O rei do carnaval

19 de janeiro de 2024

A marchinha de carnaval é o protótipo brasileiro da canção utilitária, feita sob encomenda, destinada ao consumo veloz e imediato de três dias. Embora já existisse, desde o início do século, para animar bailes e desfiles carnavalescos do Rio de Janeiro, foi na década de 1930 que o gênero encontrou o seu maior divulgador: Lamartine Babo, “o mais completo e mais visceralmente carioca dos compositores populares que desabrocharam na Era de Ouro da música popular brasileira”, de acordo com a definição do musicólogo Ricardo Cravo Alvim.

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O período entre 1929 e 1945 — a que se refere o autor de O livro de ouro da MPB (Ediouro, 2003) — concentrou, na mesma geração, talentos como os de Noel Rosa, Ary Barroso e João de Barro (Braguinha), todos também parceiros de Lalá, como o compositor era chamado pelos pares no mítico Café Nice, onde se reuniam.

Babo era autodidata, intuitivo, não sabia tocar qualquer instrumento, mas capaz de reproduzir com a boca e as mãos os acordes de uma orquestra inteira. Dedicou-se, durante os quase 60 anos de vida, a diversos ritmos, além das marchas, compostas não apenas para o carnaval, mas também para outras festas, como as juninas: Chegou a hora da fogueira e Isto é lá com Santo Antônio, as principais, se incorporaram ao cancioneiro nacional.

Dois sambas-canção de sua autoria são obrigatórios até hoje em rodas de seresta: No rancho fundo, parceria com Ary Barroso, e Serra da Boa Esperança, ambos de um lirismo associado a certa nostalgia rural, segundo o músico paulistano Luiz Tatit, que caracteriza a forma de compor de Lalá como “simples e irreverente” e, ao mesmo tempo, “elaborada e imponente”.

Deixou também incontáveis hinos, desde religiosos aos que exaltam os clubes cariocas de futebol. Perfeccionista, dizia ter deixado de fora os times paulistas por não ter encontrado uma rima adequada para “Corinthians”.

Lamartine de Azeredo Babo nasceu no Rio de Janeiro há 120 anos, em 10 de janeiro de 1904, quando o prefeito Pereira Passos promovia o “bota abaixo” de 641 edificações de 21 vielas da antiga cidade colonial, que desapareceram para dar lugar à Avenida Central (atual Rio Branco), epicentro da belle époque carioca. Décimo primeiro e penúltimo filho de Leopoldo de Azeredo Babo e Bernarda Preciosa Gonçalves de Azeredo Babo, foi um sobrevivente: 9 dos 12 filhos do casal não atingiram a idade adulta, vitimados por doenças, como a febre amarela.

Além disso, teve a ventura extra de crescer num ambiente familiar com saraus musicais que contavam, às vezes, com a participação do compositor Ernesto Nazareth ou do poeta Catulo da Paixão Cearense. Aos seis anos, acompanhava o pai à sala de espera dos cinemas, onde se tocava música ao vivo, e se impressionava com as marchas executadas nas ruas pelas bandas militares. Foi quando começou a imitar com a boca instrumentos como o trombone e o trompete, apertando as narinas para extrair sons em surdina, revelando um talento que, mais tarde, impressionaria o maestro e arranjador Radamés Gnattali: “Era um dos poucos compositores que sabiam exatamente o que queria. Descrevia todo o arranjo, cantando introdução, meio e fim, solfejava acordes e sugeria partes instrumentais. A gente só fazia escrever”.

Entre desfiles e trocadilhos 

A veia poética se revelou também na infância. Primeiro, nas quadrinhas, que fazia para oferecer de bônus durante os festejos juninos a quem lhe comprasse fogos de artifício; depois, por meio do poema O frade que vendia esmolas, que lhe garantiu a vitória no concurso literário escolar do colégio São Bento. Adulto, publicaria dois livros de poesias cômicas, Lamartiníadas (versão épica, modernista e carnavalesca de Os Lusíadas, de Camões) e Pindaíba, que intitula o autor como “membro da Academia de Letras Promissórias”.

No início da década de 1920 — quando sopravam os ventos transformadores da Semana de Arte Moderna e das revoltas do ciclo tenentista —, Babo foi obrigado, diante da morte do pai, a abandonar os estudos e se empregar como office boy da Light para ajudar no sustento da família. 

À noite, porém, frequentava rodas boêmias e não perdia as operetas vienenses, então em voga nos teatros líricos. Durante o carnaval, juntava-se a colegas de serviço no Papa Tudo, bloco de repartição que logo trocou por outro, mais organizado, o Tatu Subiu no Pau, do amigo Eduardo Souto, compositor de marchinhas e proprietário da Casa Carlos Gomes, editora de partituras. 

Não hesitou em sair fantasiado de bailarina, exibindo o espírito galhofeiro que já então se manifestava. Cosmopolita, misturava ritmos brasileiros com o suingue das bandas estadunidenses. Ainda em tenra idade, escolheu torcer para o América do Rio — inesquecível foi o desfile em traje de diabinho quando o clube se sagrou campeão estadual, em 1960. No início dos anos 1930, já conseguia viver de músicas e textos, atividades agregadas a de professor de danças de salão, favorecido por uma proverbial magreza que o próprio ironizava: “Me achava um colosso, mas não tinha colo, só osso”; “Meu pijama tinha uma única listra”; e “Passava incólume entre os pingos de chuva”. 

É no contexto das ideias eugenistas vigentes, contrárias à miscigenação, que surge a mais famosa (e polêmica) de suas marchinhas, O teu cabelo não nega. Ao fixar a sensual mulata como símbolo de uma sociedade mestiça, Lalá ignora o caráter pejorativo do termo que tem “mula” ou “mulo” em origem espanhola. Para piorar, além da referência ao cabelo, um dos versos diz que “a cor não pega”. Na época, porém, essas conotações, hoje evidenciadas como racistas, ficaram em segundo plano diante da música contagiante e do lirismo: “Quem te inventou/meu pancadão/teve uma consagração/a lua te invejando fez careta/porque mulata tu não és deste planeta”. 

Em 1963, quando se recuperava de um enfarte, Babo, ao ser entrevistado para um telejornal, quis saber se a conversa seria veiculada no mesmo dia. “Hoje não, porque já temos a entrevista de Tom Jobim”, respondeu o repórter. “Ah! Quer dizer que agora eu estou um tom abaixo?”. Foi o último dos célebres trocadilhos. Três dias depois, morria o humorista, radialista, ator, cantor e poeta, sobre quem o amigo e parceiro Braguinha disse certa vez — “Costumo dividir o carnaval em duas fases: antes e depois de Lamartine”.

Herbert Carvalho Annima de Mattos
Herbert Carvalho Annima de Mattos