Descobrimento do Brasil pelos bastidores

22 de abril de 2022

A sinopse da história todo mundo sabe de cor: em 22 de abril de 1500, da frota comandada pelo navegador Pedro Álvares Cabral (1467-1520), avistou-se uma porção de terra, primeiramente chamada de Ilha de Vera Cruz. Era o que hoje é Brasil, mais especificamente a região de Porto Seguro, no litoral baiano.

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Se as narrativas antigas faziam crer que a “descoberta” teria sido obra do acaso, a historiografia contemporânea não tem dúvidas de que Portugal sabia, sim, da existência de terras do lado de cá do Atlântico — e naquele contexto expansionista, vislumbrava lucrar com as riquezas naturais daqui. “Basta ler a carta de Pero Vaz de Caminha para constatar que não há nenhuma manifestação de espanto ou de susto com a chegada em terra após longa viagem. A terra despertou, sim, o fascínio e o deslumbramento entre os navegadores da esquadra portuguesa”, comenta o historiador Paulo Henrique Martinez, professor na Universidade Estadual Paulista (Unesp).

Segundo ele, a consciência “da probabilidade de terras no Atlântico” e “o interesse gerado na visita e em desembarques neste litoral” sintetizam a “atenção estratégica que os portugueses conferiam a uma distância segura de possessões espanholas que pudessem ameaçar a rota africana de navegação” para a Índia. “A noção de que os portugueses teriam promovido o descobrimento do Brasil, por volta de 1500, é eivada de uma certa vontade eurocêntrica que, ainda hoje, insiste em dissolver interpretações e macular com instinto de inferioridade toda a dimensão coletiva e cultural do que eles, os portugueses, encontraram”, pontua o historiador Isaac Marra, professor no Colégio Presbiteriano Mackenzie Brasília Internacional.

A ideia de encontrar uma nova terra justificava, de certo modo, a imposição europeia sobre um local onde já viviam mais de 3,5 milhões de nativos — “distribuídos em diversas e distintas nações”, enfatiza Marra. A consequência foi a produção de descrições sobre “o que se poderia aqui explorar”, prossegue o historiador. “Não se pode perder de vista que a ação empreendedora europeia dos séculos 15 e 16 decorre de uma mentalidade mercantilista”, explica. Muito além de Cabral, diversos outros personagens, alguns relegados a um quase anonimato histórico, merecem menção curiosa nessa expedição portuguesa. Afinal, foram cerca de mil tripulantes, distribuídos em 13 navios, os que aportaram naquele mês de abril.

Para Martinez, “a figura mais emblemática do momento” é aquele que, como se diz metaforicamente, lavrou a certidão de nascimento do Brasil — o escrivão da armada Pero Vaz de Caminha (1450-1500). “Era oficial letrado, funcionário do Erário Régio e da Câmara da cidade do Porto”, salienta o historiador. “Este vínculo ao mundo e aos ofícios urbanos e os serviços prestados às autoridades do Reino e da cidade fizeram dele um agente adequado para acompanhar a esquadra cabralina aos entrepostos mercantis portugueses na costa da Índia. Lealdade e competência técnica e administrativa no apontamento dos negócios de interesse das autoridades governamentais distinguiam a sua atuação anterior, alimentando a confiança e as expectativas no registro de despesas e pagamentos durante a expedição.”

“A noção de que os portugueses teriam promovido o descobrimento do Brasil, por volta de 1500, é eivada de uma certa vontade eurocêntrica que, ainda hoje, insiste em dissolver interpretações e macular com instinto de inferioridade toda a dimensão coletiva e cultural do que eles, os portugueses, encontraram.” Isaac Marra, professor no Colégio Presbiteriano Mackenzie Brasília Internacional

Relevante também foi a participação do grupo de religiosos. Ali estava a semente do catolicismo predominante no País e, como detalho em meu livro, Santo Antônio: A história do intelectual português que se chamava Fernando, quase morreu na África, pregou por toda a Itália, ganhou fama de casamenteiro e se tornou o santo mais querido do Brasil, lançado no ano passado, a gênese da devoção brasileira a este santo português tão famoso por aqui.

