entrevista

Um devaneio industrial na Amazônia

27 de maio de 2021
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Desconhecida até hoje por muitos brasileiros, a cidade de Fordlândia, às margens do Rio Tapajós no Pará, foi uma audaciosa aposta do empresário norte-americano Henry Ford (1863-1947) para dominar a indústria da borracha na década de 1920. A ideia se tornou um grande fiasco, mas deixou marcas profundas de devastação na Floresta Amazônica.

Munida do ímpeto imperialista, porém, sem nenhum geógrafo, biólogo, botânico ou especialista local, a equipe de Ford se instalou no meio da floresta e tentou implantar o modelo fordista na população local e subjugar a natureza para extrair borracha em larga escala.

Em pouco mais de 18 anos, o projeto se mostrou um retumbante fracasso. As plantações de seringa não resistiram às pragas, os norte-americanos contratados pela empresa não se adaptaram à vida na selva e a indústria automobilística mundial, na década de 1940, já havia adotado a borracha sintética na sua produção. Isto é, não havia motivos para persistir naquela difícil empreitada na maior floresta tropical do mundo.

“O caso do Ford se tornou mais significativo pelo fato de terem aberto estradas, permitindo a penetração na floresta, que pavimentou todo o caminho para outros modelos mais dinâmicos e muito mais agressivos, como a mineração e a soja, que vemos hoje presentes na região”, aponta o professor Marcos Colón, coordenador do programa de Português na Universidade Estadual da Flórida, nos Estados Unidos.

Em entrevista à PB, Colón, que em 2017 lançou o documentário Beyond Fordlândia (“Muito além da Fordlândia”, em tradução para o português), conta detalhes sobre as consequências econômicas e ambientais do abandono da Ford na região, bem como os impactos que podem ser sentidos até os dias atuais. Acompanhe.

“O fato de o Brasil permitir a exploração da Amazônia para os avanços da mineração, do garimpo e do agronegócio revela o desprezo pela cultura regional, pelas vozes locais que serão caladas e pela floresta, que jamais será a mesma. ”

Como analisa o descompasso da relação entre o capital e os recursos naturais no caso Fordlândia?

É extremamente questionável o desembarque da companhia Ford na Amazônia brasileira em 1927, por vários fatores. O primeiro deles é que já havia, naquele momento, o declínio do boom da borracha. Outro fato relevante é que os norte-americanos foram se instalar em um habitat, até certo ponto, para eles inóspito, onde não havia condições necessárias para o desenvolvimento da plantação da seringa, como pensavam em princípio. Eles trouxeram engenheiros, mecânicos e todo um grupo técnico de trabalhadores dos Estados Unidos para o Brasil, mas não trouxeram um biólogo ou geógrafo, que teria dado a eles alguma informação básica de que aquele local não era apropriado para o cultivo da borracha, a começar pela própria geografia do terreno, completamente acidentado, não tinha realmente as condições plenas para instalar a linha de montagem que queriam fazer.

Os norte-americanos queriam fugir da dependência dos ingleses e dos holandeses no suprimento de látex que vinha para as linhas de montagens. Diziam, na época, que não queriam ficar subservientes àquele modelo de dependência econômica da borracha, mas que, naquele momento,[o mercado de látex] já estava passando por uma transformação.

Este argumento foi uma falácia, porque mais tarde observamos que o [Henry] Ford lucrava muito mais com as extrações de madeira e dos minerais na região de Fordlândia e Belterra [Pará] do que com o cultivo da borracha.

A madeira, em si, pagou o investimento que a Ford fez na região. Mas, então, por que deu errado? Costumo dizer que Ford tinha uma utopia capitalista de controle sobre a natureza – que, por si só, já é um elemento que nos deixa com bastante suspeição. O maior erro dele foi querer dominar a natureza, não somente a floresta, como a natureza humana local. Os norte-americanos usurparam e agrediram os modos de vida locais, impondo dinâmicas complemente distorcidas sobre aqueles povos, alheias à vida do caboclo da região amazônica. Alteraram alimentação, festividades, carga horária, entre muitas outras imposições. O modelo era muito racional e achavam que a natureza iria se curvar a esta imposição, inclusive a seringa, que, na visão deles, deveria seguir suas regras. No fim, foram complemente derrotados, ficando claro que a floresta é muito maior do que o capitalismo.

Pode-se afirmar que o fordismo fracassou na região amazônica?

Não totalmente, porque o fordismo não foi o modelo escolhido por Ford na Amazônia. Na verdade, era um modelo autoritário que chamo de “Matriz Fordlândia”. Este modelo foi espelhado no tipo de projeto que a Ford fazia nos Estados Unidos e em outros países da América do Sul, extremamente segregador, controlador, que tinha na sua essência as digitais do Ford.

Ford impôs aos Estados Unidos um sistema segregacionista, no qual havia salários maiores para brancos e era fortemente contra judeus. Esta ideia de controlar todo o processo de linha de montagem, desde o início até o fim da produção, é replicada até os dias atuais, e isso é muito perigoso.

