Depois de quatro dias debruçados sobre a agenda econômica global, no Fórum Mundial, em novembro do ano passado, alguns dos principais nomes do mundo dos negócios chegaram a uma conclusão definitiva sobre o futuro das empresas: “É hora de construirmos uma nova economia baseada na transparência e na justiça”, diz um trecho do relatório do encontro, em Davos, na Suíça.
Embora tenha sido uma mensagem potente em meio à crise mais grave do século, não se tratou de surpresa. Desde o começo de 2020, essa tem sido uma palavra inevitável para qualquer organização que almeja chegar bem a este futuro próximo. Por transparência, o mercado global entende, hoje, a postura de abrir (e manter assim) um leque de informações sobre práticas, operações e resultados, entregando-as tanto a consumidores como a agentes relevantes do mundo dos negócios – tais como fornecedores, investidores, stakeholders e parceiros indiretos. Com elas à mão, todos estes atores podem tomar decisões com base em recursos amplos e precisos. São dados que vão desde o desempenho financeiro de um intervalo de tempo até os programas de remuneração de colaboradores, ou mapeamentos que vão da cadeia de suprimentos até os fluxos dentro da estrutura organizacional.
“Até cinco anos atrás, transparência era uma exigência apenas para grandes empresas. As pequenas e médias faziam tudo de qualquer jeito. Hoje, ao contrário, nenhum tipo de negócio sobrevive se não for transparente”, pontua Matheus Sobocinski, CEO da consultoria Funcional, que atua principalmente com produtores agrícolas e o segmento logístico. Mas por que essa demanda se tornou tão intensa na agenda corporativa?
As respostas são variadas: para boa parte do mercado, a explicação está na ascensão meteórica do ESG. As (novas) demandas de instituições financeiras, agências de rating e gestoras de fundos reúnem, agora, não apenas bons resultados financeiros, mas também o peso da governança como cultura empresarial e, dentro dela, o fator transparência – como a publicação de relatórios de operações, de dados sobre a organização interna e de boletins de desempenhos financeiros, além da adoção de práticas anticorrupção. Esta é a visão da presidente do Conselho de Administração do Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC), Leila Loria. “A transparência é o valor fundamental do ESG”, sentencia. “Ela permeia todos os outros elementos deste conceito, como os indicadores usados para analisar os avanços no Ambiental entre as diferentes indústrias ou a forma como analisamos as evoluções nos quesitos do Social e da Governança.”
A análise se assemelha à de Gabriela Werneck, sócia da consultoria americana Bain & Company. “É uma demanda que expressa claramente a preocupação com a multiplicidade de uma empresa: desde quem está na liderança até quem está na outra ponta, trabalhando para um dos vários elos da cadeia. Ser transparente envolve a visibilização de todos estes processos e o impacto que eles têm para a própria existência da empresa.”
No relatório do último Fórum Econômico Mundial, esta preocupação aparece já como um ponto de não retorno para o mundo dos negócios: “Legitimidade, accountability, integridade, transparência e ações assertivas são os pilares de uma governança efetiva. Esses elementos são imperativos”, assinala o documento.
Há, porém, quem defenda que a transparência é, antes, uma exigência dos próprios consumidores – cada vez mais preocupados com os impactos coletivos dos hábitos de consumo. Um estudo com 4 mil pessoas publicado em agosto pelo Instituto QualiBest e pela consultoria TopBrands mostra que, no mercado brasileiro, a decisão de compra de um produto ou de contratação de um serviço tem sido cada vez menos amparada no valor de uso – e mais na forma como as marcas agem socialmente.
Outra pesquisa, feita pela consultoria Edelman em junho do ano passado, apontou que seis em cada vez pessoas (65%) topam comprar coisas até mais caras se elas forem de marcas que são claras em suas práticas, e 41% dos entrevistados admitiram que, durante a pandemia, conseguiram convencer pessoas próximas a não adquirir produtos de empresas pouco confiáveis. “É hora de as marcas defenderem mudanças e se comunicarem com verdade e criatividade”, conclui Marcília Ursini, vice-presidente executiva da Edelman.
