entrevista

Último samba em Bruxelas

01 de agosto de 2023
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A imagem, de fato, diz mais do que palavras. Lula está no centro, invocado, olhando para o horizonte, cercado pelo primeiro-ministro chinês, Li Qiang, e pelo presidente da França, Emmanuel Macron — que, com mãos erguidas, parece tentar convencer o chefe de Estado brasileiro de algo. De fato, estava a persuadir Lula a aceitar as exigências da União Europeia (EU), da qual o francês é um dos principais fiadores, para fechar um acordo emperrado há duas décadas para um livre trânsito de mercadorias com o Mercosul.

Captada na reunião do Novo Pacto Financeiro, em Paris, no fim de junho, a cena também define o que foi aquele encontro tanto para bloco sul-americano — do qual o Brasil é presidente temporário, mas porta-voz inequívoco — e para a União Europeia: uma corrida contra o tempo. Enquanto os continentes querem assiná-lo logo, os dilemas se aprofundam. O último deles, no mesmo mês, quando, perto de ratificarem o tratado, a UE enviou ao Mercosul um anexo (chamado side letter) com várias imposições de caráter ambiental, por exemplo, restrições a commodities sul-americanas com agrotóxicos. O texto veio na sequência da aprovação de uma nova lei contra o desmatamento no parlamento europeu, em abril. Assim que o leu, Lula foi a público dizer que a carta era, na verdade, uma “ameaça” e o repetiu naquela reunião em Paris, olho a olho com Macron e outros países do bloco.

A economista alemã Barbara Fritz, que leciona no Instituto de Estudos Latino-Americanos da Universidade Livre de Berlim (Frëie Universität), uma das principais instituições de ensino e pesquisa da Alemanha, observa que o acordo vive um impasse dramático: ou será fechado até o fim deste ano ou nunca mais. Para ela, se, por um lado há sutilezas de muitos setores produtivos nos dois lados do Atlântico, por outro, este é o momento histórico mais amigável entre as partes para se chegar a um consenso.

“Haverá lucro político para ambos. É por isso que existe vontade em assiná-lo. As negociações estão sendo intensas nos bastidores com o objetivo de se chegar a algo tolerável”, explicou ela, em entrevista à PB na sua sala no prédio da LAI (na sigla em alemão), em um bairro distante do centro de Berlim.

Em quase uma hora de conversa, Barbara também analisou as possibilidades de uma moeda comum no Mercosul, o processo atual de Reforma Tributária no País e os caminhos da economia brasileira no mundo atual.

O presidente Lula esteve, recentemente, em Bruxelas, na Bélgica, tentando encaminhar o acordo da UE com o Mercosul. Neste momento, o que tem impedido um consenso entre as partes?

Em primeiro lugar, é complexo negociar um acordo no qual estejam envolvidos interesses específicos de diferentes países. Na União Europeia, um deles é o mercado agrário francês. A França quer proteger os próprios produtores locais porque eles têm um valor próprio dentro do país. Já no Mercosul, o posicionamento dos governos em relação à abertura está sempre passando por mudanças desencontradas. Em segundo lugar, é muito importante entender que os princípios desse tipo de acordo são ultrapassados. Ele começou a ser negociado em uma época que havia a percepção comum de que criar uma convenção ampla de comércio livre seria bom para todos. Pelo menos desde [o ex-presidente dos Estados Unidos, Donald] Trump, não há mais esse consenso. 

Por quê?

Porque ele colocou na agenda um antiliberalismo de direita, reforçando a narrativa de que promover abertura comercial para países avançados pode significar perda de empregos. Na América Latina, ao contrário, há um antiliberalismo de esquerda que coloca como alternativa a industrialização via substituição de importações. Basta vermos como Brasil e Argentina estão reconstruindo a agenda industrial e procurando proteger suas áreas ainda industrializadas. No mundo de hoje, além dos muitos Trumps espalhados por aí, vejo que os assuntos econômicos e estratégicos têm envolvido mais segurança contra riscos de rupturas de cadeias de valor — por razões que vão de choques globais, como a pandemia, a questões geopolíticas, como as sanções contra a Rússia — do que a procura por reforçar o livre-comércio para todos. Também está claro agora que todo tipo de acordo precisa levar em conta as consequências ecológicas, o que já é muito presente nas convenções internacionais europeias. 

Essas dificuldades podem impedir que o acordo seja fechado?

