Em 6 de setembro de 1900, o deputado federal sergipano Fausto Cardoso fez um grave discurso na Câmara contra o ministro da Fazenda à época, Joaquim Murtinho. Inimigo de Murtinho, Cardoso o acusava de estampar uma das cédulas em circulação com o retrato de uma prostituta famosa no Rio de Janeiro, então capital federal
Ao exibir na tribuna da Câmara a cédula de 2 mil réis que circulava na época, Cardoso discursou: “Aqui está uma nota em que figura uma das meretrizes mais conhecidas na Capital Federal: senhora Prates”. E, apontando para a cédula, completou: “Quem poderá negar que esta figura que aqui está não é a dessa mulher tão conhecida?”, provocando grande discussão entre deputados governistas e da oposição ao presidente de então, Campos Salles, conforme ficou registrado nos Annaes da Câmara dos Deputados, de setembro de 1900.
Oficialmente, a estampa da mulher no papel-moeda é a reprodução do quadro Saudade, do pintor austríaco Conrad Kiesel (1846-1921).
O episódio envolvendo a nota de 2 mil réis seria lembrado décadas depois pelo historiador José Murilo de Carvalho, no livro A formação das almas: o imaginário da República no Brasil (Cia. das Letras): “Em 1900, o deputado Fausto Cardoso denunciou, na Câmara dos Deputados, o ministro da Fazenda, Joaquim Murtinho, por ser ‘um homem que manda reproduzir nas notas do Tesouro, nos dinheiros do Estado, como símbolo da República, o retrato de meretrizes’. Segundo a denúncia, que provocou tumulto na Câmara e levou à suspensão da sessão, mas que não foi contestada, a foto seria de uma tal Sra. Prates, uma das meretrizes mais conhecidas da capital. Segundo outras versões, seria de Laurinda Santos Lobo, sobrinha e amante de Murtinho”, diz um trecho do livro de Carvalho.
Exatos 120 anos depois da polêmica em torno da cédula de 2 mil réis, o meio circulante brasileiro volta a ser tema de discussão e debates envolvendo a sociedade e a classe política. Anunciada no fim de julho deste ano e colocada em circulação em todo o território nacional na quarta-feira, 2 de setembro, a decisão do governo federal em lançar uma nova cédula de R$ 200 foi acompanhada de grande reação por parte da sociedade civil.
Na internet, o assunto ganhou destaque nas redes sociais e surgiram propostas bem-humoradas para a novidade, como memes e petições online para que, em vez do lobo-guará, escolhido pelo Banco Central (BC) para estampar a nova nota, fosse feita uma homenagem ao vira-lata. O deputado federal Fred Costa (Patriota/MG) deu um passo adiante e criou uma petição online para ser enviada ao BC, com mais de 140 mil assinaturas, em defesa do cachorro na nota, no lugar do lobo-guará, escolhido em uma pesquisa de opinião pública feita pelo Banco Central, em 2001.
Na época, o objetivo da pesquisa do BC era consultar a população brasileira sobre os animais brasileiros que poderiam ser homenageados nas cédulas de real. “Não descartamos a relevância do lobo-guará na história e na fauna brasileiras, porém, o cachorro vira-lata está mais relacionado ao cotidiano dos brasileiros e, além disso, é presente em todas as regiões”, diz a petição do deputado mineiro.
Houve também questionamentos em relação à medida monetária. Os principais são de que a nova nota poderia ser um sinal de desvalorização da moeda e retorno da inflação ao País. Além disso, a nota de R$ 200 poderia facilitar ações ilícitas, como a lavagem de dinheiro e o tráfico de drogas, que costumam utilizar cédulas para ocultar transações criminosas.
Bancadas dos partidos de oposição ao governo federal na Câmara dos Deputados entraram com uma ação no Supremo Tribunal Federal (STF), pedindo a suspensão do lançamento da nova cédula e questionando a utilidade da medida, sob o argumento que poderia ser utilizada para ocultar transações ilícitas. Em resposta, o STF pediu explicações ao governo federal sobre a medida monetária. O BC informa que prestou todos os esclarecimentos técnicos e jurídicos solicitados pelo STF, mas que “respeita qualquer decisão judicial” que eventualmente possa ser tomada.
Há também dúvidas se uma cédula de alto valor seja realmente necessária em uma sociedade que utiliza cada vez mais os meios de pagamentos eletrônicos e a internet.
Em defesa do lançamento, o BC explica que um dos motivos para a confecção da nova nota foi a pandemia de covid-19, que aumentou a demanda do público pelas cédulas, em especial das classes mais desfavorecidas e beneficiárias dos programas sociais do governo federal, geralmente sacados em dinheiro vivo – já que uma parcela significativa dessas pessoas não possui conta corrente no banco.
