O cerceamento ao livre pensar tem raízes ancestrais no Brasil. Antes explícita e institucionalizada, porém, a censura atual do governo age nos bastidores de órgãos bancados por dinheiro federal: assumindo a forma de bloqueio a repasses e impedindo o uso de espaços públicos a quem não comunga de sua cartilha.
No apagar das luzes da ditadura do Estado Novo, em 1946, o jornalista Carlos Castelo Branco recebeu uma tarefa: dispensar o censor, que todas as noites lia previamente pilhas de laudas para decidir o que podia ou não ser publicado. Travou-se, então, o seguinte diálogo, conforme narra o jornalista e escritor Fernando Morais, em seu blog Nocaute:
– Ataliba, se você quiser ler o Estado de Minas, vai ter que comprar o jornal amanhã na banca. Ao que o funcionário respondeu, profeticamente:
– Já entendi, vou-me embora. Mas um dia eu volto.
Voltou, travestido de oficial das Forças Armadas, no dia 13 de dezembro de 1968, data do decreto do Ato Institucional n.º 5 (AI-5), que suspendeu as garantias e liberdades constitucionais, escancarando a ditatura militar implantada em 1964. No dia seguinte, para denunciar a censura imposta à redação, a primeira página do Jornal do Brasil trazia uma inédita “previsão do tempo”, que escapara ao desatento censor: “Tempo negro. Temperatura sufocante. O ar está irrespirável. O País está sendo varrido por fortes ventos”. Nos anos seguintes, poemas de Camões e receitas culinárias preencheriam o espaço das notícias censuradas nos jornais O Estado de S. Paulo e Jornal da Tarde, respectivamente.
O Brasil herdou de Portugal a sanha persecutória da Inquisição, que levava para a fogueira acusados de heresia, feitiçaria, bigamia, sodomia, apostasia e de escrever e publicar ideias proibidas
Na revista Veja, arvorezinhas (símbolo da Editora Abril) ocupavam o lugar das matérias, charges, ilustrações e fotos vetadas. A censura também proibiu, cortou e mutilou o trabalho de artistas na música, no cinema, no teatro, na literatura e nas artes plásticas. Apenas no governo do general Ernesto Geisel (1974 -1979), o ministro da Justiça, Armando Falcão, censurou mais de 500 livros, além de centenas de milhares de filmes, músicas, jingles e peças de teatro, revelando uma obsessão pelos temas vinculados à sexualidade. Os vetos eram determinados pela Divisão de Censura de Diversões Públicas, da Polícia Federal. “Toda uma geração cresceu tutelada, declarada incapaz de escolher livremente”, sintetizou o crítico teatral Yan Michalski, na coleção de fascículos Nosso Século (ed. Abril). Com as liberdades de pensamento, de expressão e de atividades artística e científica garantidas pela Constituição de 1988 – que, ainda por cima, proíbe categoricamente a censura, em seu art. 220 –, esperava-se que essa tutela estivesse definitivamente superada, junto ao totalitarismo que marcou indelevelmente o século 20.
Desde 2017, a sombra da censura volta a pairar sobre a liberdade de expressão, inicialmente sob a forma de um surto de intolerância à diversidade cultural. Em Porto Alegre (RS), a exposição Queermuseu – cartografias da diferença na arte brasileira, promovida pelo Grupo Santander, foi encerrada antes do previsto, porque grupos conservadores entenderam que algumas das obras expostas “desrespeitavam valores religiosos e morais”. Ecoando este brado, o então prefeito, Marcelo Crivella, vetou sua exibição no Museu de Arte do Rio (MAR), no Rio de Janeiro. Em São Paulo, a divulgação das fotos de uma criança (acompanhada pela mãe) tocando o pé do artista, Wagner Schwartz, que se apresentava nu na performance La Bête, resultou em ameaças e agressões físicas. Uma escalada que culminou com a proibição judicial da peça O evangelho segundo Jesus, Rainha do Céu, que seria apresentada no Sesc de Jundiaí (SP). A representação de Jesus pela atriz Renata Carvalho – uma mulher trans – foi entendida pelo juiz como “atentatória à dignidade da fé cristã”, em decisão posteriormente revogada pelo Tribunal de Justiça (TJ).
