Pesquisadora na Universidade de Negócios Internacionais e Economia, em Pequim, e ex-secretária de comércio exterior e conselheira sênior na direção-geral da Organização Mundial do Comércio (OMC), Tatiana Prazeres vive atualmente em Pequim, de onde também colabora regularmente para o jornal Folha de S.Paulo. Em entrevista à PB, Tatiana fala sobre a força do modelo chinês e as conquistas do país nas últimas décadas.
O conteúdo é parte da série Brasil Visto de Fora, uma parceria entre a PB e o Canal UM BRASIL, com apoio cultural da revista piauí. Conduzida pelo jornalista Daniel Buarque, a entrevista foi dividida em dois blocos: o texto a seguir e o podcast disponível aqui.
“Há muita discussão sobre como classificar o modelo chinês. Uns falam capitalismo de Estado, outros, capitalismo de mercado. Os chineses dizem que é um socialismo com características chinesas.”
Admiro é o fato de se ter estabelecido o combate à pobreza como grande prioridade nacional. Além disso, a capacidade do governo em alinhar recursos e mobilizar a sociedade em prol deste objetivo tem uma importância inegável. A China resgatou mais de 850 milhões de pessoas da pobreza desde o início da abertura econômica, em 1978, segundo o dados do Banco Mundial. É mais do que a população toda da América Latina.
Se você considera a eliminação da pobreza um valor, é difícil contestar o mérito dos chineses, mas, neste sentido, existem outros desafios. Hoje, há um grupo muito grande de pessoas, cerca de 300 milhões, vivendo acima da linha da pobreza, mas ainda consideradas ex-pobres, vivendo com dificuldade.
Existe uma frase conhecida de Deng [Xiaoping, líder da República Popular da China entre 1978 e 1992] que diz: “Enriquecer é glorioso, mas alguns vão enriquecer primeiro para que os demais fiquem ricos depois”. Estes processos de crescimento da renda e de geração de riqueza não podiam ser feitos de forma equânime, ao mesmo tempo. O barco subiu para todos, mas, para alguns, subiu mais.
Então, o desafio da desigualdade social é presente na China hoje, e lidar com esse grupo de pessoas que vive em condições difíceis é outro desafio. Contudo, o combate à pobreza é uma história que a China tem para contar ao mundo, e este último pode não estar disposto a comprar a história toda, mas existe mérito neste caso.
Isso se tornou um slogan do governo – as políticas públicas em geral funcionam na base dos slogans. Há um esforço em combater a corrupção e um reconhecimento da população de que houve avanços neste sentido, mas claro que é uma tarefa contínua aqui [na China] como em qualquer outro lugar do mundo.
As autoridades usam o combate à corrupção para conduzir expurgos e encerrar a carreira política de rivais, há um grau disso também. Mas esse combate é um avanço recente – e, principalmente depois de 2014, isso ganhou força.
O ponto de partida é que o modelo de política chinês certamente não funcionaria no Brasil, e, como neste modelo presenças do Estado e do partido na sociedade e na economia, no fundo tudo, é afetado por isso em algum grau.
Se observarmos a agenda de direitos humanos, os chineses valorizam os direitos econômicos e sociais, além do próprio resgate da pobreza, como grandes conquistas de direitos humanos. Em outras dimensões, como direitos políticos e individuais, a China está muito atrás, evidentemente, em comparação às nossas referências.
No entanto, é difícil identificar os exemplos que o Brasil não deve seguir, porque, como disse, o modelo político é muito presente e não serve para o País. É difícil desentranhar essa presença firme do Estado na vida das pessoas.
Existem dois elementos que podem ser compartilhados – o primeiro é o crescimento econômico como motor de geração de riqueza e resgate das pessoas da pobreza. Este foi o caso do Brasil, em um determinado momento, e, claro, de forma mais robusta, na China.
O segundo elemento são as políticas sociais focadas no combate à pobreza. A China conta com um mecanismo de renda mínima denominado dibao, então, é possível estabelecer um paralelo com políticas voltadas ao combate à pobreza.
O crescimento econômico sozinho não explica o modelo chinês de combate à pobreza, e creio que no Brasil seja possível estabelecer este paralelo, quando o combate à pobreza tinha um status de política pública.
