150 anos de Ventre Livre

11 de maio de 2021

Duas efemérides que transcorrem em 2021 evocam a personagem feminina mais citada na História do Brasil – a Princesa Isabel, morta no exílio em 14 de novembro de 1921, há um século, e a Lei do Ventre Livre, por ela promulgada em 28 de setembro de 1871 – há 150 anos, portanto, durante a primeira de suas três regências na ausência do pai, D. Pedro II.

N

Na última vez que ocupou o trono, Isabel enterraria de vez o regime escravista ao assinar a Lei Áurea, em 13 de maio de 1888. A popularidade obtida nesses episódios lhe valeu o título de “A Redentora” – conferido pelo mulato e abolicionista José do Patrocínio – mas não foi suficiente para garantir à dinastia dos Bragança e Orléans um Terceiro Reinado, descartado pela Proclamação da República, em 1889.

A Lei do Ventre Livre – que concedia liberdade aos filhos de escravos nascidos a partir daquela data, evitando a renovação da escravidão e tornando seu término uma questão de tempo – está tão vinculada à princesa que o bairro carioca agraciado com seu nome na Zona Norte do Rio de Janeiro, a Vila Isabel, tem como principal via o Boulevard 28 de setembro.

Até a década de 1860 a única medida de restrição ao regime servil havia sido a proibição ao tráfico negreiro por meio da Lei Eusébio de Queiroz, arrancada pela pressão inglesa dez anos antes. Em 1863, denúncias de cativeiro ilegal levaram à ruptura diplomática entre o Brasil e a Grã-Bretanha. Em paralelo, os trabalhos forçados eram extintos na Rússia e logo seriam banidos nos Estados Unidos, ao término da Guerra Civil.

O emancipacionismo internacional, combinado às revoltas de escravos que emergiam por todo o Império, levaram D. Pedro II a pedir aos legisladores, na Fala do Trono de 1867, projetos para extinguir a escravidão de modo gradual. A Guerra do Paraguai (1865-1870) interrompeu as discussões, retomadas em 1871, quando o Visconde do Rio Branco levou o seu Partido Conservador a somar com os deputados do Partido Liberal, para fazer passar na Câmara a liberdade para os nascituros. A marca de 65 votos contra 45 assinala a resistência encontrada.

O cerne da Lei do Ventre Livre estabelecia que os “ingênuos”, como passaram a ser chamados os filhos de escravos nascidos livres, seriam criados pelos senhores de suas mães até os oito anos. A partir daí, o proprietário teria duas opções: receber do Estado a indenização de 600 mil réis ou utilizar-se dos serviços do menor até os 21 anos. Esta última foi a escolha da quase totalidade dos senhores, o que fez com que a lei, do ponto de vista da efetiva emancipação, tivesse efeito nulo, já que o prazo só acabaria a partir de 1892, dois anos depois da Abolição definitiva.

Além de pôr fim à perpetuidade da escravidão, ainda que com excessiva lentidão, outros artigos da lei desagradavam os escravagistas. Criava-se uma matrícula de todos os escravos do País e quem não estivesse matriculado seria considerado livre. Reconhecia formalmente a existência de famílias escravas, cujos membros não podiam mais ser separados. Os senhores também passaram a ter a obrigação de alforriar todo e qualquer escravo que conseguisse reunir a quantia pela qual fora comprado. Estes dispositivos transformaram os tribunais em instrumentos de abolicionistas como Luís Gama, que libertou a si próprio e a mais de 500 escravos por via judicial.

A Lei de 1871 produziu os primeiros abalos na sustentação do trono pela aristocracia rural, que iniciou sua transição para o apoio ao movimento republicano. Desencadeou também o processo de importação de outros braços para a lavoura, em especial a cafeicultura paulista, por meio da imigração massiva. Todas essas consequências, porém, estavam longe das preocupações daquela jovem de 25 anos sem experiência política, colocada à frente de um gabinete ministerial composto de sete homens maduros e circunspectos para governar, ainda que temporariamente, um país de 10 milhões de habitantes e dimensões governamentais, de acordo com a descrição de Laurentino Gomes no bestseller 1889

Embora educada com esmero, a herdeira do Trono não correspondia à idealização que se faz da figura de uma princesa. Tinha baixa estatura, era obesa e desprovida de sobrancelhas. “Para que não te surpreendas ao conhecer minha Isabel, aviso-te que ela nada tem de bonito”, resumiu em carta a irmã ao marido Gastão de Orléans, o conde d’Eu, aristocrata francês escolhido para desposá-la.

Desinteressada em política, dedicava-se de corpo e alma à vida doméstica e à criação dos filhos. Profundamente religiosa e conservadora, ao receber do papa Leão XIII uma honraria do Vaticano, a Rosa de Ouro, prestou-lhe um juramento de obediência que despertou na opinião pública a dúvida: seria ela mais fiel à Igreja ou ao Brasil? Para completar, foi acusada de ser excessivamente submissa ao marido, que, além de estrangeiro, tinha a biografia manchada por massacres cometidos sob suas ordens na fase final da Guerra do Paraguai.  

Banida com toda a família real pela República, a Princesa Isabel morreu na França, aos 75 anos. Antes disso, recusou apelos de seguidores para liderar esforços pela restauração da Monarquia. Seus restos mortais repousam na catedral de Petrópolis (RJ), ao lado do conde d’Eu, do pai e da mãe, Pedro II e Teresa Cristina. Admiradores monarquistas postulam oficialmente sua canonização perante a Arquidiocese do Rio de Janeiro.

Está reportagem foi publicada na PB #463 e está disponível nas melhores bancas digitais.

Herbert Carvalho Composição com a obra Princesa Isabel – Auguste Petit (c. 186‑). Fonte: Museu Histórico Nacional/Ibram.
Herbert Carvalho Composição com a obra Princesa Isabel – Auguste Petit (c. 186‑). Fonte: Museu Histórico Nacional/Ibram.