Do Sul e do Sudeste, em 2020 a censura se espalhou em metástase pelo Norte e pelo Nordeste, agora pela via policial. Em Belém (PA), a Polícia Federal (PF) instaurou inquérito contra autores de cartazes com sátiras ao presidente, Jair Bolsonaro, que anunciavam um festival punk, o Facada Fest. Em Pernambuco, durante o último carnaval, a Polícia Militar proibiu a performance da música Banditismo por uma questão de classe, de Chico Science & Nação Zumbi, por causa deste trecho da letra: “Em cada morro, uma história diferente/que a polícia mata gente inocente”. Embora efêmero, o ato mais anacrônico e absurdo ocorreu em Roraima, por meio de uma lista assinada pelo secretário da Educação, Suamy Lacerda, com 43 obras a serem recolhidas das bibliotecas públicas locais, de autores como Machado de Assis, Mário de Andrade e Euclides da Cunha. Prontas reações do Ministério Público e da Academia Brasileira de Letras (ABL) apressaram o governo estadual a desistir de ressuscitar, em pleno século 21, uma prática inaugurada pelo Concílio de Trento (1545-1563), o Index Librorum Prohibitorum, destinado a banir obras heréticas dos países católicos.
O Brasil herdou de Portugal a sanha persecutória da Inquisição, que levava para a fogueira acusados de heresia, feitiçaria, bigamia, sodomia, apostasia e de escrever e publicar ideias proibidas. O Estado monárquico português entregou à Igreja o controle absoluto de tudo o que fosse impresso. O fogo eliminava os pecadores e seus escritos, as obras eram mutiladas – até a epopeia de Os Lusíadas teve partes alteradas. Três séculos de autos de fé na metrópole não conseguiram impedir, porém, as proliferações do judaísmo, do protestantismo ou das ideias ilustradas, que chegavam até a colônia – proibida de ter gráficas – por meio de contrabando. A posse de livros que continham “os abomináveis princípios franceses”, enunciados por autores como Montesquieu, Rousseau ou Voltaire, foi usada como evidência de culpa na devassa contra os inconfidentes de Minas Gerais.
Consta dos autos que Tiradentes possuía, em francês, a Coleção das Leis da República dos Estados Unidos da América. A imprensa chegou ao Brasil apenas em 1808, por meio de uma gráfica encaixotada no porão de um dos navios que trouxeram a família real. Como os regimes monárquicos absolutistas não podiam ser postos em discussão, e consideravam crime pensar diferente, D. João VI estabeleceu que a Imprensa Régia seria administrada por uma junta encarregada de “fiscalizar que nada se imprimisse contra a religião, o governo e os bons costumes”. Esta última justificativa estaria presente um século e meio depois no Decreto-Lei 1.077, de janeiro de 1970: “Art. 1: não serão toleradas as publicações e exteriorizações contrárias à moral e aos bons costumes quaisquer que sejam os meios de comunicação”. Ao longo da história, o lobo da censura perde o pelo, mas não o vício. Em 28 de agosto de 1821, foi proclamada a liberdade de imprensa no Brasil, mas esse mesmo decreto de D. Pedro I seria um dos assuntos censurados pela ditadura militar.
Nosso primeiro imperador também conviveu às turras com esta liberdade, assegurada pela Constituição de 1824, outorgada por ele mesmo. A série Falas do trono, de 1829 e 1830, reclamava à Assembleia Legislativa medidas especiais contra publicações que acabariam por levá-lo à abdicação, em 7 de abril de 1831, data consagrada entre nós como o Dia do Jornalista. Comportamento diverso teve D. Pedro II, sendo que seus aproximadamente 60 anos de reinado constituíram o maior período de funcionamento ininterrupto das instituições liberais no País. A imprensa era livre tanto para pregar o ideal republicano quanto para detratar o imperador. “Diplomatas europeus e outros observadores estranhavam a liberdade dos jornais brasileiros”, conta o historiador José Murilo de Carvalho. Mesmo diante de ataques ilustrados com caricaturas que o ridicularizavam perante o povo, o monarca se colocava contra a censura: “Imprensa se combate com imprensa”, dizia.