É o que também sustenta a economista Dulcejane Vaz, que circula pelas empresas brasileiras ajudando-as com o desafio da diversidade – outro pilar do G, de governança, do ESG. “O que era, há mais de uma década, uma ‘conversa de ONGs’, passou a ser uma necessidade de mercado essencial por causa da nova relação entre clientes e organizações.”
Neste sentido, as práticas ainda parecem distantes do que as pessoas desejam: uma pesquisa de junho da consultoria francesa Havas mostrou que apenas 34% dos entrevistados em todo o mundo acreditam que as empresas com que se relacionam são, de fato, transparentes. “Isso acontece porque, dentro do escopo do ESG, a transparência nem sempre é adotada em todas as letras, apenas no S ou no G, quando deveria ser um fator global das atividades das organizações”, continua Gabriela Werneck.
Em março, a consultoria alemã Scope publicou um estudo com mais de 1,8 mil empresas de 23 das principais economias do mundo em que as brasileiras apareceram como as menos transparentes (28% delas, em média) – atrás de países como Arábia Saudita (30%), Índia (42%) e Malásia (45%). No Canadá, que ocupa o topo do ranking, mais da metade (55%) das organizações cumpre os requisitos de transparência alinhados às demandas atuais do mercado. “Existem grandes buracos nas divulgações corporativas, como variações significativas entre setores não financeiros e uma enorme divergência na quantidade e na qualidade de dados reportados”, afirma o relatório.
Para Matheus Sobocinski, da Funcional, a transparência ainda é um desafio para as empresas brasileiras por causa, essencialmente, do excesso de burocracia. “Nos casos dos pequenos e médios, os custos de se adaptar a todas estas demandas são altos, muitas vezes acima dos próprios gastos de operação. Soma-se a isso a complexidade da legislação tributária, que, em muitos casos, faz com que os empresários paguem mais impostos do que deveriam. Daí não sobra recurso para investir nestas exigências.”
Já Leila Loria, do IBGC, tem diagnóstico um pouco diferente. Para ela, alguns aspectos estruturais do Brasil é que tornam a transparência um desafio entre as empresas nacionais, como um mercado de capitais ainda pequeno e a permanência de práticas obscuras que ainda reinam entre organizações estatais, além da novidade relativa que é o tema da governança entre os negócios daqui. “É um fato que o nosso país ainda precisa amadurecer, embora o ESG tenha acelerado o processo.”
Para Loria, há ainda um outro fator que joga o Brasil para baixo neste tipo de ranking: a corrupção. “Nós tivemos casos sérios desta ordem há pouco tempo – e como se trata do extremo da não transparência, porque é justamente quando tudo é feito por debaixo dos panos –, acabamos sendo mal avaliados internacionalmente.”
Dulcejane Vaz, por sua vez, dá mais ênfase à composição das empresas brasileiras: em sua maioria pequenas e médias e geralmente administradas por famílias. “Países que têm mercados de capitais maiores e mais estruturados são, por definição, também mais transparentes, porque esta é uma exigência fundamental desse tipo de relação econômica. É o caso dos Estados Unidos, por exemplo, onde grande parte dos negócios tem capital aberto e muitos deles estão listados em Bolsas de Valores.”
Em agosto deste ano, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) anunciou que pretende acelerar a chegada do ESG no Brasil: vai oferecer, pelos próximos dois anos, empréstimos de, no mínimo, R$ 20 milhões para empresas que adotarem práticas que compõem o conceito. O objetivo do banco é fomentar que mais agentes econômicos no Brasil adotem o ESG, e, assim, criem metas de responsabilidades ambientais, sociais e de governança – como um maior nível de transparência.
