Se as candidaturas à presidência já discutem modelos econômicos que desejam implementar em um eventual Brasil pós-Bolsonaro, é porque ainda não entenderam que a tarefa principal deste provável futuro governo será outra: reconstruir institucionalmente um país devastado pela atual gestão. De certa forma, é compreender que o futuro imediato de quem assumir – dado o estado de coisas – não será tanto de criar, mas de recuperar. Essa é a avaliação do economista Filipe Campante, professor do Departamento de Economia da Johns Hopkins University, em Maryland, nos EUA.
Segundo ele, o Brasil deveria, na verdade, retomar a agenda de desenvolvimento econômico alicerçada em um Estado proativo na elaboração de políticas públicas, que foi perdida a partir da crise política iniciada em 2015, dando lugar a narrativas superficiais de um Estado mínimo que, no período do ministro da Economia, Paulo Guedes, nunca se materializou.
Assim, no que Campante chama de “colapso da Nova República”, o debate acabou retornando aos anos 1970, entre quem defende investimentos setoriais na indústria, para melhorar a capacidade exportadora brasileira, e quem advoga por expansão dos gastos públicos.
Para o economista, mesmo a discussão sobre o tamanho da máquina pública, que deveria ser feita em um país como o Brasil, foi desidratada pelo governo Bolsonaro – que prometeu implementar uma agenda de privatizações, mas não avançou em quase nada depois de eleito. A seguir, trechos da conversa de Campante com a PB.
O grande condicionante da economia é o nível de incerteza política. Todas as outras incertezas se relacionam com ela. A instabilidade do governo Bolsonaro trouxe um grau de incerteza institucional que nós achávamos que não voltaria a acontecer no Brasil. A possibilidade de o presidente não aceitar o resultado das eleições, de apelar para algum tipo de confusão que deslegitime as instituições ou a própria politização dos militares, tudo isso dificulta qualquer planejamento econômico. Por esse ponto de vista, eu sou pessimista – não por ter uma perspectiva de especialista em conjuntura, mas pela relevância deste elemento político-institucional. Hoje, ele está “apontando para baixo”.
Primeiro que, apesar de ser um fenômeno global, no Brasil, há aspectos adicionais que explicam essa alta, como a incerteza que eu já mencionei. Entre as grandes economias do mundo, o País teve a terceira taxa mais alta, atrás apenas da Argentina e Turquia, que são hors-concours neste assunto. Mas, por ser consequência da pandemia, a inflação global depende da evolução do cenário pandêmico. Se surgir uma nova variante, como a ômicron, gerando novos choques de oferta – como vemos nos Estados Unidos –, a tendência é que haja uma nova pressão sobre os preços. É possível que agora isso até se dissipe, mas é difícil prever, porque não sabemos o que vem pela frente. Basta lembrar que, em algum momento do ano passado, parecia que estávamos muito mais próximos do “fim” da pandemia do que agora.
Fundamentalmente, os agentes econômicos tomam decisões com base nas expectativas que eles têm do que vai acontecer. Quando o cenário é de incertezas, a tendência é esperar que elas se resolvam. Até porque, uma vez que você decidiu colocar dinheiro em um projeto, depois, há um custo para se desfazer dele. O que está impactando a economia brasileira agora é, de fato, não saber quais serão os percalços daqui até a eleição – mas também depois dela, porque nós estamos nos perguntando até se o resultado das urnas será respeitado. A dúvida, então, não é apenas sobre qual partido vai ganhar a eleição, mas, sim, se haverá violência política depois do pleito.
Está sendo uma péssima gestão, sob todos os aspectos. Mesmo as expectativas que ele levantou viraram piadas em comparação ao que ele entregou, de fato. Lembro aqui da reforma da Previdência, que em larga medida foi uma iniciativa do Congresso – o Rodrigo Maia [ex-presidente da Câmara dos Deputados] foi fiador do projeto –, ou então do Auxílio Emergencial, que também saiu do parlamento. Em termos de política econômica, pouquíssimo foi feito e muito foi destruído. Se pensarmos que o Brasil não fez o Censo, por exemplo, que é uma das tarefas mais elementares de um Estado, já dá uma dimensão disso. Na Suméria, já se contavam as pessoas, e o Brasil não conseguiu fazer. Temos um governo que abriu mão de governar, terceirizando o orçamento, as iniciativas de política econômica e deixando um rastro de destruição institucional.