É complicado. Principalmente porque, além desses pontos, acordos como esse são extremamente complexos. Trata-se de centenas de páginas com muitos detalhes, cujas consequências para os diferentes setores produtivos tendem a ser muito diferentes. Ninguém quer reabrir uma negociação com cada um deles, porque seria morrer na praia. No meio disso tudo, víamos como Lula e [o presidente da Argentina, Alberto] Fernández estavam querendo fechá-lo logo, admitindo até algumas mudanças no texto, quando receberam a carta da UE com uma série de condições ecológicas que, para o Brasil, soaram como imposições exageradas. A avaliação do governo brasileiro é que elas chegaram na hora errada, que poderiam ter sido formuladas durante o governo[do ex-presidente Jair] Bolsonaro, e não agora, com um presidente alinhado aos interesses europeus. Então, não são problemas apenas de conteúdo que travaram o processo, mas também de estilo.

Em meio a tudo isso, o que faz prevalecer o desejo de ter o acordo?

Haverá lucro político para ambos. É por isso que existe vontade de assiná-lo. As negociações estão sendo intensas nos bastidores com o objetivo de se chegar a algo tolerável. Estão tentando fechá-lo ainda neste ano, porque, se isso não acontecer, sinceramente, não será fechado nunca mais. 

E por que há vontade política em meio a um mundo em que, como a senhora disse, esse tipo de livre-comércio não existe mais?

Na verdade, eles não são mais feitos nesse formato. Os temas mudaram, assim como a ideia de que um livre-comércio é sempre vantajoso não é tão consensual como antigamente. No caso desse acordo, houve uma época em que diplomatas europeus diziam ser os únicos a acreditar no Mercosul como parceiro de negociação, o que me faz pensar que existe uma dívida acumulada de relação bilateral. O fechamento do acordo há dois anos, durante o governo Bolsonaro, aconteceu muito mais por um acaso, por uma dinâmica técnica, do que política. Foi uma surpresa total. Algo ali passou despercebido pelas instituições. Agora, ao contrário, a ratificação do documento está em meio a um momento muito mais amigável entre todas as partes — o que surge como uma possibilidade única de fechá-lo. É por isso que precisa ser agora ou nunca. 

Como a senhora avalia essas condições recentes impostas pela UE para fechar o acordo e as reações do Mercosul?

Surpreende-me um pouco [a reação de Lula], porque ele começou o mandato com uma agenda nacional e internacionalmente ecológica, indo à COP27, no Egito, antes mesmo de tomar posse. A expectativa era que ele seria porta-voz do Sul Global no tema climático, mas ele se opõe nesse ponto. O que me parece é que Lula está, na verdade, se opondo a esse alinhamento definido totalmente pelo Norte.

Como elas soaram para a senhora?

Eu não vi os detalhes. Não sei se ele enviou uma contraproposta, por exemplo. O que eu esperaria de um governo Lula que tem [a ministra do Meio Ambiente]Marina Silva como figura-chave é uma reformulação desse tipo de condicionamento da União Europeia. 

Mas, pensando na conjuntura atual, o Brasil tem condições de oferecer uma contrapartida?

O Brasil tem voz decisiva. Se não quiser assinar, não terá acordo. Contudo, se tem uma capacidade de veto, o que lhe dá um certo poder, também não está em igual posição quanto à negociação do conteúdo. Ainda mais porque Lula quer fechar logo o acordo para acumular capital político, e isso o limita, justamente porque estamos falando de uma relação assimétrica. Dizer que estamos conversando no mesmo nível não reflete a realidade: nós estamos falando de assimetria entre os países. Mas a dificuldade é que não é possível analisar todas as complexidades desse acordo. O setor leiteiro do Mercosul, formado por pequenos e médios produtores, por exemplo, pode perder na medida em que o livre-comércio levaria a uma maior concentração— ainda que não o faria perder mercado. Agora, a produção e o comércio intrarregional de peças automotivas, certamente, seriam prejudicados com a chegada da UE. Na Europa, há o medo de que o acordo traga desvantagens para produtores agrários: de carne, soja, grãos etc. Tudo isso para dizer que perdas e ganhos são muito específicos e setoriais. Se estou avaliando a posição de Lula corretamente, ele parece querer limitar as perdas maiores, aceitando algumas delas para conseguir fechar o tratado.

Por quê?

Para ter mais opções, e não uma porta fechada. Sem o acordo, não haverá acesso ao mercado europeu, o que é pior para o Mercosul do que lidar com perdas setoriais.

