Brasil, ano 1

29 de março de 2023

O ano de 1823 inaugura o Estado brasileiro. É também quando acontece o nosso primeiro golpe, desferido por um imperador que proclama o liberalismo, mas não o pratica. O personagem central desta história, porém, é José Bonifácio de Andrada e Silva, ministro-chefe do governo de D. Pedro I. Nascido em Santos e formado em Coimbra – mente ilustrada que conheceu Paris durante a Revolução Francesa e jamais admitiu escravos nas próprias propriedades – coube a ele a teoria e a prática da nossa emancipação política.  

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A fórmula do Brasil independente trouxe digitais: unidade centralizadora a partir do triângulo Rio de Janeiro–São Paulo–Minas Gerais (até hoje prevalecente), monarquia constitucional e liberalismo moderado, configurando caso único na América do Sul, onde todas as nações que conquistaram a independência se converteram em repúblicas.

O patriarca da Independência perseguia um objetivo primordial – evitar, na porção portuguesa da América, a desagregação ocorrida nas ex-colônias espanholas que, de quatro vice-reinados, deram lugar a 14 países distintos. Este risco era iminente em 1823, quando o Brasil buscava reconhecimentos externo e interno para consolidar a sua soberania. 

Após a declaração de Independência, em 7 de setembro de 1822, D. Pedro I foi aclamado imperador a 12 de outubro e coroado em 1º de dezembro. Contudo, o seu governo só controlava efetivamente as províncias do Sudeste e do Sul do País. Pernambuco jurou lealdade ainda naquele mês, enquanto Goiás e Mato Grosso manifestaram apoio em janeiro do ano seguinte, acompanhados por Rio Grande do Norte, Sergipe e Alagoas.

As adesões pacíficas, entretanto, pararam aí. Autoridades das províncias então consideradas do Norte – Pará, Maranhão, Piauí e Ceará – se mantiveram fiéis às cortes de Lisboa, enquanto a resistência mais encarniçada ocorreu na Bahia, onde uma burguesia mercantil portuguesa, que emprestava dinheiro a juros aos latifundiários locais, temia não receber as dívidas. Estes interesses eram defendidos pela tropa lusitana, liderada pelo brigadeiro Inácio Luís Madeira de Melo, que já em 1822 recusara ordens de regressar a Portugal.

Do lado brasileiro, faltavam um comando experiente e uma força naval para sitiar por mar cidades como São Luís e Salvador. Bonifácio, então, não perdeu tempo: comprou navios capazes de operar ao longo do litoral (embrião da nossa Marinha) e contratou mercenários estrangeiros, como o oficial francês Pedro Labatut, responsável por mobilizar tropas terrestres, e o escocês lorde Thomas Cochrane, que liderou embarcações brasileiras contra as portuguesas.

Expulsos do Piauí na Batalha do Jenipapo, em 13 de março 1823, os portugueses abandonaram a Bahia a 2 de julho. Em 30 do mesmo mês, lorde Cochrane entra no Forte de São Luís – mas, em Belém do Pará, as tropas do brigue Maranhão nem sequer precisam desembarcar: a 15 de agosto, o povo invade o palácio do governo.

A Independência se consumara em todo o território, mas ainda precisava dos avais financeiro e diplomático das potências dominantes da época, que, por ordem decrescente de influência, eram Inglaterra, França, Áustria e Rússia.  

O primeiro ato de diplomacia econômica da emergente chancelaria nacional seria recorrer ao crédito externo para financiar as despesas da guerra e do novo Estado. Negociado em 1823, um empréstimo de 3 milhões de libras esterlinas foi efetivado no ano seguinte com bancos londrinos, que obtiveram como garantia as rendas das alfândegas cariocas.

O reconhecimento das nações europeias só viria em 1825, após o Tratado de Paz e Aliança assinado com Portugal e intermediado pela Inglaterra, que custou ao Brasil mais 2 milhões de libras, a título de reparação à antiga metrópole. Livre das amarras coloniais, o novo País nascia atado por dívidas ao sistema financeiro internacional.

A definição das estruturas básicas do Estado brasileiro, a cargo da Assembleia Constituinte, seria a questão mais espinhosa do pós-Independência, causando a ruptura entre imperador e mentor. José Bonifácio defendia, além da gradual extinção da escravidão, a criação de uma sociedade civil para dar sustentação a reformas profundas, até hoje não realizadas, na estrutura agrária e na educação pública.

A Assembleia Geral Constituinte reunia uma elite escolhida pelo voto censitário: só podiam ser eleitores ou candidatos homens que tivessem renda anual equivalente a 150 alqueires de mandioca.

Instalada a 3 de maio de 1823, no Rio de Janeiro, a Assembleia Geral Constituinte, com 84 deputados de 14 províncias, reunia uma elite escolhida pelo voto censitário: só podiam ser eleitores ou candidatos homens que tivessem renda anual equivalente a 150 alqueires de mandioca. Ínfima minoria em um país que, à época registrava cerca de 4,5 milhões de habitantes, distribuídos entre 800 mil indígenas, 1 milhão de brancos, 1,2 milhão de negros escravizados e 1,5 milhão de mulatos, pardos, caboclos e mestiços.

O projeto de Constituição, apresentado pelo deputado Antônio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e Silva em 1º de setembro, previa o predomínio do Legislativo sobre o Executivo e a submissão do Exército ao Parlamento, como ocorre nas democracias europeias coroadas. A mesma aristocracia agrária que impulsionara Pedro I à independência, agora queria cortar as suas asas.

Contrariado, o imperador apela para a força. Cerca com tropas e dissolve a Constituinte a 12 de novembro de 1823. Em seguida, decreta a deportação para a França de seis representantes, dentre os quais os irmãos Andradas (incluindo Martin Francisco), José Bonifácio e Antônio Carlos, que pagam com o exílio o preço da coerência às ideias emancipadoras. O fechamento do Parlamento se repetirá algumas vezes na nossa história a partir do golpe inaugural, desfechado pelo “déspota liberal”, na definição paradoxal do historiador Tobias Monteiro.

Sufocada a oposição, em 1824, D. Pedro I outorga a Constituição que introduz o Poder Moderador, colocado acima dos demais poderes. Um artifício absolutista e autoritário, até hoje invocado por aqueles que defendem intervenções das Forças Armadas na vida política do Brasil. José Bonifácio só será retirado do ostracismo em 1831, quando o imperador abdica do trono e o indica para tutor do filho de cinco anos, Pedro II.

Herbert Carvalho Igor Marques
Herbert Carvalho Igor Marques