É preciso separar o que é política pública do que é narrativa. Uma característica deste governo – e que se encaixa bem ao Paulo Guedes – é justamente que ele não governa. Não é nem questão de um Estado mínimo ou não, porque, se fosse, teria feito as privatizações prometidas. Não privatizou nada. Eu não diria sequer que Guedes representa o ideário do Estado mínimo, porque ele não fez uma política pública que executasse isso. A discussão sobre o tamanho do Estado no Brasil, sobre o que ele deve fazer ou não, vai continuar, porque, em certo sentido, este governo não colaborou em nada com ela. Ele abdicou das tarefas que tinha sobre o assunto.
É um debate legítimo, que vai permanecer relevante, mas do qual o governo atual não é um participante sério. Ele está sendo, como em várias outras dimensões, um tempo perdido do País, cuja destruição institucional vai demorar muito para ser desfeita.
Por falta de clareza ou de considerar uma gama de opções mais amplas, me parece que este debate está um pouco preso aos anos 1970. Discutir como desenvolver a indústria usando esses termos é obsoleto. Temos que pensar nos fatores que importam para o crescimento econômico hoje. Mas, sendo otimista, é preciso reconhecer bons elementos dentro deste debate. Um deles é a questão ambiental: alguns candidatos, em graus diferentes, estão mencionando em seus projetos o desenvolvimento de economias mais sustentáveis. Fomentar o desenvolvimento com base em subsídios à indústria automobilística é algo completamente descabido atualmente, por exemplo, e espero que ninguém mais defenda isso. Outro é a questão da desigualdade social e da distribuição de renda, que está presente de alguma forma em todos os planos.
A tarefa principal é reconstruir o País institucionalmente, assim como a democracia brasileira, de forma que não exista nada parecido com o atual nível de incerteza política e de risco democrático. Depois, é preciso refazer tudo o que foi destruído em termos de políticas públicas. O governo atual deixou de lado a formulação do orçamento público, por exemplo. Foi um processo politizado, sem qualquer transparência, clientelista, que representou um tremendo retrocesso. Na verdade, a discussão sobre qual modelo econômico deve ser adotado está no caminho errado, porque deveríamos estar pensando em como criar um Estado provedor de políticas públicas. É assim que se estabelecem as condições de desenvolvimento – na educação, na redistribuição, na saúde pública, nas regulações etc. Esse é o fundamental. Quando o debate se baseia nos ditos “modelos de desenvolvimento”, inicia-se uma discussão sobre quais setores devem receber investimentos, benefícios, intervenções estatais… Precisamos pensar em conceber um Estado capaz de construir e executar políticas públicas. Nós estávamos no caminho de ter um Estado nestes termos, até o colapso da chamada Nova República. Assim, a tarefa primordial é recolocar o País nesta trajetória.
Fake news é uma forma estreita de se olhar uma questão mais ampla, que é o impacto das tecnologias de mídia, em particular, das redes sociais, sobre o cenário político. Há até uma discussão sobre o efeito real das fake news sobre os resultados eleitorais no Brasil e nos EUA: quantas pessoas foram afetadas, quantas consumiram esses conteúdos, quantas tiveram, de fato, suas decisões impactadas etc. O ponto fundamental é que as tecnologias de mídia são instrumentos adicionais no arsenal dos agentes políticos – não só os que estão competindo nas eleições – que podem ser utilizados de várias formas, não apenas como fake news. Elas podem ser usadas para intimidar, por exemplo, ou para gerar ruídos de informação. O papel das tecnologias de mídia nas eleições será muito importante. Em 2018, foi a eleição do WhatsApp, mas a de 2014 já havia sido a do Facebook. Então, a de 2022 poderá ser a do Telegram, do TikTok… O ponto é que não se trata do elemento em específico, o disparo em massa de fake news, mas desses mecanismos de influência como parte do arsenal dos agentes políticos.
