação, sem a qual não existe Brasil.
“Não adianta salvar as pessoas da infecção para jogá-las num desastre econômico, salvá-las da doença para jogá-las na fome.”
Hamlet tem aquele mal-estar de toda pessoa consciente e inteligente, porque a inteligência gera um mal-estar. Então, esta náusea que Hamlet tem, de que a Dinamarca está errada e ele vai ter que corrigi-la… Ele não pode ter a insensibilidade das pessoas ignorantes e adota o pior que pode ser adotado: o papel messiânico de redimir o mal. E quem acha que tem uma missão e se torna messias é a pessoa que necessariamente vai sucumbir com a missão. Gostaria de ser um Hamlet que fez psicanálise, este é o meu projeto de vida: ser um Hamlet psicanalisado. Um Hamlet que saiba dominar os próprios demônios para não se tornar um messias patético, sem a graça de Dom Quixote.
O meu otimismo é dizer o seguinte: para tratar alguém de alcoolismo ou qualquer vício, o primeiro passo é a consciência. Enquanto o sujeito não diz “eu sou um alcoólico”, ele não faz nada para abandonar aquilo que o está destruindo. Então, esta crise trouxe à tona a brutal desigualdade do País, que já estava aí. Logo, pode ser o primeiro passo para curarmos tudo isso. Sou otimista a esse ponto, mas com certo peso, pois vai melhorar, mas, antes, vai piorar ainda mais. Teremos mais choques políticos, mais mortes e mais gente batendo a cabeça, porque ainda estão pensando na carreira, no emprego, no mandato e no prestígio nas redes sociais. Tem pouca gente pensando no coletivo. Felizmente, pelo menos, a crise não é um inferno, um purgatório, ou seja, há um tempo predeterminado de sofrimento, não é para sempre – nada é para sempre, e esta crise não será para sempre.