Psiquiatra das letras

07 de junho de 2024

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“Não sei se você será um médico razoável, mas estou certo de que o seu instinto poético, tão profundo, saberá fazer da medicina uma coisa bela”, escreveu o poeta mineiro Carlos Dumond de Andrade ao confrade e conterrâneo Hélio Pellegrino, que, naquele dezembro de 1947, tornava-se o mais novo médico de Belo Horizonte. 

A poesia esteve presente durante toda a vida desse que foi um dos mais multifacetados intelectuais brasileiros do século passado: era católico praticante e marxista convicto; carioca por adoção, manteve-se por toda vida fiel ao grupo dos Quatro Mineiros, que formava com Fernando Sabino, Otto Lara Resende e Paulo Mendes Campos; e foi orador na histórica passeata dos Cem Mil no Rio de Janeiro, no fatídico 1968, e um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores, em 1980.  

O psiquiatra Hélio Pellegrino — especialidade que adotou e, posteriormente, trocou pela psicanálise — surgiu no mesmo ano em que o poeta Hélio Pellegrino estreava no mundo das letras com Poema do príncipe exilado, dedicado a Mario de Andrade, com quem manteve uma intensa correspondência entre 1943 e 1945, ano da morte do autor de Macunaíma. Filho do médico Brás Pellegrino e de Assunta Magaldi, ambos de origem italiana da província de Salerno, nasceu na capital de Minas Gerais no dia 5 de janeiro de 1924. Era primo-irmão do crítico teatral Sábato Magaldi, filho de seu tio materno, João Magaldi. “Sou médico um pouco por linhas tortas. Meu avô foi médico. Meu pai é médico, meu irmão é médico, pesquisador de renome internacional”, escreveu Hélio, em texto autobiográfico publicado pela revista Manchete, em 1977. “No sexto ano da faculdade de Medicina, querendo ganhar a vida para casar-me, celebrei bodas indissolúveis com a psiquiatria.”  

Psicanálise que liberta

Inconformado com métodos como o eletrochoque, empregado no tratamento de doenças mentais no manicômio do Estado, onde trabalhava, Hélio decide se dedicar à psicanálise, que dava os primeiros passos no Brasil com a criação do Instituto Brasileiro de Psicanálise, entidade vinculada à Associação Internacional de Psicanálise, fundada pelo próprio Sigmund Freud

Na infância e na adolescência em Belo Horizonte, travou as amizades fundamentais — inicialmente com Fernando Sabino, colega de jardim de infância que, mais tarde, o acompanharia na viagem a São Paulo para o encontro com Mário de Andrade. “Achei vocês dois diabolicamente inteligentes”, diria o escritor modernista identificando “um vulcão caótico” nos jovens literatos mineiros. Faziam parte desse magma Otto Lara Rezende e Paulo Mendes Campos, integrantes, ao lado de Fernando e Hélio, do grupo que se tornou conhecido como os Quatro Mineiros. Para o médico, o sentimento que o unia aos demais era descrito como amizade-antídoto, que os permitia sobreviver à ditadura do Estado Novo e aos conservadorismos político e social de Minas: “Foi o que nos salvou dos descaminhos da solidão, nos ajudou a resistir. Para não afundar, decretávamos que éramos uns gênios, e os demais uns cretinos”.

Em 1981, os “quatro cavaleiros de um íntimo apocalipse”, de acordo com a definição de Otto Resende, se reuniram para celebrar quarenta anos de amizade por meio de um disco produzido pela gravadora Som Livre, no qual cada um fala de sua vida e obra, declamando poesias. A essa altura, todos já viviam no Rio de Janeiro, para onde Hélio se mudou com a família, em 1952. Trabalha como redator no jornal O Globo e desenvolve o processo de análise didática para se tornar psicanalista, o que ocorre em 1963. “A psicanálise é, essencialmente, a ciência da liberdade humana”, escreveu em um de seus artigos sobre o tema. A forma como exerceu a profissão, até o fim da vida, revela o profundo humanismo de Hélio, pautado pelo compromisso com o Outro — com maiúscula, como costumava grafar. “Não basta interpretar o paciente: é preciso salvá-lo, convertê-lo à realidade, dar-lhe a profunda aceitação de que precisa para assumir a responsabilidade existencial de ser si-mesmo”. 

Preocupado com o caráter elitista da atividade, criou, nos anos 1970, com um grupo de colegas, a Clínica Social de Psicanálise, instituição pioneira de atendimento gratuito. Na década seguinte, durante o seminário A Psicanálise e sua Inserção no Modelo Capitalista, desencadeou, ao lado do colega Eduardo Mascarenhas, uma crise que valeu a ambos a expulsão da Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro, revertida somente por decisão judicial. A polêmica envolveu a presença, nos quadros da entidade, do médico Amílcar Lobo, identificado por presos políticos como assistente de torturas praticadas nos órgãos de repressão durante os Anos de Chumbo. No Rio, em paralelo ao trabalho no consultório que dividiu com outros analistas, na Avenida Nossa Senhora de Copacabana, frequentou os meios intelectuais e se tornou grande amigo do escritor e teatrólogo Nelson Rodrigues, apesar das diferenças ideológicas que separavam o assumidamente reacionário autor de Vestido de noiva do “socialista histórico, eventualmente histérico”, como Hélio se autodefinia.    

Às vésperas da decretação do AI-5, o médico se expunha ao máximo, transformado numa espécie de porta-voz oficial na luta contra a ditadura. Durante um protesto no centro do Rio, diante de uma falha no blindado que jogava jatos d’água para dispersar os manifestantes, gritou, para delírio da multidão: “Gente, o brucutu broxou!”. Na histórica passeata dos Cem Mil, em protesto pelo assassinato do estudante Edson Luís, que teve a presença massiva de artistas e intelectuais, Hélio foi um dos últimos a falar. O homem que vivia de escutar os outros concluiu, em tom apoteótico, a brilhante oratória: “O povo está na praça pública, logo está na sua casa. Este é um direito de propriedade que precisa ser respeitado”. A ousadia, somada aos contundentes artigos publicados no jornal Correio da Manhã, foi o pretexto para o seu encarceramento por dois meses em quartéis do Exército. Morto aos 64 anos, em 1988, no Rio de Janeiro, vítima de problemas cardíacos, deixou como legado literário o livro de poesia Minérios domados e a coletânea Lucidez embriagada, de artigos e ensaios organizada por sua neta, Antonia Pellegrino. “Nunca vi tanta mulher bonita”, escreveu Rubem Braga sobre o enterro do amigo. Hélio foi casado três vezes: com Maria Urbana Guimarães (mãe dos seus sete filhos), com a física Sarah de Castro Barbosa e com a escritora Lya Luft.

Herbert Carvalho Annima de Mattos
Herbert Carvalho Annima de Mattos