O príncipe dos poetas

24 de setembro de 2021

Apaixonado por São Paulo e camarada dos modernistas de 1922, que frequentavam a casa de seu avô, Paulo Bomfim morreu em 2019, aos 92 anos. Ao longo de sua carreira, produziu um legado de 37 livros. Logo na estreia, com Antonio triste, de 1947, ganhou o prêmio Olavo Bilac da Academia Brasileira de Letras (ABL).

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“Nasci na cidade de São Paulo, num longínquo 30 de setembro de 1926, quatro anos depois da Semana de Arte Moderna e seis anos antes da Revolução de 32. Aqui vivi meus amores, aqui me tornei poeta.”

Quem assim se apresenta, situando o próprio nascimento entre dois marcos simbólicos tradicionais dos paulistas e dos paulistanos, é o poeta Paulo Lébeis Bomfim, morto em 2019, aos 92 anos, na mesma “insólita metrópole” que cantou em prosa e versos reunidos nos 37 livros publicados ao longo de sua trajetória.   

Na casa dos avós maternos, onde foi criado, Paulo Bonfim conviveu com a nata dos artistas e intelectuais modernistas que a frequentavam, como o compositor Villa-Lobos e o escritor Mário de Andrade. Embalado pelos saraus, surge, na década de 1930, O caminheiro e a sombra, seu primeiro poema, publicado na Voz da Infância, jornalzinho da Biblioteca Infantil da Vila Buarque, bairro central de São Paulo.

A Revolução Constitucionalista de 1932 eclodiu no seio de sua família. “Papai servindo no hospital de sangue da Santa Casa, tio Guilherme engenheiro da Coluna Romão Gomes; os primos, cada um combatendo numa frente”, recordaria no livro Tecido de lembranças. “Organizei um batalhão de meninos, com o lema ‘se for preciso, partiremos também’. Trinta e dois não foi uma Revolução, foi uma Paixão! Vida, Paixão e Glória de São Paulo!”.

Após a derrota, as mulheres de sua família, que haviam tricotado agasalhos para os combatentes, continuaram a trabalhar clandestinamente para apoiar as famílias dos mortos e exilados, sob a liderança de sua tia, Nicota Pinto Alves, que repousa no Obelisco Mausoléu aos Heróis de 32, no Ibirapuera.

No livro de estreia de Paulo Bonfim, Antonio triste, de 1947, estas duas vertentes, Modernismo e Saga de 32, estariam representadas no prefácio do poeta Guilherme de Almeida, também ele combatente constitucionalista e um dos organizadores da Semana de 22. Para completar, a obra foi ilustrada por Tarsila do Amaral. À outra modernista icônica, Anita Malfatti, caberia pintar seu retrato de adolescente, com bigodinho incipiente, estampado na capa de Aquele menino (livro de memórias).  

Filho de Simeão dos Santos Bomfim – médico formado em 1918 na primeira turma da Faculdade de Medicina de São Paulo – e de Maria de Lourdes Lébeis Bomfim, orgulhava-se de ser descendente de bandeirantes e fundadores de cidades no interior do estado.

Pelo lado materno, seu bisavô, Guilherme Lébeis, viera da Alemanha em 1848, com dez anos de idade. Casou-se com D. Escholástica de Arruda Botelho (Dona Sinharinha), descendente do capitão Antonio Bicudo Leme, fundador de Pindamonhagaba. Desta união, nasce Sebastião Lébeis, que, ao se casar com D. Eliza de Magalhães (Dona Zilota), descendente de Brás Cubas e de Baltazar Fernandes, agrega ao panteão da família os fundadores de Santos e Sorocaba. “O sangue novo, aliado a velhas cepas bandeirantes, impulsionou o progresso miraculoso de nosso Estado”, celebrava o neto de Sebastião e Zilota, cujos salões abrilhantaram a belle époque paulistana ao lado da Villa Kyrial de Freitas Valle e da mansão de D. Olivia Guedes Penteado.   

Filho de Simeão dos Santos Bomfim – médico formado em 1918 na primeira turma da Faculdade de Medicina de São Paulo – e de Maria de Lourdes Lébeis Bomfim, orgulhava-se de ser descendente de bandeirantes e fundadores de cidades no interior do Estado.

Do lado paterno, os cafezais do avô Francisco Rodrigues dos Santos Bomfim se estendiam das atuais cidades de São Simão e Cravinhos à Vila Bomfim, hoje, um bairro de Campinas.  

Esta epopeia rural, entretanto, já se perdera na poeira do tempo quando, nos anos de 1940, um jovem e totalmente urbanizado Paulo Bomfim abandona o curso de Direito da Faculdade do Largo de São Francisco para se dedicar às letras e ao jornalismo. No jornal Correio Paulistano, redige a página semanal “Vida e Cultura”, mas logo se transfere para o Diário de S.Paulo, de Assis Chateaubriand. Em 1957, torna-se um dos pioneiros da TV brasileira ao apresentar o Mappin Movietone, noticioso televisivo que rivalizava com o Repórter Esso.

Em paralelo, segue a carreira literária iniciada com Antonio triste, obra contemplada com o Prêmio Olavo Bilac da Academia Brasileira de Letras (ABL). Manoel Bandeira, na comissão julgadora, e Guilherme de Almeida, autor do prefacio, saúdam o jovem estreante. Seguem-se Transfiguração e Relógio de sol, contendo cantigas que seriam musicadas por Camargo Guarnieri e Oswaldo Lacerda.

Com a publicação de Armorial – livro ilustrado por Clóvis Graciano que evoca vivências ancestrais e projeta os mitos do bandeirismo –, é aclamado pela crítica como “alquimista do soneto” e “sonetista absoluto”. Em 1962, a parceria com Graciano resulta na criação da Galeria e Livraria Atrium, situada no Conjunto Zarvos, esquina da Avenida São Luís com a Rua da Consolação. Inaugurado com exposição do pintor mexicano Diego Rivera, o espaço de referência e incentivo cultural marcou, de maneira original, a história das artes plásticas em São Paulo. 

Na década de 1970, no ápice dos “anos de chumbo”, exerce, a convite do governador Laudo Natel, a presidência do Conselho Estadual de Cultura. Dura pouco no cargo, entretanto, por não aceitar submeter os nomes de artistas e intelectuais ao crivo do Departamento de Ordem Política e Social (Dops).

É nesta altura de sua vida que encontra o “porto” ao qual permanecerá “ancorado” até a morte: torna-se assessor do Gabinete da Presidência do Tribunal de Justiça de São Paulo, responsável pelos setores de Relações Públicas, Imprensa e Cerimonial. No mesmo Palácio da Justiça, cuja construção visitou ainda criança e onde seu corpo foi velado, na Praça Clóvis Bevilaqua – atualmente, integrada à Praça da Sé –, o poeta recebeu inédita homenagem ainda em vida: ali, no segundo andar, localiza-se o Espaço Cultural Paulo Bomfim, que abriga acervo com livros de sua autoria, honrarias recebidas e cópia de seu retrato feito por Anita Malfatti, além de vestes e apetrechos da Revolução de 32.         

Com obras traduzidas em alemão, francês, inglês, italiano e espanhol, era o decano da Academia Paulista de Letras (APL), cuja cadeira 35 ocupava desde 1963. Em 1981, ao ser eleito intelectual do ano pela União Brasileira de Escritores (UBE), afirmou que o poeta é, sempre, uma figura incômoda: “Porque é, ao mesmo tempo, consciência mística do passado e habitante do futuro. Traz uma centelha do fogo que o gelo procura apagar”.

Herbert Carvalho Paula Seco
Herbert Carvalho Paula Seco