Créditos da imagem: Pipoca & Nanquim
Roteirista, quadrinista e vencedor do Prêmio Jabuti, Jefferson Costa em seu mais recente trabalho lançado pela Editora Pipoca & Nanquim, apresenta de forma intimista diálogos realistas pouco vistos nos quadrinhos. Uma história que atravessa gerações e que nos leva a uma reflexão sobre nossa memória, história e pertencimento de onde estamos, quem somos e por quê.
A proposta passa pelo conceito de pertencimento, autodescoberta, como indivíduo e como agente social. A produção do livro durou aproximadamente um ano, de entrevistas a roteiro, de roteiro a narrativa e arte. Sendo que a arte foi, curiosamente, o que se desenrolou de forma mais rápida, executada em menos de três meses.
As entrevistas foram uma forma de eu me organizar, registrando histórias que ouvia desde criança. Muitas, ouvi várias e várias vezes. Sempre pela oralidade, nos encontros de familiares, reencontros que ativam lembranças.
Registrar, anotando em um caderno me ajudou a criar uma linha temporal e perceber onde tinha mais a extrair. De elaborar as perguntas certas, que viriam a compor o contexto do que não estava comumente na oralidade da narrativa. Fui me aprofundando, montando um conjunto a partir dos pedaços de cada relato.
A proposta narrativa não convencional é de que o leitor possa experimentar o exercício de visita ao passado para compreender a história. De forma literal, porque é disso que essa história trata, e é disso que essa história foi feita.
A oralidade é cotidiana, em todas as famílias, de diversas formas, mesmo em diferentes culturas. Mesmo depois do advento da escrita, muitas culturas pela história da humanidade seguiram contando suas histórias por canções, trovas, teatro etc. Pra mim, o audiovisual é a versão moderna dessa forma de transmitir ideias.
E é perceptível como é a forma mais poderosa, mais produtiva, mais massificada de formar ideias comuns, de controlar narrativas. A diferença da minha proposta mais ligada à forma da contação dos povos africanos, como um resgate, pois quando escravizados e desumanizados, proibidos de manter família e praticar suas tradições, a oralidade se torna a única forma de manter suas culturas vivas. Por princípio, ela se torna forma de resistência contra o extermínio cultural e a assimilação, contra a narrativa única.
Por ser uma história de conexões muito pessoais, o mais difícil foi ter que escolher e decidir as narrativas da pesquisa que inevitavelmente estariam de fora desse primeiro livro.
Créditos da imagem: Pipoca & Nanquim
Olhar pra trás e aprender com o passado é fundamental. Sem esse exercício estamos fadados a cair nas mesmas mazelas cíclicas. Sem esse aprendizado, não tem evolução como sociedade.
Mais que nunca, com o “aprimoramento” desse processo de controle dos fatos, que significa poder, com a “pós verdade”,“fake news”, como disse antes, a narrativa única garante controle das massas e manutenção de poder. A revisão histórica se faz necessária e ela, ao se impor, confronta tudo que foi aprendido no processo de massificação da narrativa única como verdade. A negação ou “negacionismo” garante a manutenção da narrativa única.
Nessa resposta, posso ir muito longe, mas vou tentar ser sucinto. A começar pelo sufixo “eiro”, que diz muito da construção dessa falsa identidade e pertencimento. De como a esmagadora maioria minorizada é tratada como apenas mão de obra trabalhadora e não cidadão. Os demais, por causa de seus privilégios, se sentem muito mais “italianos”, “japoneses”, “alemães”, ” chineses”, “árabes”, “judeus”, como cultura e pertencimento em primeiro lugar, e se veem “brasileiros” quando pertinente à manutenção de seus privilégios. Não é uma acusação, é um fato. Partindo do mesmo princípio e justificativa da falsa relação de pertencimento para os que teriam na identidade de brasileiro sua única opção, como para os que carregam outras tradições culturais livremente. Vide a forma como nos relacionamos, como nação, com os povos originários, tratados como um corpo estranho, diferente, por exemplo, da forma adotada em países vizinhos que passaram pelo mesmo processo colonizador. No Paraguai, eu soube recentemente que placas de sinalização nas ruas são escritas em espanhol e guarani. Isso já diz muito.
Posto isso, cultura é pertencimento. No Brasil não se valoriza cultura. E a cultura brasileira mais própria em si, seria a nordestina, tratada como exótica, estranha, rejeitada, “regional”, menor. E ao dizer “tratada” volto ao conceito da narrativa única.
Os poucos privilegiados, sim. A grande maioria, não. A história oficial em seu movimento, mesmo sob a ótica da narrativa única, já explica os porquês.
Todas e nenhuma…mais nenhuma do que todas (risos). E essa não é uma resposta evasiva. A história do nosso país é repleta de hiatos propositais, de versões oficiais unilaterais, fabricação de heróis duvidosos. História que desconsidera o lugar e herança cultural de povos originários e formadores dessa própria história. O que destrói qualquer ideia de pertencimento e integração de povos. Integração é anulação e absorção. Pertencimento é ilusão.
Há quem se contente com toda essa confusão fabricada sem questionar, talvez por poder recorrer à sua herança além-mar, ou por um resquício de euro-pertencimento, e ou ainda, abraçar a boia da salvação de um povo eleito resumindo e reduzindo toda humanidade e cultura a uma única formatação.
Abismo é a palavra. Gigante. Interesses de poder vão contra o movimento de respeitar e exaltar todas as culturas, todos os indivíduos.
O Brasil, definitivamente, deu errado. Citando os músicos que me ajudaram a contar essa história, faço um recorte com a última estrofe da música “Fuá na casa de Cabral” da banda Mestre Ambrósio, que seria um pensamento consciente de um Pedro Álvares Cabral…
Mas na hora da verdade
Quando passou a cachaça
Seu Cabral sentou na praça
Caiu na reflexão
Disse: “Esta situação
sei que nunca mais resolvo!”
Então falou para o povo:
“Juro que me arrependi
o Brasil que eu descobri
queria cobrir de novo!”
Olha, acredito que cada um deve encontrar sua forma de descolonização do pensamento e aprendizado. De quebrar com as verdades postas e impostas. Isso passa primeiro por entender e reconhecer para si essa necessidade.
Então, entender como mantras de vida, “bola pra frente”, “vida que segue”, “esquece o passado” são nocivos pra um tipo de entendimento dessa necessidade da reconstrução de saberes, porque incentivam esquecer responsabilidades.
Sobre as minhas referências, recomendo África para abandonar estereótipos e distorções, de Amauri Mendes Pereira; Rastros de resistência: História de luta e liberdade do povo negro, de Ale Santos; O Genocídio do negro brasileiro- Processo de um racismo mascarado, de Abdias Nascimento e Um defeito de cor, da Ana Maria Gonçalves. Das escritoras, indico Carolina de Jesus e Conceição Evaristo.
Como propósito do que procuro para o meu trabalho, influências, como narrativa sequencial, minha grande referência em quadrinhos é Flávio Colin e no cinema é o Tarantino. De contemporâneos, tem o Marcelo D’Salete [autor de Angola Janga e Cumbe], João Pinheiro e a Sirlene Barbosa.