Trabalho escravo não é a doença, mas sintoma. Mostra que algo está errado na sociedade. A afirmação é de Leonardo Sakamoto, jornalista e presidente da Repórter Brasil, organização considerada o principal centro de informações sobre o combate à escravidão contemporânea no Brasil. Desde 2003, a instituição rastreia cadeias produtivas e entende o seu funcionamento. Até agora, mais de 2 mil redes ligadas ao trabalho análogo ao escravo foram identificadas.
Segundo Sakamoto, essa é uma das mais antigas formas de exploração, que surge quando alguém se acha no direito de transformar um semelhante em um instrumento descartável de trabalho. Da antiguidade clássica até hoje, o problema foi se transformando, mas, em todas as suas formas de expressão, há sempre um elemento básico: a ganância. Sakamoto aprofunda ainda mais o tema em entrevista exclusiva à equipe da Problemas Brasileiros durante a última Conferência Ethos 360º, o maior evento empresarial sobre desenvolvimento sustentável. Confira a seguir.
O trabalho escravo é um dos crimes mais antigos da humanidade, que nasce quando alguém se acha no direito de transformar o semelhante em um instrumento descartável de trabalho. É claro que, da Antiguidade Clássica até hoje, foi mudando. Contudo, a negação da dignidade e da liberdade persistem. Existem diferenças entre o trabalho escravo nas antiguidades Grega e Romana. Depois, nas Américas, abastecido pelo tráfico transatlântico de africanos, até o que chamamos de escravidão contemporânea. Ainda assim, em todos os casos, há este elemento básico: alguém achar que pode ficar rico explorando a dignidade de outra pessoa e negando a ela a liberdade e o mínimo dos direitos.
Se considerarmos as Nações Unidas, o trabalho escravo se divide entre aquele que é tocado pelo Poder Público e o do setor privado. O do setor público, basicamente, é o trabalho forçado de presos e de pessoas que estão com a liberdade restrita. Por outro lado, no setor privado, temos aquele para exploração econômica — como doméstico, confecção de carvão etc. — e para a exploração sexual. Há, também, formas de escravidão para casamentos forçados, como meninas que são obrigadas a se casarem muito cedo para se tornarem, na prática, trabalhadoras domésticas escravizadas de homens mais velhos.
Há trabalho escravo no mundo todo, em todos os países, dos mais ricos aos mais pobres. Existe uma falsa percepção de que esse problema está relacionado apenas a lugares muito pobres. Na verdade, a pobreza aumenta a vulnerabilidade e faz com que essas pessoas acabem se tornando presas fáceis para redes de aliciamento e de transformação de pessoas livres em escravizadas. Contudo, temos trabalho escravo relacionado diretamente ao crescimento econômico, quando é necessária mão de obra. Então, países como os Estados Unidos têm trabalho escravo no cultivo do tomate. Na França, há na agricultura e nos serviços. No Brasil, desde 1995, quando o governo brasileiro reconheceu diante das Nações Unidas a persistência de escravidão, até hoje, mais de 61 mil pessoas foram resgatadas. Grande parte delas estava na pecuária bovina, principalmente na região da Amazônia brasileira. A fronteira agrícola amazônica é a principal área de exploração do trabalho, mas não a única. Nos últimos anos, o trabalho escravo também apareceu com frequência em regiões como Minas Gerais, em que há áreas de expansão e modernização da atividade agropecuária; em São Paulo, na construção civil, nas oficinas de costura, no trabalho doméstico. Há, praticamente, trabalho escravo no País inteiro, com concentração maior nessa área de expansão agropecuária e extrativista da Amazônia.
Elas não são miseráveis famélicas. Quando alguém escraviza outra pessoa, está em busca de força na mão de obra. Então, não são pessoas que estão morrendo de fome, mas são vulneráveis economicamente, que não têm recursos para manter uma qualidade de vida para si e para a família. Por causa desse desalento, vão em busca de melhores condições. Desde 2003, o governo brasileiro concede seguro-desemprego para quem é resgatado do trabalho escravo. Essas pessoas acabam preenchendo um longo questionário. Essas informações têm abastecido o sistema de combate a esse grave crime, porque mostram onde a pessoa nasceu, onde mora e de onde foi resgatada. O que temos visto é que municípios com baixo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) apresentam alto índice de resgate.
Cobrindo guerra, eu peguei malária duas vezes. Essa doença provoca febre, diarreia e dor no corpo. Se você tratar malária com analgésico e antitérmico, pode até melhorar momentaneamente, mas o corpo acaba morrendo. É necessário tomar o remédio que combate a doença. Com a trabalho escravo, é a mesma coisa. Ele não é a doença em si. É um sintoma que mostra que alguma coisa está errada, que a sociedade tem um problema de injustiça social, desigualdade, concentração de renda muito grande e falta de oportunidades para garantir que cada um possa se desenvolver. Quando são negadas essas condições — para que a pessoa possa ter uma vida digna —, a situação dela vai corroendo. Essa corrosão acaba levando a condições degradantes. Se conseguíssemos combater não só a febre, mas as causas do problema, teríamos a erradicação dessa prática. Hoje em dia, os antitérmicos são os resgates, fundamentais e necessários. No entanto, só resgate não funciona. É necessário atuar em um tratamento holístico, em um tripé contra a impunidade, a ganância e a falta de oportunidade. Combater pobreza é combater trabalho escravo.
As empresas têm um papel fundamental, porque utilizam esse tipo de obra. Desde 2003, a nossa organização Repórter Brasil rastreia cadeias produtivas de trabalho escravo e entende como funciona essa rede de relações econômicas e fornecimento de produtos. Já rastreamos mais de 2 mil cadeias ligadas ao trabalho escravo e ao desmatamento. Fornecemos essas informações ao sistema produtivo, ao Estado e à sociedade para que possam desenvolver políticas próprias de combate. Não apenas com o compliance básico e seguindo a lei, mas monitorando as cadeias de fornecedores diretos e indiretos com a devida diligência. Se o sistema produtivo começa a negar recursos e dificultar a compra de produtos de quem utiliza trabalho escravo, acaba fazendo com que essas empresas — que operam na ilegalidade — percebam que esse lucro pode virar prejuízo. Há muitos interesses envolvidos, mas se as empresas brasileiras querem continuar tendo acesso ao mercado, precisam pressionar o sistema e os setores para garantir que operem dentro da lei.
Avançamos muito no combate à impunidade e à ganância ao longo dos anos. Precisamos, agora, avançar no combate à pobreza, porque é esta que vulnerabiliza os trabalhadores e os torna mais suscetíveis ao trabalho escravo. O papel das empresas não é doar cesta básicas e brinquedos de plástico, mas pagar decentemente os trabalhadores e trabalhadoras por meio de carteiras assinadas, garantindo seguridade social e exigindo que os parceiros façam o mesmo. E quando for terceirizar, garantir que os terceirizados tenham os mesmos direitos dos internalizados. É por isso que é tão difícil combater trabalho escravo, porque as pessoas precisam fazer o óbvio — e isso, no Brasil, é muito difícil.