A projeção do Fundo Monetário Internacional (FMI) para o Produto Interno Bruto (PIB) nacional de 2023 se confirmou: R$ 10,9 trilhões medidos pelo IBGE, batendo com os US$ 2,13 trilhões previstos em 2022. A cifra levou o País à nona posição entre os mais ricos do mundo. Mas a alta concentração de renda faz do Brasil protagonista de outro ranking (nada nobre), o das nações mais desiguais do mundo.
Em 1974, o economista Edmar Bacha popularizou o termo “Belíndia”, que resumia as profundas contradições do Brasil à época. Em seu artigo “O Rei de Belíndia: uma fábula para tecnocratas”, ele criticava as políticas praticadas pelo regime militar que, segundo o autor, criavam um país dividido entre os que moravam em condições similares à Bélgica e aqueles que tinham o padrão de vida da Índia.
Quarenta anos depois, em 2014, a revista britânica The Economist atualizou o termo para “Italordânia”. A publicação afirmava que a parcela mais rica do Brasil já não estava mais no mesmo nível da Bélgica — e, sim, mais próxima da Itália. A Índia, por sua vez, era muito mais pobre que Estados brasileiros vulneráveis, como Maranhão e Piauí, que se aproximariam da Jordânia. O Brasil era, então, a sétima maior economia do mundo, com um PIB de US$ 2,35 trilhões. Naquele ano, o índice de Gini do Brasil — calculado pelo Banco Mundial para medir a desigualdade — foi de 52. O indicador vai de 0 a 100, e quanto maior, mais desigual.
Jogos de palavras à parte, a verdade é que o Brasil segue rico e desigual, consolidando o resumo de Bacha. O PIB brasileiro cresceu 2,9% em 2023, somando R$ 10,9 trilhões, cerca de US$ 2,2 trilhões. Ainda em 2022, a projeção do FMI já era que o País ultrapassaria o Canadá, chegando posto de nona maior economia do mundo, com um PIB estimado de US$ 2,13 trilhões — o que se confirmou. No entanto, considerando os países mais ricos do mundo, o Brasil é o único que figura em outro ranking: o dos mais desiguais, dividindo a 14ª posição com o Congo. A Índia, famosa pela pobreza, é a quinta maior economia do mundo, mas não está no ranking das mais desiguais.
A classificação faz parte do último Relatório de Desenvolvimento Humano da Organização das Nações Unidas (ONU), relativo aos anos de 2021 e 2022. Três anos trás, o índice de Gini do Brasil era 48,9, o menor resultado desde 2012. Apesar da melhora ante os 52 de quase dez antes, chama a atenção que o País figure nos dois rankings, ou seja, o crescimento da economia como um todo não reverbera nas condições de vida da população. O Gini da Índia é 35,7; o da Bélgica, 27,2. Em 2022, o Gini do Brasil subiu para 52,9, uma nova piora, em dados ainda não compilados para a comparação com outros países. Segundo Bacha, o seu em objetivo em 1974 era justamente criticar o uso do PIB como medida de bem-estar, já que só os “belgas” se beneficiavam do aumento da riqueza, enquanto os “indus” se mantinham na pobreza. “A fábula se foi, mas o nome pegou”, relembra, hoje, 50 anos depois.
Bacha explica que, depois da redemocratização, em 1985, e especialmente a partir do Plano Real, em 1994 — do qual o economista é um dos criadores —, a situação melhorou, mas o Brasil mantém uma das mais concentradas distribuições de renda do mundo. “Belíndia continua entre nós”, resume.
O bolo cresce, mas para quem?
A economista Carla Beni, professora dos MBAs na Fundação Getulio Vargas (FGV), explica que, até o início dos anos 2000, era corrente a ideia de que era preciso fazer a economia crescer para, depois, dividir a riqueza. “Isso resultou numa falácia, porque a economia cresce, ainda que aos solavancos, no que chamamos de ‘voo de galinha’. Mas é uma expansão com concentração de renda, que não necessariamente gera redução de desigualdades, e esse é o ponto central.”
