Dom Pedro I: “o imperador compositor”

02 de setembro de 2022

Herói de dois mundos, Pedro de Bragança e Bourbon viveu uma vida curta de apenas 36 anos, mas repleta de aventuras amorosas, políticas e militares. Dono de apetite sexual lendário, teve 18 filhos, com duas esposas e cinco amantes. É celebrado deste lado do Atlântico como Dom Pedro I, por ter proclamado a Independência do Brasil, e, do outro, como Dom Pedro IV, responsável pela consolidação da Monarquia Constitucional em Portugal.

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Nesses dois eventos, deixou impressa também a mostra de outro grande talento, menos conhecido, mas igualmente importante em sua personalidade ímpar: foi o inspirado autor do Hino da Independência, um dos mais belos de nosso repertório, e do Hino Constitucional, adotado como hino nacional de Portugal até a Proclamação da República, em 1910.

O “imperador compositor”, como é chamado pela musicista e pesquisadora Rosana Lanzelotte, teve os melhores professores disponíveis na época e era considerado como um igual por mestres como o italiano Gioachino Rossini, que incluía obras de Dom Pedro I em seus concertos. Ele nos legou, além dos hinos, diversas peças de música sacra, como missas e louvações (te-déum) que, sob a forma de documentos musicais, estão sendo coletados e inscritos no programa Memória do Mundo, da Unesco, como parte das comemorações dos 200 anos da Independência.  

Ao nascer no Palácio de Queluz, em 12 de outubro de 1789, o herdeiro da coroa já respira a pompa do ambiente musical na corte de Dona Maria I, sua avó. A capela da rainha, considerada a primeira da Europa, foi assim descrita por um cronista: “Pelo que se refere à excelência vocal e instrumental, nenhuma outra instituição do gênero, incluindo a do próprio Papa, se pode gabar de possuir uma tal coleção de admiráveis músicos.”

Durante os anos compreendidos entre 1764 e 1834, a Orquestra da Real Câmara de Lisboa manteve o status de uma das melhores e mais bem pagas de toda a Europa. Seu número de músicos só diminuiu quando vários deles acompanharam a transferência da sede do Império português para o Rio de Janeiro, entre 1808 e 1821.

No Brasil, já se fazia música de qualidade antes da chegada de Dom João VI, predominantemente religiosa, sob a liderança do padre José Maurício Nunes Garcia, organista e mestre de capela da Catedral da Sé do Rio de Janeiro. Confirmado no posto pelo príncipe regente, dirigiu todas as atividades musicais da Corte portuguesa, exercendo a função de professor de música de Dom Pedro I até 2011, quando é substituído por Marcos Portugal. Esse compositor lusitano, especializado em óperas de estilo napolitano, escreveu quatro cadernos de transcrições de suas mais célebres árias, com o intuito de oferecer material didático para as aulas de príncipes e princesas.

Apaixonado pela música em plena adolescência, aos 14 anos, Dom Pedro I dominava os principais naipes da orquestra. Tocava tanto instrumentos de sopro – flauta, clarinete, fagote e trombone – como de corda – violino e violoncelo –, além de piano e violão. Chegava a receber visitas com a viola em punho e, nas rodas boêmias que frequentava, contribuiu para a popularização da modinha e do lundu, como registra o Dicionário Cravo Albin da Música Popular Brasileira: “O primeiro imperador do Brasil entrou para a história da música popular brasileira como cantor de modinhas. Há indícios de modinhas escritas à Marquesa de Santos, infelizmente ainda não encontradas.”  

Com a vinda de Dom João, o Rio se tornou a capital que mais produziu música em toda a América. Inaugurado em 1813, o Real Teatro de São João, construído às feições do Teatro São Carlos de Lisboa, foi dedicado aos grandes espetáculos profanos, sobretudo óperas. Encorajado por Marcos Portugal a elaborar obras de sua própria autoria, Dom Pedro também foi aluno do austríaco Sigismund Neukomm (discípulo de Joseph Haydn), com quem aprendeu composição, contraponto e harmonia.

A música esteve no centro do casamento do príncipe português com nossa primeira imperatriz, Dona Leopoldina, que, em sua Viena natal, foi amiga de infância do compositor Franz Schubert. No Brasil, seus momentos mais felizes foram aqueles em que praticava música ao lado do marido. Em cartas à família, em 1818, ela afirma que “talento igual para música e todos os estudos, como ele possui, ainda não tenho visto”. “Acompanho-o ao piano e, desta maneira, tenho a satisfação de estar perto de sua querida pessoa.” Ela enviou ao pai, o imperador Francisco I da Áustria, em 1821, Missa solene, Sinfonia e Te Deum de autoria de Dom Pedro, manuscritos infelizmente não localizados até hoje.

Dom Pedro I chegava a receber visitas com a viola em punho e, nas rodas boêmias que frequentava, contribuiu para a popularização da modinha e do lundu.

Após a Independência, a escassez de recursos financeiros afogou quase por completo a verdadeira orgia musical do tempo de Dom João VI. Durante o Primeiro Reinado, o único compositor de destaque foi Francisco Manuel da Silva. O hino que compôs, em 1831, para celebrar a abdicação de Pedro I, foi acolhido após a Proclamação da República como o nosso atual Hino Nacional Brasileiro, com letra de Osório Duque Estrada.

Ao se ver livre das obrigações do trono, a primeira coisa que fez, a bordo da fragata que o levou para a Europa, foi tomar da viola e tocar um miudinho. Na temporada que passou em Paris, frequentou o Teatro dos Italianos, de Rossini. Este, lisonjeado pela amizade do ex-imperador, fez com que sua orquestra apresentasse ao público parisiense a Abertura em mi bemol, de autoria de Dom Pedro. Esse manuscrito está preservado, assim como os de obras sacras dedicadas ao pai Dom João e o de uma missa em homenagem ao papa Leão XII.

Com a vitória da guerra civil, que travou contra o irmão absolutista Dom Miguel, garantiu a coroa de Portugal para sua filha Maria da Glória. Morreu no dia 24 de setembro de 1834, na mesma Queluz em que nascera. A produção musical que deixou o caracteriza como um importante compositor amador de sua época. No Brasil, seu filho Dom Pedro II daria continuidade a essa tradição por meio de generoso mecenato, como o que possibilitou estudos na Itália até o desabrochar do gênio de Carlos Gomes.

Durante seu longo reinado, popularizaram-se gêneros musicais europeus, como a polca, que, mesclados aos ritmos africanos do maxixe e do lundu, resultaram em nossa atual música popular brasileira, apreciada em todo o mundo.

Herbert Carvalho Paula Seco
Herbert Carvalho Paula Seco