Nos últimos dias de 2020, todo mundo que tinha algum dinheiro gerido pela BlackRock – a maior gestora de fundos financeiros do planeta, com uma carteira de US$ 8,4 trilhões em dezembro de 2022, sediada em Nova York, nos Estados Unidos – recebeu uma carta do CEO e fundador da empresa, Larry Fink, com um anúncio definitivo: “A sustentabilidade deverá ser nosso novo padrão de investimentos”.
À época, muitos analistas globais entenderam a mudança como um efeito da pandemia de covid-19 sobre o mercado financeiro – que voltara aos mesmos métodos de trocas de papéis e refinanciamento de dívidas que levaram à crise de 2008 e fez um dos maiores bancos do mundo, o Lehman Brothers, ruir do dia para a noite.
A carta, no entanto, tinha um argumento menos altruísta para explicar a preocupação com o meio ambiente. Fink escreveu que muitos dos seus clientes estavam vendo seus investimentos perderem valor por fatores relacionados às mudanças climáticas.
Ele ainda confessava que os titulares das carteiras da BlackRock estavam ansiosos com um processo, hoje, considerado inevitável: a mudança para uma economia de baixo carbono, que exige uma transformação radical na matriz energética global. Fink dá até um nome a esta preocupação: “risco de transição”, que oferece uma nova carteira de fundos sustentáveis amparados em projetos ESG (sigla para Ambiental, Social e de Governança, em português) e em títulos financeiros sustentáveis. O mais famoso deles são os chamados green bonds.
O mercado “verde” era, até meados da década passada, insignificante em relação aos fluxos tradicionais de recursos do mundo financeiro. No começo de 2016, um relatório da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) apontava que o total global de títulos verdes (green bonds) emitidos no ano anterior somava US$ 40 bilhões – quase o equivalente das emissões totais do mercado de capitais apenas do Brasil naquele ano, segundo a Associação Brasileira de Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais (Anbima).
Ainda assim, em meados no anto anterior, o Banco Mundial publicou um relatório dizendo que já se vivia um “crescimento explosivo de green bonds”, e que o fenômeno confirmava a aposta da entidade neste tipo de financiamento de projetos. De fato, no segundo semestre de 2020 – enquanto Fink escrevia a carta aos investidores –, cerca de US$ 270 bilhões de green bonds foram emitidos em projetos diversos ao redor do mundo, segundo dados da Climate Bonds Iniciative (CBI).
O mercado financeiro chama de “títulos” (ou bonds) todo tipo de captação de recursos que tem, como contrapartida, uma dívida ativa da parte de quem os emite. É um jogo entre devedores e credores, que emprestam o dinheiro visando a garantir lucros ao longo da negociação com os juros fixados no ato do contrato – por isso, são conhecidos como “renda fixa”. Neste momento, eles tomam nas mãos um papel contendo o valor da dívida, as multas previstas por possíveis quebras do acordo e as taxas cobradas. Este papel é um título.
É diferente do mercado de ações (stocks), em que uma pessoa adquire uma fração de uma empresa, com o objetivo de obter retornos à medida que o negócio cresce. Os títulos verdes são contratos de dívidas em renda fixa que funcionam apenas para investidores financiarem projetos com benefícios ambientais no escopo. No jogo, estão envolvidos, principalmente, empresas e governos, em áreas que vão da energia renovável, da construção civil e do manejo de águas até a logística.
Como a Problemas Brasileiros mostrou recentemente, quase metade (47%) dos green bonds emitidos em 2022 na América Latina saiu do setor de energia, número parecido com o volume de emissões no Brasil (52%). No País, ainda figuram projetos ligados a terra (23%) e transportes (9,5%).
No ano passado, o Chile foi o maior emissor latino-americano de títulos sustentáveis (que reúnem green, social e sustainability bonds) da América Latina, com um volume total de US$ 41,5 bilhões, segundo a CBI. No mundo, Estados Unidos e China disputam esta posição. Apesar de funcionarem na mesma lógica dos títulos tradicionais – com valor inicial, vencimento, taxa de juros etc. –, esses títulos recebem um selo verde que exige, do emissor, o cumprimento das previsões sustentáveis apresentadas no momento da captação. “Os green bonds podem ser entendidos como integrantes da modernização dos títulos sustentáveis por parte das empresas, que ligam projetos de sustentabilidade, em geral, a investidores dispostos a injetar dinheiro neles”, explica Rodrigo Sluminsky, professor do curso de ESG e Regulação na FIA Business School, em São Paulo.
