“Qualidade que não atinge todos não é qualidade, é privilégio”

Não tenho nenhuma visão triunfalista, tampouco catastrofista. Não acho que será só o horror, mas também não acho que será nossa redenção”. É com serenidade que o filósofo e educador Mario Sergio Cortella avalia os vários aspectos da atual crise. Para ele lidaremos com o futuro sem que haja um acordo que extrapole o sentido político-partidário. Além disso, deverá existir um consenso nacional para cuidar da deterioração das condições de vida dos vulneráveis. “É preciso que a sociedade, sobretudo aquela que tem condições economicamente mais bem estruturadas, se disponha a financiar o apoio a quem tem, hoje, um agravamento das circunstâncias de vida, que ficaram muito pesadas”. A entrevista é parte de uma série de debates realizados em parceria com a Brazilian Student Association (BRASA), associação formada por brasileiros que estudam no exterior.
O encontro foi mediada pelo jornalista Renato Galeno, doutor em Ciência Política, e contou com a participação de três estudantes da BRASA: Giovanna Barreto, estudante de Ciências Políticas na UCLA/EUA; Guilherme Silveira, graduando em Logística e estudante do MIT/EUA; e Junior Menezes, mestre em Liderança Educacional e Transformação Social pela Soka University of America (Califórnia/EUA).
“Qualidade que não atinge todos não é qualidade, é privilégio”
Embora se coloque que todos nascem, nem sempre morrem com o princípio da igualdade, porque a trajetória trabalha com a noção de igualdade no campo da lei, mas não da equidade no campo social. E se a igualdade é condição assemelhada para que as pessoas conduzam a sua trajetória de vida, a noção de equidade é fazer com que você consiga reparar e recuperar aqueles que, tendo a possibilidade da igualdade, não estarão igualmente no mesmo caminho. Nós temos, digamos, nas trajetórias da escola, da vida, da carreira, a lógica de uma piscina, na qual quatro pessoas vão nadar. Chega, em primeiro lugar, ao outro lado quem se esforçar mais, quem treinou melhor. A temperatura da piscina é a mesma; a distância a ser percorrida, idêntica; as regras dentro da água, idem. Diria‑se: “Então, a meritocracia é premiar quem chega em primeiro lugar”. O que não se leva em conta quando se pensa só em meritocracia? Que, embora a piscina seja a mesma, com temperatura da água idêntica e regras assemelhadas, o modo como as pessoas chegam a pular na piscina não é o mesmo. Quando a meritocracia leva em conta apenas a piscina, ela desconhece – ou secundariza – a noção de meritocracia, aquilo que, além de igualdade, é também a necessidade de equidade.
Temos várias coisas a pensar, mas uma delas é o conceito de qualidade conectado ao de quantidade. Numa sociedade democrática que se deseja decente, quantidade total é sinônimo de qualidade social. Qualidade que não atinge todas as pessoas não é qualidade, é privilégio. Isso significa que temos ainda uma questão muito séria: a marca do privilégio. E não é uma discussão entre escolas públicas e particulares, inclusive porque a escola particular no Brasil é minoritária, não é nem 15% do total da educação básica. A questão é decisiva para pensarmos outras coisas também dentro da educação, como a qualidade social. Alguns colocam o dilema da quantidade versus qualidade, mas nosso dilema não é esse. Repito, numa democracia, se todas as pessoas não tiverem um acesso correto e absolutamente decente à educação escolar, não teremos qualidade.
