As seguidas crises econômica, política e sanitária vêm provocando uma escalada preocupante do trabalho infantil no País, que, desde 2019, não contabiliza oficialmente os dados. Mesmo com o apagão de pesquisas, de acordo com Bruna Ribeiro, jornalista, especialista em Direito Internacional e gestora do projeto Criança Livre de Trabalho Infantil, é possível visualizar um cenário desolador, considerando os fatores que empurram as crianças para atividades ilegais, como o desemprego da mão de obra formal (atualmente em 9,8%), o avanço da fome (que atinge 15,5% da população) e a evasão escolar (mais de 5 milhões de brasileiros de 6 a 17 anos).
Nesta entrevista, Bruna, autora do livro Meninos malabares – Retratos do trabalho infantil no Brasil, explica por que a prática ilegal impede o desenvolvimento das futuras gerações de jovens e atrapalha o crescimento econômico e social do Brasil. “Quando a criança não estuda e não se profissionaliza, dificilmente consegue acesso ao mercado de trabalho decente”, lamenta ela.
Entre as medidas para transformar essa realidade, a jornalista indica trabalho duro na elaboração de políticas públicas intersetoriais, em áreas como educação, saúde, moradia, trabalho e emprego. Acompanhe.
São muitas as consequências na vida de crianças e adolescentes. Muitas vezes, o trabalho infantil gera a reprodução do ciclo da pobreza, pois prejudica a aprendizagem da criança, quando não a tira da escola. Quando a criança não estuda e não se profissionaliza, dificilmente consegue acesso ao mercado de trabalho decente. Além dos prejuízos educacionais e econômicos, as crianças e os adolescentes explorados ficam vulneráveis em diversos aspectos, incluindo a exposição às violências física, psicológica e sexual, além de acidentes de trabalho e agravos à saúde.
Entre 2007 e 2020, 49.254 meninos e meninas, de 5 a 17 anos, sofreram acidentes de trabalho ou agravos à saúde no Brasil, sendo 29.495 de forma grave, segundo dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan) do Ministério da Saúde. Outras 290 crianças e adolescentes perderam a vida nesse período. Os dados são alarmantes, mas ainda subnotificados, e não retratam a verdadeira dimensão do problema.
Um estudo do Banco Mundial, com dados divulgados pela reportagem da BBC News Brasil, afirma que o País desperdiça 40% do talento das crianças. Ou seja, uma criança brasileira nascida em 2019 tende a alcançar apenas 60% de seu capital humano potencial quando completar 18 anos. Ainda de acordo com informações divulgadas pela BBC, o desperdício de potencial nos rincões mais vulneráveis superava os 55% antes da pandemia. Mas a crise sanitária piorou a situação e fez o País regredir uma década de avanços. Além disso, a reportagem informa que o banco estima que o Produto Interno Bruto (PIB) do Brasil poderia ser 2,5 vezes maior (158%) se as crianças brasileiras desenvolvessem suas habilidades ao máximo e o País chegasse ao pleno emprego.
As habilidades desenvolvidas pelas crianças e pelos adolescentes impactam a produtividade, a escolaridade, a renda e a profissionalização. Ou seja, a capacidade de gerar riqueza para o Brasil. Obviamente que a importância de se combater o trabalho infantil se dá pela garantia dos direitos humanos de crianças e adolescentes em primeiro lugar, pelo respeito e pela empatia ao próximo. Além disso, um país desigual e com graves violações de direitos, como o trabalho infantil, é inconveniente em vários fatores, pois se torna instável economicamente, socialmente e politicamente, para todos e todas. Ainda segundo a reportagem da BBC, o estudo do Banco Mundial mostra que o Brasil precisaria de 60 anos para alcançar o nível de capital humano de países desenvolvidos – tendo como referência o ano de 2019.
