Desde 1995, mais de 60 mil pessoas foram resgatadas no Brasil em situações análogas à escravidão. Se, por um lado, esse contingente revela um grande avanço para o País rumo à erradicação do trabalho escravo, por outro, ainda há muito o que ser feito para que a prática seja definitivamente eliminada, principalmente em zonas rurais. Segundo o coordenador do projeto de combate ao trabalho escravo da Organização Internacional do Trabalho (OIT), Luiz Machado, existe um círculo vicioso associado ao crime de tráfego de pessoas. Políticas estruturais voltadas às promoções da educação e da geração de oportunidades de emprego são algumas das formas de solucionar essa questão. Machado concedeu entrevista exclusiva à Problemas Brasileiros durante participação no evento Ethos 360º, realizado pelo Instituo Ethos no fim de 2023. O tema “escravidão” foi um dos grandes destaques desta edição, que teve como mote principal as desigualdades sociais no País. Confira a entrevista a seguir.
O Brasil combate o trabalho escravo desde 1995. Foi naquele ano que o País assumiu a existência do problema. Isso, por si só, já é um passo muito importante. Muitos países [onde a prática ocorre] não assumem, justamente porque, ao assumir, terão que enfrentar o problema. Desde então, recebemos denúncias vindas de todas as partes do Brasil, pelos chamados “grupos especiais de fiscalização móvel”. Até agora, já foram resgatadas mais de 60 mil pessoas nessa condição. Temos um modelo [de denúncia] que não é encontrado em nenhum lugar do mundo, por isso, somos uma referência.
Essa ação fiscal possibilitou desdobramentos como o próprio Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo, e a consequência para empregadores flagrados pelos fiscais é a entrada na chamada “lista suja do trabalho escravo”. Com isso, nós conseguimos rastrear para onde vão os produtos desses empregadores. Além disso, o Brasil se destaca no cenário internacional porque conta com uma legislação avançada, que vai além das convenções da Organização Internacional do Trabalho (OIT), incorporando a ela um ordenamento jurídico.
A Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae), que funciona desde 2003, coordena e integra diversas forças, entidades, representantes do governo, empregadores, trabalhadores, sociedade civil e ambientes acadêmicos. Esses órgãos, a exemplo da Conatrae, são muito importantes, porque definem o papel de cada um, além de ter como foco implementar e monitorar o Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo.
Outra ferramenta importante é a lista suja dos trabalhadores flagrados. Os primeiros nomes foram divulgados no fim de 2003. São praticamente 20 anos que o Brasil vem mantendo relevância nesse trabalho, por meio da publicação.
Costumamos dizer que o trabalho escravo é um círculo vicioso porque as pessoas estão vulneráveis, de alguma forma, a cair nessa armadilha. Aqui, no Brasil, é muito comum encontrarmos mais homens nessa situação [para atividades pesadas, em zonas rurais], pessoas que estão sem trabalho, sem geração de renda e disponíveis para um “bico”, um trabalho temporário. Às vezes, dá certo, pois recebem pelo trabalho; outras vezes, não.
A forma mais comum de se restringir a liberdade dos trabalhadores é pela servidão por dívida. Consegue-se, de alguma forma, imputar uma dívida ilegal ao trabalhador, fazendo com que ele fique ali, preso. A repressão [por parte dos agentes responsáveis] é muito importante para tirar as pessoas que estão nessa situação, mas também precisamos acabar com as vulnerabilidades que levaram esses indivíduos a isso. De que forma? Por meio de políticas estruturais: redução da pobreza e aumento da educação, além de maneiras de promover a geração de renda e empoderar as famílias.
Os consumidores podem (e devem) cobrar informações das empresas. Estamos analisando novas legislações internacionais, estudando políticas de compliance e de monitoramento de informações sobre a cadeia produtiva, para que não sejam comercializados produtos que foram feitos por meio do trabalho escravo.
A OIT, quando viu a primeira chamada da lista suja, percebeu ali uma oportunidade. Já existiam outros tipos de rastreamento e estudos de cadeia [de produção], mas, agora, nós tínhamos os nomes das pessoas flagradas praticando o trabalho escravo, uma lista pública do governo. Chegamos a diversas empresas que estavam se beneficiando de alguma forma da exploração do trabalho escravo e, então, chamamos essas companhias para o diálogo, reunindo empregadores, trabalhadores e governo, e, assim, resolvermos o problema.
Com as informações à mão, conseguimos trazer grandes grupos econômicos para o diálogo. Estar associado ao trabalho escravo mancha a reputação. Daí nasceu a iniciativa do pacto — à época, com 11 compromissos. Na nossa opinião, o compromisso principal era monitorar a lista suja e cruzar as informações com os respectivos fornecedores. A ideia nunca foi boicotá-los, mas assumir um papel de educação, resolver a situação.
Precisamos avançar muito na questão do pós-resgate. São 60 mil resgatados e outros milhares que passaram pelo trabalho escravo e não foram alcançados pela fiscalização. É um número incerto. Precisamos acabar com o círculo vicioso, dar oportunidades de trabalho. Nesse sentido, o setor privado tem responsabilidade. O Sistema S, por exemplo, é um modelo incrível.
Às vezes, o trabalhador não quer ser empregado, trabalhar na terra de outra pessoa. Ele quer produzir na própria terra ou fazer artesanato para vender. É preciso entender o contexto sob a óptica dessas pessoas para, juntos, acabar com esse círculo vicioso.
Infelizmente, ainda não. É muito difícil acabar [totalmente] com o trabalho escravo. É um crime conectado ao tráfego humano, está entrando em setores que, antes, não enxergávamos e outros que não existiam. Acho que ainda vai levar um bom tempo para que isso chegue, de fato, ao fim.