Que futuro é esse?

25 de julho de 2023

“Lá vem o Brasil descendo a ladeira.” A frase, que surgiu na capa do álbum de 1979 do compositor baiano Moraes Moreira — e que dá nome à canção mais famosa do disco —, virou expressão comum para manifestações contra os problemas nacionais. Nos episódios que atualizam as crises políticas ou na publicação de um novo indicador econômico negativo, a citação aparece sempre para sintetizar as desilusões mais sinceras com o nosso futuro.

O

O paradoxo entre a história da composição da música e o que a frase se tornou — escrita por Pepeu Gomes e Moreira em homenagem a João Gilberto, que, ao observar uma mulher saindo do morro de uma favela no Rio de Janeiro, exclamou, encantado: “Olha lá o Brasil descendo a ladeira” —, é ilustrativo do próprio País, em que otimismo e pessimismo com o que está por vir costumam se confundir. Ora o Brasil é narrado repleto de potencialidades para si e para o mundo, ora é descrito como uma nação travada por suas próprias limitações.

POTÊNCIA GLOBAL?

O campo ambiental talvez seja o exemplo mais perene dessa complexidade. “É um lugar potente do Brasil no mundo e, ao mesmo tempo, onde coexistem muitos desafios. As soluções são mais internas do que externas”, observa o coordenador do Programa Política e Economia Ambiental do Centro de Estudos em Sustentabilidade (CES) da Fundação Getulio Vargas (FGV), Guarany Osório.

O Brasil deve incorporar, na opinião de Osório, as questões de sustentabilidade nos seus projetos de desenvolvimento, o que ainda não acontece. “De um lado, o mundo está demandando cada vez mais produtos e serviços verdes que o País tem condições de suprir, ou seja, de se colocar de outra forma no mercado internacional”, analisa ao mencionar as capacidades nacionais de gerar energia limpa com biocombustíveis (como o etanol) e de produzir alimentos renováveis ainda não explorados pela agricultura. “De outro, estamos expostos a riscos significativos. Basta pensar que, se a temperatura do planeta aumentar, o Brasil será um dos países a sofrer os impactos mais intensos”, completa.

Na ordem do dia, já se observa uma relação de prioridades: o mercado financeiro e entidades representativas, como a própria Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de São Paulo (FecomercioSP), esperam que o governo avance em uma regulação do mercado de carbono, que causaria impacto não apenas a grandes emissores, mas também a pequenos negócios. Consultorias ligadas ao setor sugerem que, até 2050, as emissões desses créditos teriam condições de movimentar US$ 100 bilhões e criar mais de 8 milhões de empregos, fazendo o Brasil suprir até um quarto (22%) da demanda de países que já empreenderam alguma regulação, como Estados Unidos e Japão. Dados como esse indicam um futuro inevitável em que o País assumiria um lugar de potência global.

O próprio universo empresarial tem corroborado essa perspectiva e apresentado soluções criativas, que envolvem desde a exploração sustentável (e tecnológica) dos recursos florestais brasileiros, passando pela elaboração de sistemas, como Logística Reversa (LR), até chegar a investimentos como a infraestrutura de captação eólica no Nordeste — que já figura como modelo internacional. Nesse último cenário, aliás, o Brasil já surge como uma potência: enquanto a Agência Internacional de Energia (IEA) tem como meta que as fontes renováveis correspondam a 30% da matriz energética global até 2030, essa taxa já é de 48% por aqui. A média mundial é de 14%.

No campo elétrico, a situação é ainda mais favorável à estrutura nacional, já que a geração renovável do País engloba 85% da produção total, enquanto nos outros países, essa média é de apenas 30%.

O mundo observa todos esses movimentos com atenção, quando não age efetivamente: em abril deste ano, o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, anunciou um investimento de US$ 500 milhões (R$ 2,5 bilhões) no Fundo Amazônia por um período de cinco anos. A medida espera pela aprovação do congresso norte-americano. O dinheiro chegaria após a floresta perder 10,5 mil quilômetros quadrados de área verde em 2022, o equivalente a 3 mil campos de futebol. Os dados do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon) mostram que foi o maior desmatamento em 15 anos.

“Derrubar a floresta é um péssimo negócio para o Brasil. Não apenas do ponto de vista econômico, porque há toda uma economia possível em torno dela, mas também no aspecto climático propriamente, já que a regulação da Amazônia cria condições para outros campos econômicos”, explica Osório, da FGV. O acadêmico ressalta que o caminho deve ser o contrário: utilizar a floresta para produzir desenvolvimento e valor agregado.

NOVO MUNDO

A qualificação da mão de obra é outro desafio. Não se trata de uma discussão inédita, mas que ganhou contornos de novidade nos últimos anos com a irrupção da chamada “economia digital”, repleta de novas ferramentas e usos nas tarefas cotidianas de diversos nichos produtivos.

Tudo faz parte de um momento definitivo da história mundial, em que as sociedades estão deixando de ser industriais e caminhando para lógicas digitais. O Brasil não perdeu o bonde, mas não tem lugar garantido no que vem por aí. “As competências que o mercado de trabalho precisava há duas décadas tinham um período de validade mais longo comparado às demandas atuais, em que a tecnologia chega às empresas com rapidez, mudando modelos de negócio, outras competências e uma série de processos”, afirma Andriei Gutierrez, cientista político que preside o Conselho de Economia Digital e Inovação (CEDI) da FecomercioSP.