No escopo do Mercosul, tem se falado cada vez mais de uma moeda em comum. Quais seriam os impactos para as economias que fazem parte do bloco?

Tanto Fernando Haddad quanto Sergio Massa [ministro da Economia da Argentina] estão falando, na verdade, em uma unidade de conta artificial utilizável no comércio entre os países em vez do dólar. São dois assuntos diferentes. Está bastante claro que uma moeda em comum de fato, no Mercosul, não é nada viável no momento. Primeiro, porque é difícil construir uma estrutura monetária desse tipo, como vimos no caso do euro, que durou décadas para ser erguida e já passou por algumas crises. Em segundo lugar, porque os dois principais países do bloco estão em momentos muito diferentes: a Argentina está em plena crise de dívida externa, com inflação descontrolada, fuga de capital e setor financeiro, além de dolarizado, quase esvaziado. Tudo o que o Brasil não quer é se juntar a um país nessa situação.

Por que há um interesse constante em fugir do dólar, ainda que alguns países da região tenham economias (formal ou informalmente) dolarizadas?

Tem ficado mais claro agora que a hegemonia monetária do dólar não é apenas uma consequência natural de mercado, mas também política. As sanções à Rússia por causa da guerra são muito concentradas nas relações financeiras baseadas em dólar, por exemplo, cujo epicentro é o sistema SWIFT, um ambiente formalmente privado de codificação de contratos financeiros internacionais. Isso significa que qualquer ator econômico que utilize dólar no mercado global precisa entrar no barco das sanções contra os russos a nível financeiro, querendo ou não — e, se não quiser, também será excluído. A percepção mais clara dessas assimetrias monetárias está fazendo com que os países procurem entender as alternativas existentes.

Um modelo semelhante ao euro é possível na América do Sul?

Até a crise do euro [em 2008], ele era uma referência positiva para a África, a Ásia e a América Latina. A ideia era que ter uma moeda comum tiraria a dependência do dólar e criaria um espaço comum de comércio. Depois da crise, essa percepção ficou mais crítica. Ainda estamos vivendo as consequências dela, na verdade. Não tanto na Alemanha, mas muitos países do sul da Europa viveram um período dramático, como a Espanha, a Grécia e a Itália. A lição foi que uma moeda comum tem suas assimetrias internas. De qualquer forma, a teoria convencional diz que é preciso percorrer um longo caminho de homogeneização de mercados, livre-comércio, regras fiscais e políticas etc., para se chegar a uma moeda comum. Seguindo essa perspectiva, a América do Sul nunca chegaria lá. O nível de comércios regional e intrarregional é muito baixo. A pergunta que fica é: por que isso é baixo?

E por quê?

Porque os países têm muitos desajustes entre eles. A inflação é um deles. As taxas de câmbio flutuantes, muito voláteis e descoordenadas, é outro. É muito arriscado um produto brasileiro se concentrar no mercado argentino, por exemplo, porque o câmbio pode estar lá em cima, em um dia, e lá embaixo, no dia seguinte. Nessa irregularidade, é impossível calcular os riscos.

Em julho, as trocas comerciais entre Brasil e China passaram a ser feitas gradativamente em remimbi (moeda chinesa). É outra tentativa de fugir do dólar. Quais são as vantagens para o Brasil e para a China em um acordo como esse?

A política de internacionalização do remimbiestá se reforçando agora, em parte por causa das sanções contra o dólar. Para a China, fazer comércio com outros países usando a própria moeda representa menos risco e mais controle das suas relações comerciais. Ao comprar soja brasileira em remimbi, por exemplo, os chineses conseguem fazer a taxa de câmbio do real frente ao dólar desaparecer. É menos risco cambial. Além disso, se acontecer de faltar liquidez em dólar (o que está longe de acontecer), o Brasil não teria como pagar as importações de produtos chineses em dólar, mas, se puder pagar em remimbi, permitiria que o banco central chinês oferecesse um crédito de liquidez e, assim, facilitasse esse problema temporário. Isso dá poder maior para os chineses manejarem o problema do credor-devedor, por exemplo. Mas é claro que ter uma moeda com alcance global, da mesma forma que o dólar, é uma questão de poder. Para a China, significa, sobretudo, diminuir riscos de exposição contra a moeda norte-americana e, ainda, aumentar o seu alcance no mundo.

E para o Brasil? Há vantagens?