Julia Ambrosano, coordenadora do programa de Infraestrutura da Climate Bonds, lembra que, de uns anos para cá, as instituições financeiras passaram a exigir frações de investimentos alinhadas com o escopo ESG, o que fez o mercado financeiro verde galopar em um curto período. “Hoje, é comum que 10% do portfólio das gestoras de fundos já sejam direcionados a investimentos do tipo. É por isso que há uma preocupação com as credenciais dos projetos apresentados”, diz. Apesar de ainda não existir uma regulação estabelecida sobre o mercado de títulos verdes, tem sido cada vez mais comum que entidades de fora do mundo financeiro assumam o papel de fornecer o selo “verde” a empresas, governos e atores individuais, como é o caso da própria CBI.
A sigla ESG, que apareceu pela primeira vez no artigo “Quem se importa vence”, publicado por um conjunto de bancos em um relatório de 2004, foi uma reação à convocação do então secretário-geral da ONU, Kofi Annan, para que instituições globais participassem mais ativamente da pauta da sustentabilidade. De 2020 em diante, a ascensão foi repentina. No fim do ano passado, uma pesquisa mostrou que as buscas pelo termo e por correlatos mais do que dobraram no Google.
No mercado financeiro, o ESG teve como efeito o surgimento de outros produtos, principalmente títulos de dívidas. Em 2020, por exemplo, a União Europeia praticamente inaugurou a era dos social bonds, ao anunciar um pacote de 17 bilhões de euros em títulos para proteger empregos durante a crise da covid-19.
Os títulos sociais – ou social bonds – funcionam na mesma lógica, mas focados em atividades que ofereçam benefícios sociais. No fluxo atual, ligam-se, principalmente, a projetos que atuem sobre populações na linha da pobreza e comunidades marginalizadas (como migrantes), bem como abordem questões contemporâneas, a exemplo de programas de atendimento a pessoas LGBTQIA+.
Durante a pandemia, este tipo de produto financeiro serviu de guarda-chuva para outro: os COVID-related-bonds, ou “títulos relacionados à covid-19”, que fizeram este nicho do mercado emitir US$ 163 bilhões em títulos no fim de 2020. Segundo a Climate Bonds, o Brasil emitiu US$ 11,6 bilhões em green bonds até o terceiro trimestre de 2022, enquanto o volume de social bonds ficou na casa dos US$ 3,6 bilhões. “Os investidores procuram projetos que ofereçam métricas seguras de avaliação do risco e de andamento das ações. Hoje, no País, quem oferece isso são as áreas ambientais”, fundamenta Julia. No Brasil, dentre os títulos sociais, a maior parte (27%) se refere a planos ligados à infraestrutura, como programas de moradia para pessoas de baixa renda, seguida por projetos de empregabilidade e capacitação profissional (15%).
Dois outros tipos de títulos surgiram no mercado financeiro como reações aos fluxos das dívidas para projetos verdes e sociais: os sustainability bonds e os sustainability-linked-bonds, que reúnem alguns princípios e procedimentos dos primeiros. Os “títulos sustentáveis” (sustainability bonds) são emissões feitas para injetar dinheiro em programas que envolvam impactos tanto ambientais como sociais.
Já os “títulos ligados à sustentabilidade” (sustainability-linked-bonds), também conhecidos pela sigla SBL, são emitidos toda vez que uma empresa apresente um programa de metas dentro do escopo ESG, que são calibradas por um indicador global de desempenho (o KPI) e geralmente elaboradas pelos emissores das dívidas. Por serem mais abrangentes, podem corresponder a objetivos ambientais ou sociais, em planos que vão desde reciclagem de lixo a ações de diversidade.
Nomenclaturas à parte, o resultado, pontua Rodrigo Sluminky, é que a profusão de novos nomes demonstra o futuro incerto dos títulos sustentáveis. Como a emissão desses bonds temáticos está sujeita à remodelação dos conceitos de sustentabilidade e de financiamento, as empresas acabam criando a própria definição. Não há uma taxonomia pública. “Assim, os negócios procuram consultorias especializadas que definam um framework e digam o que é sustentável e o que não é”, explica o professor da FIA Business School.