Eram oito os religiosos, todos franciscanos, comitiva liderada por frei Henrique Soares de Coimbra (1465-1532), que entraria para a história como o celebrante da primeira missa no litoral brasileiro, em 26 de abril de 1500. “Sendo eles da Ordem dos Frades Menores e tendo viajado em frota portuguesa, é altamente provável que tenham carregado uma estatueta de Santo Antônio e, em suas primeiras rezas no Brasil, buscado a intercessão do religioso”, escrevo, no livro.

“A Igreja, em sua vasta rede de infraestrutura, ordens religiosas, dirigentes centrais, corpo de conhecimentos organizados e autoridade moral sobre a sociedade, era uma instituição central neste momento”, contextualiza Martinez. “A presença de franciscanos na viagem de Cabral cumpria diferentes funções. A assistência espiritual e religiosa, a estrita observância dos dogmas vigentes e da fé, além de serviços litúrgicos. Logo a catequese e a expansão da fé católica pela evangelização dos povos nas terras recém-conquistadas passaram a integrar o plano de dominação e controle colonial, promovendo a autoridade real e religiosa – em nome de Deus e de sua majestade – das monarquias ibéricas, sob a concessão do Papa.”

Santo Antônio, nascido em Lisboa, por volta do ano 1190, e morto em Pádua, em 1231, também havia sido frade franciscano. Logo, os primeiros conventos franciscanos começam a se instalar no Brasil — o mais antigo, em Olinda, no ano de 1585. E a devoção antoniana fincou raízes nas terras tropicais, ganhando um sotaque repleto de simpatias e costumes folclóricos.

Santo Antônio, nascido em Lisboa, por volta do ano 1190, e morto em Pádua, em 1231, também havia sido frade franciscano. Logo, os primeiros conventos franciscanos começam a se instalar no Brasil — o mais antigo, em Olinda, no ano de 1585. E a devoção antoniana fincou raízes nas terras tropicais.

Marra ressalta também que essas missões ultramarinas acabavam incorporando hordas de marginalizados para a época, gente que não era bem-vista pela sociedade portuguesa e, portanto, não tinha nada a perder ao participar de incertas empreitadas. “Muitos foram os que vieram nas caravelas: bastardos, degredados, prostitutas, judeus marranos, árabes cristianizados, despossuídos da terra e da cidadania, entre outros indivíduos de segunda ou terceira classe da sociedade portuguesa”, afirma o historiador.

Quando a frota de Cabral partiu, depois de oficializar a posse da “nova terra”, foram deixados dois indivíduos. “Deliberadamente”, enfatiza Martinez. Eram eles Afonso Ribeiro e João de Tomar. Sobre o segundo, nada se sabe — mesmo sua identidade não é consenso. Já Ribeiro é considerado o primeiro degredado nominalmente conhecido a habitar o Brasil, referido na carta de Caminha.

“O objetivo era ter observadores na nova terra, incumbidos de aprender o idioma dos nativos, coletar informações e experiência sobre a vida cotidiana e a presença de estrangeiros”, diz. “Ribeiro pôde retornar ao Reino e obter o perdão real pelos delitos que cometera [pesava sobre ele uma acusação de assassinato]. As informações que ele forneceu foram consideradas úteis e aproveitadas nas expedições nos anos seguintes.” A história de Ribeiro foi apresentada pelo jornalista, escritor e sociólogo Jorge Caldeira, no livro 101 brasileiros que fizeram história.

“O que se sabe, a partir de uma limitada fonte documental, é que Afonso Ribeiro teria sido o primeiro homem europeu a desembarcar em terras portuguesas na América, acompanhado de um anônimo companheiro”, abrevia Marra. “De forma geral, teria sido bem recebido e, entre suas andanças pela região litorânea, que incluíam visitas a algumas aldeias, estabelecido razoável confiança com os nativos.” Ribeiro teria ficado 20 meses deste lado do Atlântico. Em 1502, retornou a Portugal a bordo da esquadra capitaneada pelo navegador Américo Vespúcio (1451-1512).

Edison Veiga Paula Seco
Edison Veiga Paula Seco