Isto é, o modelo predatório que Ford tentou implantar na Amazônia fracassou, pela imposição da natureza. O fungo venceu Ford, mas o sistema segue se dinamizando em outras formas de domínio sobre a região.

Quais foram os prejuízos econômicos e ambientais causados pelo abandono da empresa para a região?

No lado da Ford, o prejuízo econômico foi praticamente nenhum (ou muito pouco). A empresa se instalou em uma região cedida pelo governo, tanto Fordlândia quanto Belterra regressaram para a União após a saída da Ford. Portanto, o prejuízo por ter abandonado toda aquela estrutura, do dia para a noite, foi sentido mais pela população local, que dependia daquele trabalho. De certa forma, foi como ocorreu no início deste ano, quando a Ford parou de produzir automóveis no Brasil. Os trabalhadores ficaram desempregados, sem muitas perspectivas, e tentam se reinventar.

O maior prejuízo, de fato, que o modelo Ford causou na região foi ambiental. Fordlândia foi a gênese do processo de colonização e invasão da Amazônia. Se Ford tivesse obtido sucesso, abriria caminho para outros investimentos da mesma magnitude. Fato que chegou a acontecer, 40 anos depois, com o caso de [Daniel] Ludwig, no Projeto Jari [papel e celulose], que repetiu o mesmo modelo, a mesma sanha do Ford de querer dominar a floresta.

Entretanto, o caso de Ford se tornou mais significativo, pelo fato de terem aberto estradas, permitindo a penetração na floresta, pavimentou todo o caminho para outros modelos mais dinâmicos e muito mais agressivos, como a mineração e a soja, que vemos hoje presentes na região. Esta exploração mudou de maneira radial o clima do local, não somente a paisagem, como todo o bioma nativo, com longas queimadas que duram meses.

O grande legado negativo da presença da Ford na Amazônia foi a esteira de destruição que se iniciou a partir da instalação de Fordlândia e que perdura até hoje. Belterra, em 2019, possuía 13.851 mil hectares de plantio de soja. Já em 2020, este número saltou para 25 mil hectares. Ou seja, o modelo Fordlândia foi bem-sucedido, neste sentido, porque se reinventou de maneira nociva, e parece que ninguém se dá conta disso naquela região.

“Os norte-americanos queriam fugir da dependência dos ingleses e dos holandeses no suprimento de látex que vinha para as linhas de montagens. Este argumento foi uma falácia, porque mais tarde observamos que o [Henry] Ford lucrava muito mais com a extração de madeira e dos minerais na região de Fordlândia e Belterra, do que com o cultivo da borracha.”

É correto fazer um paralelo entre a subserviência brasileira perante os americanos na época, que aceitou a instalação do projeto no coração da Amazônia, com os posicionamentos do atual governo brasileiro?

São dois momentos diferentes, mas, ao mesmo tempo, existem algumas semelhanças na sua essência. Se pegarmos o exemplo da Ford na Amazônia e os projetos que surgiram após, todos foram em nome do desenvolvimento. Entretanto, a pergunta que deveria (e deve) ser feita é: desenvolvimento para quem?

A floresta é desenvolvida, tem os recursos necessários para sua subsistência e não precisa do homem. Na verdade, o homem é quem precisa da floresta.

Todos os projetos que temos no Brasil, hoje – seja na Zona Franca de Manaus, seja no polo siderúrgico do Pará, seja na [Usina Hidrelétrica de] Belo Monte, seja no agronegócio –, vêm buscar na floresta os recursos que eles precisam para a subsistência. Contudo, a forma como isso é feito vilipendia a natureza e não compensa todas as riquezas retiradas de lá. Este modelo, inaugurado pela Ford e amplificado por outras empresas, foi utilizado pelo governo de Donald Trump, pelo qual o governo brasileiro se espelha.

O fato de o Brasil permitir a exploração da Amazônia para os avanços da mineração, do garimpo e do agronegócio, revela o desprezo pela cultura regional, pelas vozes locais que serão caladas e pela floresta, que jamais será a mesma. A repetição do modelo de Fordlândia pode ser visto em projetos de infraestrutura em andamento, como a Ferrogrão – ferrovia que parte do Mato Grosso até o Porto de Itaituba (PA). Essa estrada de ferro transportará grão de soja, passando por 16 comunidades e territórios indígenas, que jamais foram ouvidos ou consultados sobre o estrago que essa ferrovia irá causar. Tudo isso em nome da ilusão do desenvolvimento.

Esta é uma luta que temos para evitar que este modelo siga em frente, e, hoje, é uma pauta global que pode frear estas investidas contra o futuro de todos.

REMISSÃO:
A saída da Ford do Brasil, no início deste ano, e o episódio da Fordlândia, foram debatidos no podcast da revista PB, que pode ser ouvido clicando aqui.

Filipe Lopes Divulgação
Filipe Lopes Divulgação
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