Os números dão uma dimensão do que há de potencialidade e de limite: de um lado, uma pesquisa do Instituto Locomotiva em parceria com a consultoria PwC mostra que, no ano passado, cerca de 34 milhões de brasileiros nem sequer tinham acesso à internet. Um universo de outras 86 milhões encontravam dificuldades para se conectarem todos os dias. No universo empresarial, no começo deste ano, considerando apenas o Rio de Janeiro, 6 em cada 10 negócios diziam não conseguir encontrar profissionais com competências digitais para suprir as demandas, de acordo com uma pesquisa do Sebrae carioca. Com isso, elas precisam retardar os projetos de transformação digital.

Por outro lado, as instituições de ensino notam um aumento robusto na demanda por cursos ligados à tecnologia, na mesma tônica de outros países. Há alguns anos, olhando para o Brasil, o Banco Mundial apontou que o País deveria mudar as normas trabalhistas que aumentavam os custos de empregabilidade e priorizar investimentos em capacidades cognitivas superiores, como a comunicação. Ao que parece, esse processo ainda está longe de terminar.

Para Gutierrez, o ponto é adaptar o ideal ao real. “Temos de construir um projeto de qualificação digital em um país com dificuldades para se financiar, com uma máquina pública ineficiente e um déficit educacional muito grande. É até por isso que o primeiro passo seria fortalecer a educação de base, não apenas com conteúdo já presente nos currículos, mas também com novas abordagens, como engenharia e computação”, sugere.

No cotidiano das empresas, o presidente do CEDI é ainda mais enfático: a velocidade no surgimento de novas ferramentas exigirá que os profissionais se requalifiquem pelo menos uma vez por ano, quando não em períodos menores, como em intervalos trimestrais. “É só assim que eles conseguirão desempenhar melhor o seu papel, e os negócios, por sua vez, vão poder inovar e serem mais competitivos.”

Recentemente, o CEDI,  da FecomercioSP, mapeou as dificuldades que as empresas encontram para realizar a transformação digital. Com base no diagnóstico, elaborou um documento com propostas para ajudá-las — definindo o que é mais prioritário nessa agenda. O relatório tem dois eixos temáticos centrais: a promoção de políticas públicas que façam a economia digital avançar e o trabalho de manter uma segurança jurídica. “É uma responsabilidade societal do Estado, mas compartilhada com a iniciativa privada”, afirma.

OS PROBLEMAS DE SEMPRE

Se o Brasil desce a ladeira olhando para os problemas vindouros, traz consigo também boa parte da carga do passado — que, no prisma do presente, refazem os dilemas do futuro. É assim que, ao olhar para a perspectiva ambiental, vê-se não apenas o caminho aberto ao Brasil pelo mundo, mas também todo o histórico crítico da relação entre a sociedade e sua potencialidade verde. Da mesma forma, qualificar a mão de obra digitalmente exige um retorno aos problemas estruturais do acesso à educação e do déficit educacional, para não mencionar o desequilíbrio regional entre ofertas de cursos profissionalizantes e universitários.

Para o cientista político Paulo Nicolli Ramírez, professor na Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP), a tentativa mais eficaz de resolver as deficiências estruturais aconteceu na década passada, alçando as pessoas como consumidoras mais do que cidadãs. Se permitiu uma transformação prática na vida do cidadão, por outro lado manteve (e até aprofundou) muitos desses dilemas sociais. “Todo mundo tinha celular, carro, televisão, mas em nenhum momento se procurou reduzir os índices de miséria”, afirma Ramírez. “Esse paradoxo gerou fenômenos curiosos, como uma certa ostentação nas periferias brasileiras a partir de mercadorias que as famílias podiam comprar, enquanto a escola do bairro permaneceu sucateada, as casas sem saneamento básico e com uma segurança pública muito ruim”, discorre. O cientista conclui com uma percepção curiosa sobre o cotidiano do Brasil profundo: “Quando se trata de direitos, é muito mais comum um brasileiro citar o Código de Defesa do Consumidor do que a própria Constituição”.

OPORTUNIDADES CONCENTRADAS

Falar da estrutura do País nos últimos anos é observar, justamente, uma base social que se mantém intacta, embora não sem alterações. O Índice de Gini nacional, que mede a desigualdade em sociedades diferentes em uma escala de 0 a 1 (quanto maior, mais desigual), era de 0,625 no ano de 1977. Em 2020, caiu para 0,535, de acordo com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Isto é: o coeficiente, que leva em conta a renda domiciliar da população para calcular a diferença entre as famílias, até caiu, mas não tanto quanto precisava. Fica mais fácil de entender quando analisamos os dados mais recentes da Pnad Contínua, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) — hoje, a parcela de 1% mais rica do País tem uma renda 38,4 maior do que a metade do Brasil, que concentra os menores rendimentos.

Nos últimos anos, estudos se dedicaram a mostrar os impactos disso na educação, encontrando padrões perniciosos para o amanhã. Um deles, produzido pelo Instituto Mobilidade e Desenvolvimento Social (IMDS) há dois anos, apontou que mais da metade da população (58%) interrompe o ciclo escolar sem terminar o ensino médio, repetindo, assim, a experiência escolar dos pais. Para Ramírez, as transformações recentes em áreas correlatas, como Saúde e Segurança, foram mais instrumentais do que socialmente balizadas. “Investimos milhões de reais em viaturas de polícia, mas não injetamos dinheiro em políticas antirracistas, por exemplo, que evitem a violência policial, ainda mais contra a população mais pobre e negra. Esse é um grande dilema.”

Entre potências e limites, oportunidades e contradições, o Brasil segue descendo a ladeira em direção a um futuro promissor e desafiador na mesma intensidade. Se o que vier de agora em diante, porém, seguir no samba cantado por Moraes Moreira, os próximos anos serão melhores. Afinal, “quem desce do morro não morre no asfalto”.

Vinícius Mendes Paula Seco
Vinícius Mendes Paula Seco