Vale lembrar que as desigualdades regionais e raciais ficam evidentes no estudo. Segundo a matéria, a produtividade esperada de uma criança branca em 2019 era de 63% do seu potencial, em comparação a 56%, para uma criança negra, e 52%, para uma indígena. Além disso, em 2019, o Índice de Capital Humano (ICH) do Norte e do Nordeste era de 56,2% e 57,3%, respectivamente, enquanto para Sul, Centro-Oeste e Sudeste variava de 61,6% a 62,2%.
A desigualdade racial também acontece no trabalho infantil. Segundo o Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (FNPETI), o número de crianças e adolescentes negros em situação de trabalho é maior do que o de não negros. Os pretos ou pardos representam 66,1% das vítimas do trabalho infantil no País. O trabalho infantil é uma das mais graves violações de direitos de crianças e adolescentes, causa sofrimento e traumas irreparáveis, além de interferir no pleno desenvolvimento das futuras gerações e do País.
Estamos vivendo um momento de crise humanitária. Diversos índices econômicos e sociais apontam para o agravamento do trabalho infantil, pois este tem relação direta com a pobreza. Quando há o aumento do desemprego, da fome, da desigualdade social e da exclusão escolar, consequentemente, pode-se prever o aumento do trabalho infantil. Uma pesquisa realizada pelo Unicef também apontou que o número de crianças em situação de trabalho infantil aumentou 26%, entre os meses de maio e julho de 2020, em São Paulo. A fome avança cada vez mais rápido pelo Brasil, chegando a índices dos anos 90. Atualmente, o País soma cerca de 33,1 milhões de pessoas sem ter o que comer diariamente, quase o dobro do contingente em situação de fome estimado em 2020, de acordo com um estudo da Rede Penssan e da Oxfam.
Além disso, mais de 5 milhões de brasileiros de 6 a 17 anos não tinham acesso à educação no Brasil em novembro de 2020, número semelhante ao encontrado no início dos anos 2000. Em 2019, havia quase 1,1 milhão de crianças e adolescentes brasileiros em idade escolar obrigatória fora da escola, de acordo com uma pesquisa divulgada pelo Unicef. O trabalho infantil tem relação com a pobreza multidimensional, e não há bala de prata para seu enfrentamento. É preciso implementar políticas públicas intersetoriais em áreas como educação, saúde, moradia, trabalho e emprego – para que as famílias tenham condições de proteger suas crianças.
O trabalho infantil e a exclusão escolar estão totalmente relacionados. As políticas públicas de enfrentamento ao trabalho infantil precisam caminhar ao lado de políticas públicas de combate à exclusão escolar. Muitas vezes, o professor é o único adulto fora do círculo familiar com quem a criança convive. É ele quem consegue identificar diversos tipos de violência sofridos pelos alunos, como o trabalho infantil. Vale lembrar que a escola é um importante ator do Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente. Muitas vezes é na escola onde a criança se alimenta. Se ela está fora da escola, além de perder o vínculo com educadores que podem ser agentes da proteção, a criança não desenvolve plenamente suas habilidades, de forma protegida, e, no futuro, enfrenta dificuldades de se profissionalizar, reproduzindo o ciclo da pobreza e, muitas vezes, do trabalho infantil em sua família.
O estudo World Report on Child Labour 2015, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), analisa a relação entre crescimento econômico, combate ao trabalho infantil e garantia de dignidade no trabalho, por meio de dados de 28 países de renda baixa e média, incluindo o Brasil, além de apresentar os resultados de estudos de caso realizados na Índia, em Bangladesh e no México. O relatório revela que o trabalho infantil tem como consequência uma menor performance acadêmica e empregos de pouca remuneração, comparando o desempenho profissional daqueles que começaram a vida laboral já aos 15 anos (ou antes) com aqueles que entraram no mercado de trabalho após essa idade.
Sem educação, é impossível pensar no enfrentamento do trabalho infantil, que atinge gerações e gerações das mesmas famílias. O Plano Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil e Proteção ao Adolescente Trabalhador aponta que quanto mais precoce é a entrada no mercado de trabalho, menor é a renda obtida ao longo da vida adulta. Esse sistema mantém os altos graus de desigualdade social.
