Duzentos anos da primeira Constituição do Brasil

04 de janeiro de 2024

Principal polo de comércio popular do País, a Rua 25 de Março, no centro de São Paulo, evoca uma data cujo significado é bem menos conhecido: nesse dia, há 200 anos, D. Pedro I outorgou a primeira Constituição do Brasil. Foi a Carta Magna de maior duração até hoje, das sete que tivemos. Ao ser revogada pelo governo republicano, em 1889, após 65 anos, era a segunda Constituição escrita mais antiga do mundo, superada apenas pela dos Estados Unidos.

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A Constituição de 1824 resultou da tentativa de conciliar os princípios do liberalismo à manutenção das estruturas social, econômica e política do Estado monárquico e escravocrata que emergiu da Independência. Definia como forma de governo a monarquia hereditária, constitucional e representativa, a ser exercida pelo imperador e por uma Assembleia Geral composta por duas câmaras, uma de deputados e outra de senadores.

Ao mesmo tempo em que a América Espanhola se fracionava numa miríade de Estados, a Constituição garantiu a unidade territorial da ex-colônia portuguesa por meio de uma vigorosa centralização político-administrativa, capaz de resistir ao turbulento período da Regência, marcado por revoltas regionais, entre 1831 e 1840.    

Emendado apenas uma vez, o texto proporcionou estabilidade política durante os fatos que deram forma à Nação na sua evolução econômico-social durante o período do Império: a supressão do tráfico de escravizados, a Guerra do Paraguai, o início do protecionismo e da industrialização e a abolição da escravidão.

A quase totalidade dos 179 artigos dispunha sobre a organização do Estado e do governo. O último deles de acordo com a redação adotada, mas de primordial relevância, assegurava “a inviolabilidade dos Direitos Civis e Políticos dos cidadãos brasileiros” por meio de 35 parágrafos que consagravam o lar como asilo inviolável, o sigilo da correspondência, a exigência de culpa formada para se impor a prisão e os direitos de reunião e liberdade de pensamento. Além disso, extinguiam as corporações de ofícios e aboliam açoites, torturas, marcas de ferro quente e outras penas cruéis do período colonial. Alguns dos demais dispositivos soam atuais ainda hoje: “A instrução primária é gratuita a todos os cidadãos”; “Ninguém será isento de contribuir para as despesas do Estado em proporção dos seus haveres”; e “As cadeias serão seguras, limpas e bem arejadas, havendo diversas casas para a separação dos réus, conforme suas circunstâncias e natureza dos seus crimes”.

A Constituição foi elaborada pelo Conselho de Estado — composto por ministros do imperador tidos como “áulicos” — após D. Pedro I cercar com tropas e dissolver a Assembleia Constituinte, no primeiro dos muitos golpes de Estado que a história do Brasil registra. Insatisfeito com o projeto que previa o predomínio do Legislativo sobre o Executivo e a submissão do Exército ao Parlamento (como é de praxe nas democracias europeias coroadas, nas quais o rei “reina, mas não governa”), o monarca, tido paradoxalmente pelos historiadores como “déspota liberal”, exige a introdução do Poder Moderador. Colocado acima dos demais poderes, esse artifício absolutista (aplicado apenas no Brasil) declarava a pessoa do imperador inviolável e sagrada, não sujeita a responsabilidade alguma. Era a sua prerrogativa nomear e demitir livremente os ministros de Estado e dissolver a Câmara dos Deputados, convocando novas eleições. Podia também interferir no Poder Judiciário, suspendendo magistrados e perdoando ou reduzindo as penas impostas aos réus.

Durante as seis décadas e meia de existência do Poder Moderador, este foi exercido autoritariamente por Pedro I, provocando a própria abdicação em 1831, e com voluntária tolerância por parte de D. Pedro II, — que foi transferindo, ao longo de seu reinado, os poderes que tinha ao Conselho de Ministros indicado pelo Parlamento. O Poder Moderador, entretanto, até hoje é invocado pelos que defendem intervenções das Forças Armadas na vida política do País.    

“Ninguém será isento de contribuir para as despesas do Estado em proporção dos seus haveres.” (Dispositivos da Constituição de 1824)

Uma das chaves do êxito e da longevidade da Carta Imperial era a plasticidade e a concisão, inspiradas no constitucionalismo inglês, segundo o qual é constitucional apenas aquilo que diz respeito aos poderes do Estado e a direitos e garantias individuais. Em consequência, tudo o mais poderia ser alterado pelas legislaturas ordinárias. Embora o território brasileiro fosse dividido em províncias, estas não tinham qualquer autonomia, cujos presidentes eram nomeados pelo imperador e podiam ser por ele removidos. Toda autoridade era rigorosamente centralizada na capital do Império, num desenho de Estado unitário reeditado durante o Estado Novo de Getúlio Vargas. Nas cidades e vilas, o governo econômico-administrativo competia às câmaras municipais, compostas por vereadores eleitos.

Como ainda não existiam assembleias legislativas nas províncias, as quais seriam criadas pelo Ato Adicional de 1834, as câmaras municipais, atuantes desde os albores da colonização, dispunham de expressiva representatividade: foi a elas que D. Pedro I submeteu o projeto de Constituição para receber emendas, correções e aprovação, como forma de legitimação antes da outorga. O sistema eleitoral estabelecido pela Carta se baseou numa concepção de cidadania que distinguiu os detentores dos direitos civis dos que usufruíam também de direitos políticos, reservados exclusivamente a uma casta de proprietários. De acordo com esse critério censitário, podiam votar os homens maiores de 25 anos, com renda líquida anual de 100 mil réis para as eleições paroquiais, e de 200 mil réis para as de província.

Estavam excluídos do direito ao voto os criados e religiosos, as mulheres, os escravos, os indígenas e os filhos que viviam na companhia dos pais, isto é, dependentes economicamente. Até 1934, quando as mulheres puderam votar pela primeira vez, a situação não era muito diferente: se em 1870 os eleitores faziam parte de 1% da população, em 1912 não passavam de 1,3%.

Apesar de todas as restrições, a Constituição jurada solenemente por D. Pedro I, em 25 de março de 1824, teve o mérito de consagrar os princípios do liberalismo econômico predominante no Brasil e no mundo até a Depressão de 1930.

Herbert Carvalho Annima de Mattos
Herbert Carvalho Annima de Mattos