O Estado republicano, ao contrário, revelou-se censor por excelência desde os primeiros minutos de existência. Já em dezembro de 1889, o Governo Provisório, chefiado por Deodoro da Fonseca, decreta censura, temeroso da reação monárquica. O decreto trazia a assinatura de liberais como Rui Barbosa, Quintino Bocaiúva e Aristides Lobo – os dois últimos, jornalistas. Em pleno século 20 (era da informação e da imagem multiplicada), a cultura se viu obrigada a ser novamente sussurrada, em grande parte pela influência da Igreja. Em 1915, com base nos preceitos católicos, o frei franciscano Pedro Sinzig, alemão naturalizado brasileiro, elaborou o Através dos romances – um guia para as consciências, classificando os livros em três categorias: “recomendados”, “recomendados com ressalvas” e “perigosos” – veneno para a alma dos leitores. Outro padre, este pernambucano, Serafim Leite, reclamou punição para Gilberto Freyre, autor de Casa-grande & senzala, classificado como “o pornógrafo do Recife”.
A revista Fronteira, editada por congregados marianos, dizia que livro e autor deveriam ser submetidos a um “purificador auto de fé nacionalista e cristão”, por terem “transformado a casa-grande num bordel”. No cinema, não foi diferente. Em 1907, Francisco Serrador montou em São Paulo o pioneiro Bijou Palace. Numa dada ocasião, um padre salesiano quis vetar um filme; o empresário disse que bastava cortar o trecho em questão. Estava inaugurada a censura aos filmes por pressão da Igreja, que se estenderia até 1985, quando o presidente José Sarney proibiu a exibição do filme Je vous salue, Marie, de Jean-Luc Godard. A censura oficial praticada pelo Estado tem início na década de 1920, com a instalação, em São Paulo, da Delegacia de Ordem Pública e Social, o famigerado Dops, órgão também encarregado da repressão política, extinto apenas em 1983.
A Revolução de 1930 mantém a legislação restritiva da liberdade de pensamento instituída na Primeira República. O escritor Monteiro Lobato, perseguido pelo governo de Artur Bernardes por causa da defesa que fazia do voto secreto, vai parar na cadeia por ordens do ditador Getúlio Vargas, na década de 1940. Um de seus livros infantojuvenis, Peter Pan, teve todos os exemplares recolhidos e destruídos por ordem do Tribunal de Segurança Nacional. A causa foi um trecho no qual Dona Benta apresenta a Pedrinho a cobrança de impostos como “um sistema para arrancar dinheiro do povo e encher a barriga dos parasitas”. Ainda durante o Estado Novo, a obra Tarzan, o invencível foi considerado “doutrinamento bolchevista para crianças”.
Nos Anos de Chumbo, quando o compositor Chico Buarque de Holanda precisou se transfomar no fictício “Julinho da Adelaide” para conseguir liberar suas músicas, foram tantos os casos bizarros, que foi possível compor o Febeapá – o festival de besteiras que assola o País, livro publicado pelo humorista Stanislaw Ponte Preta. Vexame planetário foi a proibição, na década de 1970, da apresentação comemorativa dos 200 anos do Ballet Bolshoi. Como “resumo da ópera”, o Brasil viveu sempre sob o signo da censura, e a liberdade de expressão continua em risco, até porque é da natureza da arte a irreverência e a criatividade, sem qualquer tipo de amarra. As manifestações culturais são direitos fundamentais que prevalecem sobre outros valores constitucionais, de acordo com jurisprudência firmada pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Casos de dano, crime ou ilícito civil devem ser apurados, e o artista, responsabilizado posteriormente, nunca com censura prévia.
Esta é uma versão de reportagem originalmente publicada na revista PB #459. A edição completa está disponível na banca digital Go Read.