O exemplo mais claro dessa linha de pensamento no Brasil foram os economistas Delfim Netto e Carlos Langoni, que, durante o regime militar, defendiam a tese de “primeiro, fazer o bolo crescer para, depois, dividir”. O fermento funcionou, mas as maiores fatias foram para os mesmos pratos de sempre. “O que a gente observa, hoje, pelas evidências disponíveis e pela experiência histórica, é que aquela tese não é verdadeira. O crescimento econômico, sozinho, não necessariamente nos leva a uma redução da desigualdade”, reforça Pedro Fandiño, pesquisador no Centro de Estudos sobre Desigualdade e Desenvolvimento (Cede), ligado à Universidade Federal Fluminense (UFF) e à Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “O crescimento econômico pode levar tanto ao aumento quanto à redução da desigualdade, a depender dos grupos sociais que se beneficiam do crescimento”, resume.
“É perfeitamente possível que a economia cresça concentrando renda. Nascer no Brasil passa a ser uma roleta-russa. Se você nasce numa família que consegue prover, via setor privado, as ineficiências do setor público, sai na frente. Se você não nasce nessa família, fica girando na estatística, e mais de 70% da sua vida adulta são reflexos da família em que nasceu”, afirma Carla, da FGV. Ela defende que o PIB é um indicador de síntese de uma economia. O mundo inteiro usa esse índice, mas precisa passar por um processo de crítica. Segundo a economista, à medida que se comemora quando o PIB cresce, mesmo que isso seja válido, é preciso colocar uma lupa sobre os números. O PIB é medido sobre três óticas: a oferta, a demanda e a renda. Só que distribuição de renda, qualidade de vida, saúde e educação não se expressam pelo PIB. Então, não mede a qualidade de vida da população. “A exportação de grãos gera uma riqueza que vai beneficiar um grupo muito pequeno, concentradíssimo de renda”, exemplifica.
Os dados de concentração de renda escancaram o que dizem os especialistas. De acordo com nota técnica elaborada pelo economista Sérgio Gobett e publicada pelo Observatório de Política Fiscal do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre), da FGV, a renda de 15 mil pessoas que estão no topo da pirâmide social no Brasil cresceu até o triplo do ritmo observado entre o restante da população. Entre essa elite, que representa 0,01% da população, o crescimento médio da renda praticamente dobrou (96%) entre 2017 e 2022.
Enquanto isso, o ganho da maioria da população adulta, considerando-se os 95% mais pobres, avançou cerca de 33%, praticamente o mesmo porcentual da inflação no período. Ao ampliar a análise para identificar a renda do grupo 0,1% mais rico, formado por cerca de 154 mil pessoas, o estudo constata que cresceu, em média, 87% entre 2017 e 2022. O ganho mensal desses brasileiros subiu de R$ 236 mil para R$ 441 mil nos cinco anos do levantamento. Na fatia 1% mais rica, o crescimento também foi alto, de 67%. Entre os 5% com maiores ganhos, a alta foi de 51%.
Dentre os fatores que explicam o crescimento da renda na elite, o estudo destaca dois em especial: os ganhos com a atividade rural, parcialmente isenta de impostos, que cresceu especialmente entre os mais ricos; e o aumento do valor distribuído em forma de lucros e dividendos, que passou de R$ 371 bilhões, em 2017, para R$ 830 bilhões, em 2022.
Embora latente e óbvia no Brasil, a concentração de renda é um fenômeno global. O último relatório da Oxfam International aponta que 50% dos ativos globais estão nas mãos de 1% da população. No Brasil, a proporção é de 60% para 1%. A soma da riqueza dos bilionários cresceu 34% entre 2020 e 2023, o triplo da inflação no período. Em números, eles ficaram US$ 3,3 trilhões mais ricos, valor 60% maior que todo o PIB brasileiro.
Enquanto isso, a parcela de riqueza dos 60% mais pobres, que era de 2,26% do total, caiu para 2,23%, segundo os dados compilados pela ONG a partir do Relatório Global de Riqueza de 2023, do banco suíço UBS, e dos dados globais de riqueza do Credit Suisse relativos a 2019, período anterior à pandemia de covid-19.
A ÍNTEGRA DESTA REPORTAGEM FAZ PARTE DA EDIÇÃO #481 IMPRESSA DA REVISTA PB. PARA CONTINUAR LENDO, ACESSE A VERSÃO DIGITAL, DISPONÍVEL NA PLATAFORMA BANCAH.