O presidente Jair Bolsonaro chegou a defender o trabalho infantil publicamente em alguns momentos. Portanto, não é estranho que os gastos federais tenham sido reduzidos para o enfrentamento da violação. É comum ouvirmos a reprodução de mitos do trabalho infantil, como “é melhor trabalhar do que roubar” ou “é melhor trabalhar do que ficar na rua sem fazer nada”. Quando reproduzimos esses mitos, assumimos que as crianças em vulnerabilidade social só têm dois caminhos – ambos ruins. Mas o único caminho possível para crianças e adolescentes é a vivência plena da infância, com dignidade, saúde, educação, lazer, cultura, proteção integral e profissionalização – direitos presentes no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
É importante refletirmos também se defendemos o trabalho infantil para todas as classes sociais ou somente para as crianças pobres e negras, principais vítimas da violação. Os filhos das pessoas mais privilegiadas geralmente vivem plenamente a infância, matriculados em escolas integrais, bilíngues, fazendo intercâmbio e com diversas atividades no contraturno escolar, como inglês, natação, balé etc. O trabalho infantil tem ligação direta com a escravização da população negra no Brasil, que durou mais de 350 anos e foi responsável pela exploração de crianças, como mão de obra doméstica e rural, impactando a garantia de direitos dessa população até hoje. Soma-se a isso, a ausência de medidas eficazes de reparação e de políticas públicas capazes de transformar esta realidade. Por isso, o enfrentamento do racismo estrutural também é tão importante.
O trabalho infantil é toda forma de trabalho realizado por crianças e adolescentes abaixo da idade mínima permitida, de acordo com a legislação de cada país. No Brasil, o trabalho é proibido para quem ainda não completou 16 anos, como regra geral. Quando realizado na condição de aprendiz, é permitido a partir dos 14 anos. Se for trabalho noturno, perigoso, insalubre ou atividades da lista TIP (piores formas de trabalho infantil), a proibição se estende aos 18 anos incompletos. A aprendizagem é uma política pública importante de enfrentamento do trabalho infantil, pois possibilita que o trabalho aconteça a partir dos 14 anos, de forma protegida e conciliando com a educação, para aqueles que precisem começar a trabalhar mais cedo.
A Lei da Aprendizagem, no entanto, constantemente sofre ameaças. Em maio, o governo federal publicou a Medida Provisória 1.116/22, flexibilizando diversas regras e dificultando o acesso dos adolescentes em vulnerabilidade social às vagas, entre outras mudanças negativas. A MP pode ser convertida em lei até setembro. A Auditoria Fiscal do Trabalho emitiu um estudo técnico contra a Medida Provisória 1.116 e o Decreto 11.061/22. Em artigo publicado no jornal O Dia, o auditor fiscal do Trabalho Ramon de Faria Santos, também representante do Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho, disse que as alterações atingiram cerca de 80% das normas que regulamentavam o programa, apresentando um pacote de benefícios para as empresas infratoras, reduzindo a oferta de vagas no programa e desmontando a fiscalização trabalhista para o cumprimento da Lei da Aprendizagem no País.
Conforme já mencionado, o enfrentamento do trabalho infantil exige a implementação de políticas públicas intersetoriais, em áreas como educação, saúde, moradia e trabalho e emprego. O Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI) foi criado em 1996, com foco no combate às piores formas de trabalho infantil. Na época, além de ações estratégicas, havia um programa de transferência de renda, posteriormente incorporado ao Bolsa Família (agora Auxílio Brasil).
Mas, independentemente disso, é necessário que as ações estratégicas do PETI sejam implementadas, com foco na mobilização, na informação, na identificação de crianças e adolescentes em situação de trabalho infantil, na proteção social, na defesa e na responsabilização. É preciso também fortalecer o Sistema de Garantia de Direitos e promover políticas de transferência de renda, de fortalecimento da Lei da Aprendizagem e de proteção integral de crianças e adolescentes, incluindo seu direito à educação.