“Estamos passando grandes crises econômica, política e, agora, de saúde pública, que põem em xeque a força das instituições democráticas”. Nara Pavão
O desembarque, do governo federal, do ex‑ministro Sergio Moro abriu uma ferida grave no discurso anticorrupção do presidente Jair Bolsonaro. A saída de Moro – aliada a problemas econômicos, pandemia de covid‑19 e discurso autoritário do governo – acende a luz amarela nos riscos que a democracia enfrenta no País. A opinião é compartilhada pelas cientistas políticas Daniela Campello, professora na Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getúlio Vargas (EBAPE/FGV), no Rio de Janeiro, e Nara Pavão, professora no Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). “Estamos passando grandes crises econômica, política e, agora, de saúde pública, que põem em xeque a força das instituições democráticas”, diz Nara.
“Estamos passando grandes crises econômica, política e, agora, de saúde pública, que põem em xeque a força das instituições democráticas”. Nara Pavão
Nara Pavão – Sim. Sergio Moro era o símbolo do comprometimento de Jair Bolsonaro na luta contra a corrupção. Muitos eleitores de Bolsonaro votaram nele pensando em uma agenda anticorrupção. A escolha de Moro foi estratégica no sentido de reforçar o comprometimento do governo com a pauta. E a saída dele, inclusive nas circunstâncias nas quais se concretizou, sinaliza o enfraquecimento desta bandeira.
Daniela Campello – A impressão de Moro no governo é que o trabalho dos dois, em conjunto, foi pior à imagem do ex-ministro do que a de Bolsonaro. Moro teve pouca capacidade de agir desde que entrou no governo, e muita coisa aconteceu – inclusive em relação à corrupção, como o escândalo das “rachadinhas”. A impressão é que ele estava procurando um momento de se desligar de um governo que o tinha como figura decorativa anticorrupção.
Nara – Ficou claro, desde o começo, que o governo não tinha uma verdadeira pauta anticorrupção. No caso de Moro, havia um misto de pretensão muito grande com ingenuidade (também muito grande) de achar que a entrada no governo daria continuidade ao trabalho que ele estava fazendo na Lava Jato. A política não funciona dessa forma. Ele claramente não entendia o funcionamento dela, e foi nisso que se afundou enquanto ministro.
Daniela – Moro foi extremamente vaidoso e oportunista, e encontrou ali uma trajetória de carreira. Talvez a ingenuidade fosse, dentro desta estratégia, achar que ia ter algum espaço no governo. O que aconteceu com a família Bolsonaro vinha acontecendo durante anos. O esquema entre laranjas, “rachadinhas” e tudo o mais. O que não existia era a expectativa de que fossem chegar à Presidência. E quando se chega à Presidência, o telhado de vidro é outro. Bolsonaro está tendo que lidar com este passado e tentando segurar as pontas até onde der.
Nara – Está mais para a segunda opção. Os Bolsonaro não achavam que chegariam à Presidência da República. Com tanto envolvimento em casos de corrupção, como é que conseguiram e tiveram coragem de levantar uma bandeira anticorrupção da forma como fizeram? É um movimento muito arriscado. Mas aí entra o antipetismo. A quantidade de ódio que existia em relação ao PT, e essa crença forte trazida pela Lava Jato de que o PT e os partidos tradicionais eram os principais associados à corrupção, fizeram com que Bolsonaro nunca acreditasse que algum caso de corrupção contra ele fosse ter o mesmo peso.
Nara – Os processos são bem diferentes, porque Lula foi alvo da maior campanha anticorrupção do mundo: a Lava Jato. Bolsonaro não, mas pode ser que ele ainda seja. Então, a situação foi mais difícil para Lula do que está sendo para Bolsonaro. No entanto, Lula tinha uma prosperidade econômica que Bolsonaro não tem. Bolsonaro não só governa em um momento que não é de prosperidade econômica, como há uma crise de saúde pública, que torna tudo mais difícil. Neste sentido, Bolsonaro é mais vulnerável. Agora, ele tem capital político. Há uma parcela da população que gosta dele e que vai sempre relativizar estas acusações de corrupção.
Daniela – Devemos lembrar que Lula tinha 40% de intenção de votos em 2018. Não sabemos o que teria sido uma eleição se Lula tivesse disputado. Na ciência política, temos evidências de que corrupção e escândalos, de uma maneira geral, são temas que tendem a ter mais influência sobre o eleitorado em períodos de crise do que em épocas de bonança econômica. Lula, por exemplo: passou o escândalo do “mensalão”, em 2006, e não colou. Já os escândalos que vieram à tona, da Lava Jato, no período da ex-presidente Dilma Rousseff, embora ela não tivesse sido acusada de estar diretamente envolvida com eles, tiveram outro impacto, pois já era um período de crise econômica.
