“Eu sou Paulo Vanzolini, animal de muita fama. Eu tanto corro no seco. Como na vargem da lama. Mas quando o marido chega, me escondo embaixo da cama.” Nas madrugadas paulistanas, enquanto varava noites mordendo um cachimbo, envolto em névoas de garoa, amigos e boêmia, versos como esses brotavam com uma agilidade de fazer inveja a muito repentista nordestino. Dessa mesma forma, surgiram sambas como Volta por cima e Ronda, este último um sucesso tão estrondoso que chegou a ser gravado em japonês.
O autor, porém, era um paulistano nascido em 1924, descendente de italianos que, aos dez anos de idade, visitou o Instituto Vital Brazil, no bairro do Butantã, em São Paulo, e se encantou pelos répteis a ponto de se tornar um cientista especializado em herpetologia, ramo da zoologia que estuda anfíbios, cobras e lagartos.
Muito antes, contudo, de se tornar diretor do Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo (USP), cargo que exerceu durante 30 anos, Vanzolini desenvolveu a veia boêmia e começou a compor músicas quando era estudante na Faculdade de Medicina da mesma universidade e morava no famoso Edifício Martinelli, primeiro arranha-céu construído na capital paulista. Formado médico em 1947, jamais teve a intenção de exercer a profissão. A escolha do curso se deu em função de que seria uma forma de estudar Anatomia, Fisiologia e Embriologia, matérias úteis ao futuro zoólogo. “Mais tarde, em Harvard [EUA] — que é uma universidade muito exigente —, deram-me um abatimento de metade dos créditos necessários ao doutorado em Zoologia, em virtude de ter feito essas cadeiras na USP”, revelou, em depoimento ao livro Alguma coisa acontece — A cidade de São Paulo em 22 depoimentos, da Editora Senac São Paulo.
Em 1945, entretanto, teve de interromper os estudos por ter sido convocado para o Exército, o que foi decisivo para que surgisse uma das pérolas do cancioneiro brasileiro de todos os tempos. Passou a fazer patrulha em áreas de prostituição no centro de São Paulo para arrebanhar soldados bêbados, o que lhe rendeu o livro de versos Tempos de Cabo, com cenas urbanas como Baile no Bexiga, e a inspiração para compor o samba-canção Ronda, obra-prima que tem a forma cinematográfica de narrativa.
Campeã absoluta de execuções nos bares noturnos paulistanos, a letra e a melodia traduzem o que há de mais comovedor para a alma do boêmio, de acordo com a descrição de Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello na antologia A Canção no Tempo — 85 anos de músicas brasileiras (Editora 34). “É a história da mulher — naturalmente também frequentadora da noite — que, ‘com perfeita paciência’, segue em busca do amante, ainda que na convicção de um dia encontrá-lo ‘bebendo com outras mulheres, rolando um dadinho, jogando bilhar’”. “E, nesse dia então”, promete a personagem, “vai dar na primeira edição, cena de sangue num bar da Avenida São João”.
O livro traz uma explicação técnica para o fato de a música conquistar o ouvinte logo a partir das notas iniciais. Isso se deve ao charme produzido pela descida de meio em meio tom, nas notas mi, mi bemol e ré, das sílabas nas palavras “cidade”, “procurar” e “encontrar”, do verso “De noite eu rondo a ci-da-de, a te pro-cu-rar, sem te en-con-trar”. Para acentuar a genialidade, note-se que Vanzolini pertence à seleta casta de compositores que jamais souberam tocar instrumento algum. Ele próprio não se envergonhava em confessar que não conseguia distinguir a diferença entre os modos maior e menor da música.
A primeira gravação de Ronda, em 1953, aconteceu por acaso. Amigos da cantora Inezita Barroso, Vanzolini e sua mulher foram acompanhá-la na gravação da famosa moda Marvada pinga, mas não havia música escolhida para o lado B. Por ser o único autor presente que poderia dar autorização, a canção foi gravada, mas permaneceu desconhecida pelos anos seguintes. Só no fim da década de 1960 que esta e outras canções de sua autoria foram reunidas em disco produzido pelo publicitário Marcus Pereira, que, mais tarde, abandonou a publicidade para fundar uma gravadora especializada em resgatar a riqueza musical das diferentes regiões brasileiras.
Distribuído inicialmente como brinde de fim de ano da empresa de Pereira, o LP Onze sambas e uma capoeira incluía Ronda na voz da cantora Cláudia Morena, início de uma escalada consagradora que exibiu gravações de Carmen Costa, Ângela Maria, Nora Ney e Maria Bethânia. Até então, a face de sambista e compositor do cientista que, durante o dia, envergava avental branco para dissecar anfíbios e répteis, era conhecida apenas pelo restrito grupo dos frequentadores do Jogral, casa noturna idealizada pelo violonista Luíz Carlos Paraná, que teve como endereços a Galeria Metrópole e a Rua Avanhadava, no centro de São Paulo. Baluarte da autêntica música popular brasileira, então em guerra contra a invasão dos ritmos estrangeiros, o Jogral dispensava microfones nas apresentações intimistas de voz e violão. Além de Paraná, eram sócios do bar o próprio Vanzolini, Marcus Pereira e o cantor e compositor Adauto Santos.
Seu outro grande sucesso foi Volta por cima, samba gravado em 1963 pelo cantor Noite Ilustrada. Um dos versos, justamente o que fala em “dar a volta por cima”, foi parar no Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa significando sair de uma situação difícil. Para o próprio autor, entretanto, o mais importante da letra é a parte que fala “reconhece a queda e não desanima” para sair do aperto com grandeza. Quando se ouve a música, a identificação é imediata: quem nunca precisou se levantar, sacudir a poeira e dar a volta por cima?
Paulo Vanzolini morreu em São Paulo, em 28 de abril de 2013, aos 89 anos. Em 2003, o selo Biscoito Fino lançou uma caixa com 4 CDs e 52 sambas, dentre os quais figuram Praça Clóvis e Samba erudito, inicialmente gravados por Chico Buarque de Holanda. Na vertente científica, 15 espécies animais foram nomeadas em sua homenagem, como os répteis Amphisbaena vanzoliniie Vanzosaura. Dois documentários espelham seus feitos em ambas as áreas: Os calangos do boiaçu, sobre o trabalho como herpetologista, e Um homem de moral, com foco na obra musical.