Em um primeiro momento, o programa vale para segmentos específicos, como o de madeira para reflorestamento, o de mineração e o siderúrgico, que estão entre os maiores gargalos.
Se a transparência ainda é um desafio para empresas em todas as partes do mundo, também é verdade que muitas delas já têm dado bons exemplos. O Buffer, aplicativo de gerenciamento de contas em redes sociais, por exemplo, chamou a atenção do mundo dos negócios nos Estados Unidos quando tornou acessível, para todos os funcionários, a planilha de salários e os cálculos que determinam o valor de cada um deles. A ideia é que os colaboradores entendam por que a empresa paga mais uns do que outros.
Já a marca de roupas californiana Patagonia foi mais longe: permite que os clientes acessem dados dos elos da cadeia de suprimentos que dá origem às peças, enquanto a multinacional Whole Foods, pioneira do segmento de alimentos saudáveis, parou de fabricar produtos com Organismos Geneticamente Modificados (OGM), após abrir todo o processo produtivo à verificação do mercado, tornando-se, assim, a primeira processadora de comida transparente do mundo.
Apesar do atraso, o Brasil tem lá seus bons exemplos. No último relatório da ONG Transparência Internacional, de 2018, empresas como as distribuidoras Neoenergia, EDP e CPFL e a fabricante de cimentos Votorantim se destacaram em meio a um ambiente empresarial ainda pouco aberto. Em uma escala de 0 a 10, foram as únicas que ficaram acima de 9 – no Brasil, a média foi de 5,7. Para elaborar o ranking, a entidade se baseou em três critérios: a existência de programas internos anticorrupção, a clareza sobre a estrutura organizacional e a divulgação de dados financeiros para o mercado.
“Há ainda uma dificuldade específica no Social, do ESG, porque é ali que os indicadores de transparência são mais genéricos. Há até meios de avaliar a diversidade – a proporção de negros ou de mulheres em conselhos de administração, por exemplo –, mas é difícil mensurar a forma como uma empresa se relaciona com os funcionários”, discute Leila Loria, do IBGC.
O gerente de riscos e compliance da Votorantim Cimentos, Wellington Oliveira, observa que o projeto de transparência tem como pilar a ideia de que a empresa não está sob a batuta apenas dos acionistas. “A responsabilidade é compartilhada com todos os stakeholders, como clientes, fornecedores, empregados e até a sociedade.” Aposta da companhia em 2013, quando o mercado ainda não falava muito no assunto, ele revela que o ESG é, agora, parte fundamental do planejamento da Votorantim.
Especificamente dentro do segmento de vestuário, a clareza dos processos se liga mais às condições de trabalho dentro da cadeia. A francesa C&A e a alemã Adidas ficaram entre as mais transparentes – dentre as que estão presentes no Brasil – no ranking de 2020 da consultoria internacional Fashion Revolution (FR).
Pelos critérios da FR, isso significa que elas se esforçaram em “divulgar a maioria de suas políticas de direitos humanos, procedimentos, metas e informações sociais e ambientais sobre os processos de governança, além de tornar públicas listas detalhadas de fornecedores para fabricantes, fornecedores de matérias-primas como algodão, lã ou viscose”.
Se a Europa está na frente da demanda por transparência, e dá para dizer que o Brasil precisa avançar, também é fato que já temos ótimos exemplos. Basta olhar para iniciativas como a do Magazine Luiza, um dos melhores cases nacionaisde transparência, pela postura de abrir o marketplace a pequenas empresas, ao longo da pandemia de covid-19.
“Estamos perto do dia em que não haverá como não ser transparente, isso porque as ferramentas tecnológicas que já existem e que estão sendo implementadas nas empresas não permitem mais que isso aconteça”, decreta Matheus Sobocinski. Seja como for, o futuro pintado pelo Fórum Econômico Mundial já chegou. Para entrar nele, as empresas devem estar de peito aberto.