“Eu só quero chocolate”, cantava Tim Maia no início dos anos 1970. O hit foi lançado a convite da Associação Nacional dos Produtores de Cacau (ANPC), e, mais de cinco décadas depois, o doce segue arrebatando corações e estômagos mundo afora, com opções premium ganhando destaque entre os apreciadores da guloseima. No entanto, o bom e velho chocolate tem amargado no preço. Tudo porque o valor do cacau, principal matéria-prima do chocolate, disparou nos últimos tempos — e nem mesmo quedas recentes aliviou a cotação da commodity.
Para se ter uma ideia, o preço do cacau subiu 136% entre julho de 2022 e fevereiro de 2024, de acordo com o monitoramento de preços de commodities da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad). A tonelada saiu de cerca de US$ 2,5 mil, há um ano, para atingir a marca recorde, em termos nominais, de US$ 11 mil no início de abril. No fim do mês, os valores deram uma trégua, com a tonelada voltando para a casa dos US$ 8 mil, mas ainda bem acima do visto há cerca de um ano.
Múltiplos motivos explicam a disparada, mas o mais significativo é o clima: ondas de calor e chuvas intensas estão prejudicando as colheitas na África Ocidental, que produz três quartos do cacau do mundo, conforme relata a agência da ONU. “A crise climática tem sido responsável pelo impacto significativo sobre a produção de cacau em várias regiões do mundo, especialmente nos países tropicais, onde o cacau é cultivado. Neste ano, o preço das sementes da fruta sofreu um aumento importante em razão da escassez de oferta, o que se deve a colheitas mais fracas nos dois países produtores mais importantes, como Costa do Marfim e Gana”, explica a professora Paola Biselli, docente do curso de Gastronomia na Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Leandro Gilio, professor e pesquisador especializado em agronegócio no Centro de Agronegócio Global do Insper (Insper Agro Global), considera que a situação é bastante delicada e lembra que o oeste africano atende a cerca de 70% da demanda global do cacau. Ele comenta que o fenômeno climático El Niño — que altera a temperatura dos oceanos e reflete de forma intensa no regime de chuvas nas áreas tropicais — pesou muito por lá, o que também aumentou a incidência de pragas nas lavouras. Para completar o quadro já caótico, há também o envelhecimento dos pés de cacau. Diferentemente de outras culturas, cujo plantio e cuja colheita se renovam a cada safra, o ciclo do cacau é longo. São cerca de três anos para que uma nova árvore dê frutos. O resultado é clássico: alta demanda e oferta restrita elevam os preços. “As questões climáticas não foram as únicas responsáveis pelo déficit de produção de cacau, as doenças lá existentes dizimaram a produção de cacau naqueles países. A Phytophthora megakarya, por exemplo, é responsável por perdas de até 80% na produção africana. O broto inchado, segundo informações do próprio governo marfiniense, só é erradicado com o arranque”, comenta Vanuza Barroso, presidente da ANPC.
O professor Gilio lembra que, nos últimos dois anos, a produção mundial de cacau vem se reduzindo, com a safra atual global 11% menor do que a anterior. A estimativa, diz ele, é que haja um déficit global de 374 mil toneladas nesta safra, que vai de setembro de 2023 a setembro de 2024. Isso é mais do que toda a produção brasileira — que, hoje, é de cerca de 270 mil toneladas. Diante desse cenário, especialistas consideram que o Brasil pode desempenhar um papel de destaque no mercado internacional. Além disso, o aumento do preço pode ser um estímulo para que haja investimentos na cadeia. “O País é uma grande potência do agronegócio. Há grandes possibilidades de produção e temos como aproveitar parte desse mercado, que é também um dos caminhos para diversificação do agronegócio”, avalia o professor.
A expansão da produção no Norte do País, especialmente no Pará, traz ânimo para que o Brasil se torne um importante exportador de cacau. Atualmente, apesar de ser um dos dez maiores produtores do mundo, a produção nacional é destinada quase que unicamente ao mercado interno. De acordo com dados da Associação Nacional das Indústrias Processadoras de Cacau (AIPC), o volume recebido de amêndoas nacionais pela indústria processadora de cacau registrou alta de 7% no ano passado, na comparação com o ano anterior: foram 220 mil toneladas, em contraste com as 205 mil toneladas de 2022. “Nos últimos anos, tivemos um crescimento constante da produção, reflexo dos diversos investimentos de diferentes atores da cadeia, com foco na melhoria da produtividade e em novas áreas de cultivo”, explica a presidente-executiva da AIPC, Anna Paula Losi.
