Romântico e abolicionista

06 de julho de 2021

Antônio Frederico de Castro Alves, que viveu apenas 24 anos, morreu há um século e meio, no dia 6 de julho de 1871. Sua obra, porém, com duas centenas de poemas e uma peça de teatro, foi decisiva para o fim da escravidão no Brasil. E segue atual, no País que mantém intactas as estruturas do racismo por meio de uma cristalização da desigualdade social.

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Castro Alves, poeta romântico do século 19, conhecido como o “Poeta dos Escravos”, graças às suas poesias de cunho abolicionista, nasceu no Estado da Bahia, em 1847, e morreu em Salvador, no ano de 1871. Natural de Vila de Curralinho, hoje cidade que leva seu nome, era filho do médico Antônio José Alves e da esposa, Clélia Brasília da Silva Castro. O avô materno, coronel José Antônio da Silva Castro, foi grande senhor de terras e de escravos. Quando sua mãe morreu prematuramente de tuberculose – doença que logo se manifestaria no poeta e seria também a causa de sua morte –, o pai se casou novamente com uma viúva muito rica, cujo primeiro marido fora proprietário de navios negreiros.

Desta forma, e paradoxalmente, a segurança material que Castro Alves desfrutou na infância e na adolescência estava alicerçada no tráfico e no trabalho escravo, o que não era de estranhar em Salvador, onde os Alves fixaram residência em 1854. Até quatro anos antes, quando a Lei Eusébio de Queiroz proibiu o tráfico negreiro, a cidade viveu na dependência deste comércio transatlântico – que o poeta desnudará em sua obra mais famosa, O navio negreiro.

A vocação precoce (e apaixonada) de Castro Alves pela poesia se manifesta no Ginásio Baiano, onde foi colega de Rui Barbosa e recitou seus primeiros versos em público, em uma festa escolar. A canção do africano, sua primeira obra abolicionista, surge publicada em um jornal acadêmico do Recife, cidade que dividirá com São Paulo as honras de palco privilegiado para uma poesia que, de acordo com a própria definição do poeta, deveria ser capaz de chegar “nas nuvens do chorar da humanidade” e de ser “o arauto da liberdade e o brado ardente contra os usurpadores dos direitos do povo”.

Na década de 1860, enquanto Rio de Janeiro e Salvador comandavam a política e a economia nacionais, Recife e São Paulo recebiam, por meio de suas veneráveis academias de Direito, os filhos das famílias mais abastadas. Era comum, inclusive, que começassem o curso jurídico em uma das escolas e o continuassem na outra, como ocorreu com Castro Alves, Rui Barbosa e Joaquim Nabuco, os três principais tribunos da então incipiente luta pela emancipação dos escravos.

Entre 1862 e 1867, o escritor participa das vidas literária e estudantil do Recife. Firma-se como poeta romântico, que compunha para ser recitado diante da multidão, em praça pública, buscando ir direto à alma do ouvinte e comovê-lo. No poema “O século”, que tornou seu nome conhecido, ele conclama os estudantes: “Toda noite – tem auroras, Raios – toda a escuridão. Moços, creiamos, não tarda/A aurora da redenção”.

De acordo com o biógrafo Alberto da Costa e Silva, àquela altura, ele já fizera suas opções políticas. “Era um republicano que não aceitava a menor das restrições às liberdades públicas, um liberal fortemente impressionado pelas ideias socialistas que chegavam da Europa. Acreditava nas revoluções para corrigir as injustiças e na poesia como arma da transformação.”        

Além da poesia e das lutas sociais, Castro Alves também foi um apaixonado pelas mulheres, em especial por uma bem mais velha do que ele, a atriz portuguesa Eugênia Câmara, grande amor de sua vida. Para que ela interpretasse o principal papel feminino, o poeta escreveu a peça Gonzaga, levando para o cenário da Inconfidência Mineira a saga do abolicionismo que começava a tomar corpo no Império de D. Pedro II. O texto mereceu elogios dos dois maiores expoentes da literatura brasileira no século 19: José de Alencar e Machado de Assis.  

Após breves passagens por Salvador e Rio de Janeiro, em 1868 o poeta fixa residência em São Paulo, onde compõe os principais poemas de cunho político e os versos líricos que vão integrar o livro Espumas flutuantes, único lançado ainda durante a sua vida. Na Faculdade de Direito paulista, seu busto figura ao lado de Álvares de Azevedo e Fagundes Varela, compondo o trio dos poetas românticos das Arcadas do Largo de São Francisco.

Embora os versos abolicionistas de Castro Alves já fossem sobejamente conhecidos de Norte a Sul do País, pois eram decorados e declamados em teatros e tavernas por audiências entusiasmadas, só em 1883 que foram reunidos no livro Os escravos, obra que, ao lado de O abolicionismo, de Joaquim Nabuco, ganharia o coração e as mentes dos brasileiros como pilares do movimento de libertação. A“Tragédia no mar”, que depois tomaria o nome de O navio negreiro, nos emociona até hoje como metáfora de um Brasil escravocrata pleno de horrores.

A 6 de julho de 1881, dez anos após sua morte, o Largo do Teatro em Salvador se torna a Praça Castro Alves, que, hoje, ostenta a estátua do poeta sobre um pedestal de 11 metros, em cuja base a escultura de um casal de escravos dá guarida ao mausoléu com seus restos mortais.

Cento e cinquenta anos depois, a atualidade de sua obra nos surpreende com temas que parecem retirados do noticiário recente. O incêndio florestal que descreve no poema “A cachoeira de Paulo Afonso” evoca cenas do Pantanal e da Amazônia em chamas: “A queimada! A queimada é uma fornalha! A irara – pula; o cascavel – chocalha… Raiva, espuma o tapir! … E às vezes sobre o cume de um rochedo/A corça e o tigre – náufragos do medo – Vão trêmulos se unir”.

Para os que defendem a taxação de livros, de consumo supostamente elitista, ele também deixou um recado: “Oh! Bendito o que semeia/Livros… livros à mão cheia… E manda o povo pensar! O livro caindo n’alma/É germe – que faz a palma/ É chuva – que faz o mar”.

Finalmente, diante do extermínio de jovens negros nas favelas e periferias, Castro Alves alerta para as consequências: “Cai, orvalho do sangue do escravo/Cai, orvalho, na face do algoz/Cresce, cresce seara vermelha/Cresce, cresce vingança feroz…”.

Para saber mais:
Perfis brasileiros – Castro Alves, por Alberto da Costa e Silva (Companhia das Letras).

Herbert Carvalho Paula Seco
Herbert Carvalho Paula Seco
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