Daniela – O fato de ele ter dificuldade na área política é um plus. Após o período da Lava Jato e as últimas eleições, não vimos uma reconstrução da imagem dos partidos. Falou-se muito em renovação na política, e pouco do que vimos foi renovação. Neste sentido, Moro ser de fora e não ter relações com partidos é um aspecto positivo do ponto de vista de como ele vai se posicionar numa campanha eleitoral.
Nara – Acho que a entrada é a parte fácil, porque é um discurso que vende bem. Mas a dificuldade é: como ele vai conviver com pessoas do mesmo partido acusadas de corrupção? Este é um custo muito alto para Sergio Moro. Ele vai ser sempre o juiz da Lava Jato. O padrão de comportamento que se espera dele é muito alto, que é um pouco a “saia justa” que viveu no governo Bolsonaro.
Daniela – Os brasileiros, de uma forma geral, estão à procura de heróis. Não existe um salvador da pátria, um paladino da corrupção. É um trabalho coletivo, de partidos, de sistema político. Isso é pouco claro para a população e mesmo para os agentes econômicos. Há uma certa ingenuidade de que um presidente vai resolver a situação, e não funciona assim.
“Os brasileiros, de uma forma geral, estão à procura de heróis. Não existe um salvador da pátria, um paladino da corrupção. É um trabalho coletivo, de partidos, de sistema político.” Daniela Campello
Daniela – Existe um discurso antidemocrático que é inaceitável numa democracia, principalmente pela maior liderança, que é a Presidência da República. Não pode haver um presidente que vá a eventos públicos que chamam pelo fechamento do Supremo Tribunal Federal (STF) e pelo fim do Congresso Nacional. A democracia não foi feita para suportar isso. Há este ambiente de agressividade em relação à mídia, o que é muito sério. Há uma Procuradoria-Geral da República (PGR) que funciona como uma advocacia privada do presidente. Há uma Polícia Federal (PF) na qual, hoje, está claro que há uma intenção de ingerência. É extremamente preocupante esta relação profunda entre governos e forças militares. Isso não é uma característica das democracias que funcionam.
Nara – Estamos passando por grandes crises econômica, política e, agora, de saúde pública, que põem em xeque a força das instituições democráticas. Os dados mostram um processo de autocratização do Brasil. As pessoas estão mais dispostas a apoiar um golpe militar quando há muita corrupção ou quando há um desempenho econômico indesejável. Isso preocupa.
Daniela – Bolsonaro é uma pessoa que, de fato, tem tendências autoritárias. Neste sentido, é um pouco assustador que estejamos passando por este momento de acirrar tendências políticas. Agora, ele vê nisso uma oportunidade para exercer o seu autoritarismo e sabe que, quanto mais acirrada for a crise, mais a base de apoio dele vai topar dar este “cheque em branco” para movimentos autoritários. Por outro lado, não teria facilidade de construir uma coalizão duradoura caso quisesse romper com as instituições democráticas. Talvez teria o apoio de alguns militares no começo, mas só esta ruptura já seria traumática para o Brasil. Minha expectativa antes do covid-19 já era que a economia não estivesse entregando e que essa base de apoio fosse diminuir. Agora, com a pandemia, acho isso muito mais claro. Bolsonaro não vai conseguir se desfazer desta responsabilidade. Então, neste sentido, acho que ele está se enfraquecendo.
Daniela – Bolsonaro nunca foi levado a sério. Era aquele que tinha atitudes extremas, e as pessoas o achavam pitoresco, mas ele não foi levado a sério. Ele estava ali, “na franja”. E temos um sistema político permeável para que uma pessoa “da franja” chegue à Presidência da República. A diferença de democracias mais consolidadas é que este tipo de atitude é filtrado de alguma maneira em um partido, uma organização. Nós não temos esses partidos. Então, uma figura como Bolsonaro, isolada, sozinha, consegue se tornar presidente da República. É importante que esse tipo de figura nem comece a existir dentro do sistema político, ou seja, um representante numa democracia na qual a agenda sempre foi o fim dela mesma, o incentivo à tortura e às mortes.
Daniela –“Franja” é “franja” na extrema-esquerda e na extrema-direita. Extrema-esquerda e extrema-direita se encontram no autoritarismo, e não é só no Brasil.