Famosa na literatura de Jorge Amado, a Bahia, especialmente a região de Ilhéus, foi responsável por 61,9% do volume total de amêndoas nacionais recebidas pela indústria em 2023, totalizando 136 mil toneladas. O Pará, por sua vez, foi responsável por 33,7% do volume entregue, com 74 mil toneladas. As exportações de derivados, que atendem, principalmente, aos mercados da Argentina, dos Estados Unidos e do Chile, nessa ordem, mantiveram-se praticamente estáveis em 2023, com 47 mil toneladas no ano.
Contudo, 2024 não está mantendo o mesmo ritmo do ano passado, pelo menos nos primeiros três meses. Conforme a APIC, o primeiro trimestre registrou queda de 31% no volume de amêndoas nacionais recebido pelas processadoras de cacau. Foram 18,7 mil toneladas recebidas no período, em contraste com as 27,2 mil toneladas nos três primeiros meses de 2023. “No primeiro trimestre de todo ano já é esperado um volume menor de recebimento, mas em 2024 a queda foi de mais de 30% comparado a 2023. Essa redução se deve principalmente aos impactos do El Niño e de doenças como a vassoura-de-bruxa e podridão-parda”, explica Anna Paula Losi.
Um dos temas da primeira fase da novela Renascer, remake atualmente no ar pela TV Globo, a vassoura-de-bruxa é uma doença causada pelo fungo Moniliophthora perniciosa, que atinge a lavoura de cacau. Na trama, a personagem Cândida, interpretada pela atriz Maria Fernanda Cândido, é viúva de um fazendeiro de Ilhéus que teve a roças dizimadas pela doença, o que não se restringe à ficção. A praga chegou ao sul da Bahia no fim dos anos 1980 e se estendeu até os anos 2000, destruindo grande parte da produção regional. Antes dessa praga, a produção na região chegava a cerca de 400 mil toneladas por ano. “A vassoura-de-bruxa e a mudanças climática têm em comum o fato de afetarem a produção de cacau, representando desafios significativos para os agricultores e para a indústria como um todo. No entanto, enquanto a primeira é uma doença específica que pode ser tratada e controlada, a segunda é um fenômeno amplo e complexo, com causas e impactos que se estendem para além do setor agrícola”, avalia a professora Paola, ao lembrar que a mudança climática causa impactos generalizados no planeta, prejudicando não apenas a agricultura, mas também os ecossistemas, o clima global e a segurança alimentar. “Portanto, embora possamos fazer uma comparação entre os dois em relação ao seu impacto sobre a produção de cacau, é importante reconhecer que essa transformação é um desafio mais abrangente, que requer uma resposta mundial coordenada e de longo prazo”, finaliza.
Outro desafio para os produtores nacionais é certificar a procedência do próprio produto, ou seja, garantir que não fora produzido por intermédio de trabalho infantil ou análogo ao escravo, de maneira sustentável e ética. Nesse sentido, os selos de qualidade têm se tornado um importante aliado, pois ajudam a construir confiança entre os consumidores e os compradores internacionais, demonstrando que a fruta foi cultivada de forma ambientalmente responsável, com respeito aos direitos dos trabalhadores, além de remuneração justa aos produtores — muitas vezes, da agricultura familiar. “O Brasil é um dos únicos países no mundo que está totalmente dentro dos padrões que o mundo moderno exige. Somos socialmente justos e ambientalmente corretos”, garante Vanuza, da ANPC.
Ela reforça, ainda, que não são válidas as comparações com os produtores africanos, pois o Brasil tem uma legislação trabalhista que não permite a exploração infantil ou o tráfico de crianças. Há projetos e obrigações para a preservação da Mata Atlântica, especialmente pela cabruca — o cultivo em sistema de agrofloresta no qual as árvores nativas da região são usadas para fornecer sombra aos cacaueiros. “Plantamos cacau sob o dossel da floresta na Bahia. Nos Estados do Norte, o cacau ajuda no reflorestamento da Amazônia. Preservamos as nascentes dos rios para que as cidades recebam água limpa. Então, cacau é economia verde aqui no nosso país”, resume.