É uma variação interessante. Significa ter mais opções. O Banco Central brasileiro pode estar querendo aumentar a participação de remimbi em sua composição de moedas internacionais, o que é muito bom. O risco está no fato de o remimbi ainda não ser uma moeda líquida do ponto de vista global. Pode chegar a um momento em que o Brasil estará lucrando em remimbi, mas precisará pagar algo em real ou em dólar e não encontrará um bom mercado para trocar as reservas em moeda chinesa por essas moedas.

Por que o Brasil tem os juros reais mais altos do mundo?

Lula tem politizado a discussão, né?

Bastante…

Existem vários níveis de resposta. Um deles é, de fato, a politização da discussão. Vemos um posicionamento mais político do que deveria ser por parte de um presidente de banco central. Aliás, globalmente, não é mais tão convencional essa ideia de que os bancos centrais devam ser cem por cento independentes, de que jogar os juros para cima é a única possibilidade que eles têm. A discussão nos países mais avançados está em ver como a orientação de se ter uma taxa de inflação muito baixa também é negativa. Também sabemos, hoje, que bancos centrais não são instituições totalmente neutras. A ideia monetarista era que elas deveriam ser isoladas de qualquer influência política e focar apenas em manter a estabilidade da moeda e da inflação. Mas política monetária não é neutra! Os efeitos distributivos são muito fortes.

Em que sentido?

Taxa de juros mais alta é muito bom para quem tem riqueza e muito ruim para quem tem dívida ou não tem riqueza. Gera efeitos distributivos regressivos. A discussão sobre a independência do Banco Central brasileiro aberta por Lula tem acontecido em outros países por razões diferentes. Ele tem um afã correto, mas a maneira como formula cai muito mal.

Da mesma forma, por que outras taxas elevadas são latino-americanas (México, Colômbia e Chile)? O que está por trás da lógica de países com juros muito altos?

A Índia poderia estar nessa posição também, assim como a África do Sul ou a Turquia. Esses países emergentes da América Latina aprenderam a duras penas, com as crises financeiras dos anos 1990 e 2000, que se expor a riscos de ciclos de liquidez internacional pode custar muito. Aprenderam a reagir pró-ciclicamente. Se os Estados Unidos aumentam a taxa de juros, eles aumentam muito mais para evitar saída de capitais. A ideia geral é que é melhor andar ao lado da lei do mercado do que correr riscos. Isso é muito latino-americano.

O Brasil terá, a partir de alguns anos, um regime tributário desenhado em torno do IVA, como muitos países da Europa. De um lado, alguns defendem que é o caminho para o País enriquecer. De outro, muita gente diz que a mudança vai travar a nossa economia. Como você avalia essa transformação?

Conheci o Brasil nos anos 1980 e, desde aquela época, há essa discussão sobre a urgência em simplificar o sistema tributário. Tecnicamente, a reforma de agora ataca um problema que nem é de ordem conservadora ou progressista, mas de construção técnica do sistema, de que ele é realmente improdutivo. Não sei se o País vai ficar rico com ela, mas, sem dúvida, resolverá alguns problemas importantes, como a imobilidade de bens entre os Estados. Do jeito que está, um produtor de cachaça mineira não pode vender no Rio de Janeiro, porque cairá em diferentes IVAs. Por outro lado, esse tipo de mudança sempre tem impactos setoriais diferentes. O setor de serviços, que teve algumas isenções de impostos no projeto aprovado, deve sentir mais efeitos. Isso é uma sinalização para continuar com outras isenções. Minha avaliação é de que a Reforma Tributária é muito importante, mas que não chegou ao ponto que deveria chegar, porque as negociações no Congresso envolveram muito o “toma lá dá cá”. Os efeitos redistributivos serão limitados.

Como assim?

O outro lado do sistema tributário brasileiro é que ele é bastante regressivo. É um assunto urgente. Não substitui a agenda de simplificação do IVA, mas é a última agenda mais importante desse debate: aumentar o grau de progressividade da estrutura tributária. Se compararmos os sistemas de quase todos os países latino-americanos com os da OCDE — com as exceções de Estados Unidos e Coreia do Sul —, veremos que o grau de desigualdade de renda antes da arrecadação de impostos não é tão diferente. Depois dos impostos, porém, a desigualdade cai muito, sobretudo na Europa, enquanto permanece na América Latina. Essa grande máquina redistributiva, que poderia ser o sistema tributário, inexiste na região. Agora, se há espaço político para isso é outro assunto.

Vinícius Mendes (em Berlim, Alemanha) Divulgação
Vinícius Mendes (em Berlim, Alemanha) Divulgação
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