O antigo normal já era marcado pelo distanciamento social, pelo isolamento em relação ao acesso a bens culturais e bens de consumo. Portanto, era um normal com uma marca de segregação, não institucional no sentido legal, mas institucional no modo de organização das estruturas. Não tenho a perspectiva salvacionista de que teremos, ao fim do período pandêmico, um outro modo de normalidade que regenere a degradação existente no “normal anterior”. Não tenho a marca da desesperança, mas também não tenho nenhuma visão triunfalista, tampouco catastrofista. Não acho que será só o horror, mas também não acho que será a nossa redenção. Algumas coisas ficaram absolutamente evidenciadas. Quando falamos sobre os excluídos, até a nossa régua fica um pouquinho acima do que precisa ficar. Todavia, quando penso em inclusão precária, e não em exclusão, qual é o número de brasileiros excluídos do acesso à escolarização? Não é um número perto do que foi há 30 ou 40 anos – é muito menor –, mas, e a inclusão precária? Nos hospitais, nos locais de trabalho, na moradia, no transporte, essa inclusão precária tem de ser muito mais enfrentada do que a mera exclusão. Será difícil lidarmos com o pós-pandêmico sem que haja um tipo de acordo, não só no sentido político-partidário, mas de consenso nacional, para que consigamos cuidar do que será desastroso: condições de vida, de trabalho e de alimentação. É preciso que a sociedade, sobretudo aquela que tem condições mais sofisticadas, economicamente mais bem estruturadas, se disponha a financiar o apoio às pessoas que estão tendo, hoje, um agravamento das circunstâncias que já viviam e que ficaram muito mais pesadas.
Que bom que podemos pensar nisso, mas lembrando que o ensino remoto vem sendo praticado de modos variados, há vários municípios no Brasil que adotaram o material delivery. A escola sabe que uma parte dos alunos não tem condição de acesso ao mundo digital e, por isso, entrega o material. Outras fazem como se fosse uma “marmita pedagógica”, no sentido mais bonito da palavra, em que os adultos que cuidam de crianças vão à escola e recebem, impresso, aquilo que foi feito de modo virtual em outro campo. Nos nossos mais de 5 mil municípios, essa realidade delivery, ou da busca da “marmita dentro da escola”, é muito limitada. E uma parcela, sim, tem conexão. A primeira maneira de ensino a distância foi o livro. Você tinha uma atividade dentro de uma sala e levava para qualquer lugar algo que estava ali, guardado. Por isso o livro não desapareceu. Hoje, as tecnologias são convergentes, e não excludentes. Hoje, o ensino remoto é o possível nessa circunstância, não é o melhor – porque não há esta estruturação –, mas o possível, ele é emergencial. Em larga escala se sabe, por exemplo, que a família não substitui a atividade da escola no seu território. O ensino em casa não é suplementar ao trabalho escolar, é complementar. Isso significa que pais, mães – ou adultos que tenham crianças e jovens em idade escolar – estão complementando aquilo que a docência precisa fazer. E temos, sim, um nível imenso de precarização nessa atividade, não só por questões tecnológicas. A docência, que é o meu caso, não é preparada. Ninguém estava preparado. A escola não estava preparada, mas nem outras estruturas, nem o mundo da produção agrícola, nem a organização na mídia. Agora, se fosse secretário de Educação da cidade de São Paulo hoje, não retomaria as atividades no território escolar. Se há prejuízos para as famílias em termos alimentares e/ou de cuidados, pelo fato de as crianças não frequentarem escola, é necessário encontrar outro caminho para que não se perca este apoio. Mas, hoje, sem que se tenha nitidez dos movimentos que o vírus faz, a concentração [de pessoas] em um momento em que se busca evita-la seria algo muito perigoso. O que fazer com o ensino remoto? Vamos ter de ordenar melhor as formas de fazer. Não podemos imaginar que pais e mães, só por que adultos são, tenham familiaridade com o mundo digital. Ademais, há um número grande de homens e mulheres – que estão tendo de lidar com as suas crianças na atividade complementar escolar – também sem escolaridade. Isso é a realidade. No mundo real, concreto, tem de se levar em conta tudo isso. Por isso, ou se faz um esforço nacional para dar conta deste momento, ou aquilo que temos pode apenas ser um simulacro daquilo que é a educação escolar. E não fosse o esforço imenso de milhares de homens e mulheres na educação, sem desistir, preparando material, levando às casas, tentando contato, nossa ação desastrosa seria muito mais intensa.
“Não tenho a perspectiva salvacionista de que teremos, ao fim do período pandêmico, um outro modo de normalidade que regenere a degradação existente no ‘normal’ anterior.”