“Em momentos de incerteza, as pessoas têm o hábito de sacar notas e acumular reserva. O dinheiro em espécie é um sinal de segurança e estabilidade em tempos de incerteza”, explica a diretora de administração do Banco Central, Carolina Barros. Segundo ela, a decisão de lançar uma cédula de valor mais alto também não está relacionada à inflação, que continua estável e controlada e não deve facilitar operações ilícitas. “Nós temos um arcabouço de combate à lavagem de dinheiro extremamente avançado”, afirma Carolina.
A previsão do banco é que sejam impressas pela Casa da Moeda, no total, 450 milhões de unidades de R$ 200, que serão colocadas gradualmente em circulação.
A diretora da instituição lembra que cerca de 60% das transações monetárias no Brasil ainda são feitas em dinheiro vivo, conforme a pesquisa O Brasileiro e Sua Relação com o Dinheiro, realizada pelo BC a cada dois anos. No mesmo levantamento, cuja versão mais recente é de 2018, o cartão de débito respondia por 22% das transações, e o cartão de crédito, por 15%. “O dinheiro em espécie ainda é a base das nossas transações. Mesmo em países onde há meios de pagamentos digitais bem evoluídos, o dinheiro tem uma importância bastante significativa”, diz Carolina Barros.
“É a primeira vez que o lançamento de uma cédula não está relacionado diretamente ao aumento da inflação”, afirma o economista Josilmar Cordenonssi, professor da Universidade Mackenzie, lembrando que, apenas de 1942 para cá, o Brasil já teve oito moedas diferentes, por causa das políticas monetárias que não conseguiam debelar a inflação.
Entre os numismatas (colecionadores de dinheiro), economistas e especialistas em história do dinheiro no Brasil, o lançamento gera expectativas. Afinal, explicam, além do valor monetário, as cédulas de dinheiro são pequenos pedaços da cultura e da história nacionais no bolso de cada cidadão.
“Para nós, colecionadores, qualquer novidade em relação ao meio circulante é sempre muito bom”, diz o advogado Bruno Pellizzari, diretor da Sociedade Numismática Brasileira (SNB). Ele lembra que, por meio de cédulas e moedas, é possível conhecer a cultura e a história de uma nação. “O governo sempre estampa nas notas alguma característica do País que merece ser destacada e divulgada internamente e no mundo, já que o dinheiro é algo que circula entre todos”, destaca Pellizzari. “No caso das cédulas do real, por exemplo, é destacada a fauna brasileira, como a tartaruga-marinha (nota de R$ 2), o mico-leão-dourado (nota de R$ 20) e, agora, o lobo-guará”, completa o colecionador. Ele lembra que o dinheiro também serve como propaganda de um governo. “Por isso as monarquias estampam muito o rosto dos monarcas nas cédulas e moedas”, explica Pellizzari.
Atualmente, são oito tipos de cédulas do real (1, 2 ,5, 10, 20, 50, 100 e, agora, 200 reais), mas o País já teve mais de cem tipos de cédulas em circulação.
Segundo o livro Dinheiro no Brasil (Reper Editora), de Francisco dos Santos Trigueiros, em 1900 havia 103 tipos de notas de mil-réis em circulação no território nacional. É que, desde o Império, segundo o autor, os bancos particulares eram autorizados pelo governo central a fazer emissões, e como as notas não eram recolhidas, havia um acúmulo de estampas de dinheiro em circulação. A situação só começou a ser revertida a partir de 1942, pelo presidente Getúlio Vargas, com o lançamento do cruzeiro em substituição ao mil-réis.
Pouco antes do lançamento do cruzeiro, havia 62 cédulas de mil-réis em circulação, conforme levantamento do livro Papel moeda – livro completo (MBA Editores), de Rodrigo Maldonado e Fernando Antunes.
E para quem acha que o valor de R$ 200 para uma nota é muito alto, imagine carregar no bolso uma cédula de meio milhão. Em consequência da hiperinflação da década de 1980 e parte dos anos de 1990, em 1993 foi lançada uma cédula de 500 mil cruzeiros, que homenageava o escritor Mário de Andrade. Mas a cédula de maior valor em circulação na história brasileira foi a de um conto de réis – equivalente a um milhão de réis, que circularam entre as décadas de 1920 e 1940.
“Com cinco ou seis cédulas dessas [de um conto de réis], você carregava o valor de uma casa na carteira”, explica o delegado aposentado Manoel Camassa, autor do Catálogo de cédulas do Brasil (RHM). Em relação ao ministro Joaquim Murtinho, citado no começo da reportagem, ele próprio acabou sendo homenageado com a sua estampa em uma outra cédula de 2 mil réis, em 1923.