A difusão de outros veículos pode fazê-la aparecer. Mas não será uma eleição com uma ruptura – que representaria, por exemplo, o metaverso. Vai ser uma continuação do que já tem acontecido, o que significa dizer que será a eleição do WhatsApp, mas também do Telegram, do TikTok, do Instagram, do Facebook, tudo ao mesmo tempo. O fato é que as mídias sociais serão um cenário extremamente relevante para o processo eleitoral.
A resposta não é tão peremptória. São duas coisas importantes e que dependem de quão efetiva é a atuação em cada uma delas. Mas é claro que as arenas virtuais são fundamentalmente importantes. Lembremos que, em 2018, muita gente não apostava na eleição de Bolsonaro, porque ele não tinha tempo de televisão, e depois ficou claro que isso não é mais uma condição necessária para o sucesso de uma campanha política. Mas isso não significa que o tempo de televisão tenha deixado de ser importante para um candidato. Todas as arenas ainda são importantes.
O cenário atual sugere que Lula é o candidato favorito. Algumas análises têm dito que Bolsonaro não tem chance, o que acho ainda cedo para dizer. Ele tem o poder da presidência, que pode ajudá-lo a se recuperar, além do imponderável de uma eleição. Isso vale para uma terceira candidatura. Esta é uma eleição atípica, porque não se trata apenas de ganhá-la, mas de ganhá-la criando condições para conseguir assumir e, eventualmente, governar. O risco de quem assumir será grande. Tenho certeza de que a campanha do Lula não está pensando apenas em como vencer o pleito, mas também em como vai costurar para assumir o cargo. Nós temos que nos preocupar com o que os militares acham ainda. Tudo isso compõe um cenário novo.
Acho que é um conjunto de fatores que distorcem as decisões de todas as campanhas. O ponto é que o grau de resistência do Lula entre os militares é muito maior. Alguns têm dito que o Sergio Moro está negociando apoio dos militares, o que, se for verdade, mostra uma democracia doente. Em um contexto de normalidade, a opinião dos militares seria irrelevante.
As instituições brasileiras são mais frágeis do que as americanas, mas há alguns fatores que tornam o Brasil um pouco mais protegido das consequências dramáticas de uma tentativa dessa espécie. Uma delas é a fraqueza dos partidos políticos. Nos EUA, existem dois partidos extremamente dominantes e, quando um elemento, como Donald Trump, conquista o poder de um deles, logo se cria uma dinâmica complicada. Bolsonaro não tem um partido com o mesmo grau de influência sobre o comportamento dos eleitores. Ele tenta construir essa relação com os militares dessa forma, mas é diferente. Porém, a melhor resposta para essa pergunta é que o simples reconhecimento de que existe essa possibilidade é um passo importantíssimo para se proteger dela. Quanto mais a gente tiver consciência de que isso é possível, melhor posicionados estaremos para impedir que aconteça. O risco é real, não dá para contar com a ideia de que as instituições vão evitá-lo – porque elas nada mais são do que conjunto de decisões tomadas por pessoas em posições diferentes –, mas também, ao não contar com isso, nos colocamos em uma postura de saber que pode acontecer e, assim, poder evitar.
O Brasil não tem muita importância dentro da perspectiva americana. Esse é um ponto importante. As pessoas aqui não estão prestando atenção no nosso contexto. Há, porém, o fato de Bolsonaro ser relativamente conhecido no mundo todo, assim como nos EUA. Aqui, o que vingou é que ele é o “Trump dos trópicos”. Assim, sempre se toca nesse assunto, a conclusão óbvia é que a derrota de Bolsonaro será a derrota do Trump dos trópicos.