Há pessoas que são contrárias a Paulo Freire porque não concordam com as suas ideias pedagógicas. Elas as entendem bem, mas acham que, no campo da concepção da educação, teriam que ser modificadas. Portanto, seria uma interpretação de Paulo Freire na natureza didático-pedagógica ou de filosofia da educação, da qual ela tem uma discordância e, portanto, propõe algum tipo de revisão – ou até de lateralização da concepção freireana de educação. Há um segundo grupo: o que não aceita Paulo Freire porque não consegue compreendê-lo. Isto é, não teve acesso a uma visão mais nítida sobre aquilo que ele fez. Portanto, é mal-entendido. E há uma terceira concepção, que é avessa a Paulo Freire, não por não entendê-lo, mas por entendê-lo muito bem, na concepção política. Exatamente quem entende muito bem o que ele propõe busca desmontar a qualidade daquilo que elaborou. Insisto: nunca se falou tanto de Paulo Freire como nos dois anos mais recentes. Se, agora, ele estivesse vivo, o democrata que era, não seria contra que alguém contra a ele fosse. Jamais recusaria que alguém fosse avesso, nem deixaria de levar em conta alguém que propusesse retirar o título de patrono da educação brasileira, que tem desde 2012. Ainda assim, diria: “Faz parte do direito, use argumentos para tirar, argumentos”. Se a eficácia da teoria freireana fosse tão forte a ponto de ter feito a cabeça de professores e estudantes, algumas pessoas não teriam sido eleitas no Brasil. Nesse sentido, acho que o pensamento freireano, neste momento, é mal compreendido por alguns por ausência de estudo, e é muito bem compreendido por outros – e, por isso, a rejeição. Uma pessoa dizer genericamente, sem argumentar, é de uma fragilidade imensa. Democracia não é ausência de ordem, é ausência de opressão. E uma das coisas que conduzem à opressão é a impossibilidade de, inclusive, discordar. Discordância essa que não seja de má-fé, desrespeitosa, insolente, mas que carregue argumentos.
Lancei o livro A diversidade, aprendendo a ser humano exatamente para tratar destas questões. Um dos pontos que trago é que precisamos olhar com mais nitidez todas as estruturas de exclusão, de tal modo tão introjetadas, que normalmente não as percebemos. E, de repente, o famoso e verdadeiro racismo estrutural é marcante na forma de seletividade, na maneira de abordagem que se faz no campo da segurança – no modo, inclusive, da convivência em sociedade. É tão forte essa questão no Brasil que tem de se ter uma placa de advertência no elevador: “Não é permitida a exclusão, a discriminação, o preconceito por conta de etnia, de gênero, etc.”. É tão forte que a placa está ali dizendo: “Atenção, é proibido ser desumano”. Se não houvesse esta estrutura, não haveria necessidade da frase. O que fazer? São dois movimentos: um de convicção interna, com uma educação escolar em especial, para que possamos demolir, identificar e recusar o que é preconceito e discriminação. Portanto, o lado do convencimento. Mas tem o lado da legislação, da pressão, do impedimento de as práticas de qualquer forma de discriminação ficarem impunes.
Conflito é divergência de ideia, de postura, de concepção. Faz parte do processo de convivência, que busca consenso – ainda que provisório – para aquilo que nos diferencia e que não faz com que sejamos excluídos ou desprestigiados. Confronto é a busca de anulação da outra pessoa, é sempre excludente. O conflito busca, inclusive, quando há democracia social, a construção de um consenso mesmo que temporário, mas que sigamos adiante nossas atividades. Uma sociedade como a nossa não movimenta tanto a prática democrática quanto a participativa do conflito por entender que o conflito é ameaçador da ordem. Não, o que ameaça a ordem é o confronto. Claro que o confronto tem o seu lugar, ninguém em sã consciência imagina, por exemplo, que as forças de segurança, socialmente utilizadas, não sejam autorizadas ao uso de armamento quando assim deverá sê-lo, mas, no convívio cotidiano, o confronto tem de ser não só eletivo, como também muito circunstancial. Não podemos ter uma convivência humana belicista, que esteja o tempo todo preparada a resolver tudo pela guerra. É preciso, sim, construir o que é convivência – e, nisso, a escola pode auxiliar. Existe um modelo de relação marcado pela brutalidade, pela retórica furiosa, cuja finalidade não é dialogar, é aterrorizar. Ao aterrorizar, o valor da democracia, da convivência na diferença, se reduz, encolhe-se. O que seria o lugar da educação marcada pela procura da paz política, da harmonia social, de uma convivência não hipócrita, se ausenta.