Acredito que a grande diferença, e aí vale para outras políticas também, seja que quando o governo chinês define algo como prioridade, isso representa mais do que a expressão de um desejo político. Aqui, o governo tem a capacidade de mobilizar os recursos para atingir os seus objetivos, colocar os meios para atingir um fim. E, nesse sentido, há uma diferença considerável entre Brasil e China.
Aqui, a definição de um objetivo como resgatar as pessoas da pobreza, ou desenvolver setores prioritários para a indústria – como o Made in China 2025 –, ou descarbonizar a economia, tudo é acompanhado de instrumentos de política pública que de alguma maneira são capazes de atingir aquele objetivo.
Isso significa uma mobilização do Estado, da sociedade e das províncias, em uma lógica muito diferente da brasileira. Além disso, existe a participação das empresas estatais e dos bancos públicos, que têm um peso muito grande na economia, então, coloca-se esta engrenagem da máquina para funcionar a favor de um objetivo que se deseja alcançar.
Há instrumentos para fazer as coisas acontecerem de uma maneira que outros países não têm, e isso funciona – para o bem ou para o mal. Quando se coloca a engrenagem toda funcionando em uma direção, espera-se que seja a correta ou o desastre pode ser colossal, existe o risco. Há vários episódios da história recente, desde fome à Revolução Cultural, mostrando o risco da concentração muito grande de poder político.
Além disso, a consistência nas políticas a longo prazo é positiva, mas pode acompanhar a supressão de vozes dissonantes que discordem disso.
“Os chineses valorizam os direitos econômicos e sociais, além do próprio resgate da pobreza, como grandes conquistas de direitos humanos.”
Tem-se falado muito sobre isso. Em 2021, o Partido Comunista Chinês comemora cem anos, e é fascinante estar aqui e acompanhar a reação das pessoas. E é impressionante a importância que isso [comunismo] ganhou no debate político interno no Brasil.
Eu lembro de um vídeo de uma mulher que esbravejava: “Comunistas, comunistas”, em frente ao Consulado da China no Rio de Janeiro. Fiquei me perguntando o que meus colegas da universidade achariam disso, de um país que é comandado há tantos anos por um partido comunista ser xingado de “comunista”. O quão ofendidos eles ficariam por aquilo? É absolutamente uma outra lógica.
Há muita discussão sobre como classificar o modelo chinês. Uns falam capitalismo de Estado, outros, capitalismo de mercado. Os chineses dizem que é um socialismo com características chinesas. o que também não explica muito, afinal de contas, em que isso consiste?
Entretanto, normalmente se usa esta expressão para dizer que o que existe aqui funciona aqui, e não há pretensão de se exportar este modelo para outros países. Houve uma adaptação do que se achou relevante da experiência internacional, muito naturalmente com a ex-União Soviética, mas com uma economia aberta e a manutenção de um poder político muito concentrado.
É um modelo único, e há uma angústia de muitos em atribuir um rótulo à China. O próprio Bolsonaro, quando esteve aqui em 2019, disse que estava em um país capitalista. Eu me pergunto o que ele viu para chegar a esta conclusão e o que esperava ver, afinal de contas, um país comunista não teria o “jeitão” do centro de Pequim que ele encontrou.
Acho que o que caracteriza este modelo é a centralidade do Partido Comunista na vida política do país. Isso é realmente algo único, muito evidente, mas, ao mesmo tempo, esse partido soube fazer ajustes e aprender com experiências de fora e de dentro.
Nesse sentido, eles têm uma prática muito consolidada em experimentar e inovar em escala menor. O que funciona se replica, e o que não funciona se descarta. Então, a capacidade de se adaptar e entregar resultados ajuda a explicar o mérito do partido, e a sua legitimidade é associada a esta narrativa. Existem muitos modelos disfuncionais fora da China, e o partido se apresenta à população como aquele capaz de melhorar a vida das pessoas.
Eu acho que a presença do partido é o que tem de mais marcante nesse modelo político chinês, que você pode chamar de “capitalismo de Estado”, de “socialismo de mercado”, de “socialismo com característica chinesas”. Há uma frase de Richard McGregor no livro O Partido que diz: “o Partido é como Deus, ele está em todos os lugares. Você só não o vê”.