A unidade político-cultural do Brasil é, por vezes, associada ao fato de existir apenas uma língua oficial, que toda a população fala no território de 8,5 milhões de quilômetros quadrados. Contudo, nem sempre foi assim. Na época do Descobrimento, estima-se que houvesse mais de mil idiomas em Pindorama, nome indígena das terras encontradas por Pedro Álvares Cabral. Desse total, aproximadamente 85% foram extintos de lá para cá, restando apenas cerca de 150 – muitos dos quais ameaçados de desaparecer também, pois contam com escassos dois, três ou meia dúzia de falantes.
A extinção de línguas não é um fenômeno exclusivo do Brasil. Ele ocorre no mundo todo. “Antes da expansão colonial europeia, pode-se estimar que havia cerca de 15.000 idiomas falados no mundo”, diz o linguista Hein van der Voort, do Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG). “Hoje existe menos da metade disso, apenas algo em torno de 6.500. No Brasil, estimo que poderemos perder dez línguas até 2030.”
Preocupada com isso, a Organização das Nações Unidas (ONU) para Educação, Cultura e Ciência (Unesco), declarou 2019 como Ano Internacional das Línguas Indígenas (International Year of Indigenous languages – IYIL2019). Essa decisão teve a ver com o fato de que, em média, duas línguas desaparecem do mundo a cada mês, o que significa que no século 21, metade das línguas faladas hoje no planeta estarão extintas.
No Brasil, o MPEG também vem trabalhando para reduzir as perdas. Para isso, criou o Centro de Culturas de Línguas Indígenas da Amazônia, que registra e preserva aquelas ameaçadas de desaparecer. Com câmeras e gravadores, os pesquisadores vêm ouvindo e estudando as comunidades indígenas da região, trabalho que resulta num acervo com as falas de vários povos, cujos idiomas já se encontram em risco de extinção. Além disso, os próprios nativos aprendem a utilizar as novas tecnologias disponíveis, para documentar sua cultura, em treinamentos com especialistas ou em oficinas realizadas no Museu.
Um dos projetos em andamento é a Enciclopédia Digital da Língua dos Gavião e Suruí de Rondônia com Foco na Cultura Tradicional. O objetivo é documentar, por meio de gravações, a língua e a cultura tradicionais dos dois povos. Até agora, já foram documentados 120 tópicos [palavras, expressões e frases], principalmente em vídeo, inclusive um de divulgação do projeto falado em suruí e legendado em português.
“Essa luta é para não perder a diversidade de maneiras de organizar o mundo em forma de linguagem, nem o conhecimento específico ambiental”, explica Voort. “Além disso, serve também para não perder os rastros das migrações humanas de milhares de anos e as obras de arte e criatividade insubstituíveis. As línguas só são extintas uma vez, depois nunca mais voltam. Em suma, esse trabalho pode ajudar as novas gerações a não perderem os patrimônios cultural, histórico e artístico de valores pessoal e coletivo, emocional e jurídico.”
Um exemplo dessa luta é o trabalho de resgate dos idiomas e de documentação linguístico-cultural que a também linguista do MPEG, Ana Vilacy, vem desenvolvendo há alguns anos com dois grupos indígenas de Rondônia, os puruborá e os sakurabiat. “São dois casos bastante extremos de perda da língua, ocasionada por diversos fatores”, conta a pesquisadora. “Em 2001, quando entrei em contato com os primeiros, eles não haviam falado a língua por cerca de 30 anos, e existiam somente umas cinco ou seis pessoas, todas idosas, que ainda tinham algumas lembranças .”
Os sakurabiat, cuja língua Ana estuda desde a metade da década de 1990, são um grupo muito reduzido, de menos de 100 pessoas. “Naquela época havia cerca de 25 falantes da língua tradicional do grupo”, lembra. “Hoje tem no máximo 13, porque há mais de três décadas não ocorre a transmissão para as novas gerações e houve várias mortes (naturais e em decorrência de assassinatos) de idosos e outros falantes adultos.”
Segundo Ana, nos dois grupos, nos últimos anos têm ocorrido ações lideradas pelos próprios indígenas, na tentativa de recuperar, reaprender e aprender algo da língua tradicional. “Essas experiências estão se concentram especialmente no contexto do ensino escolar, e combinam os resgates cultural e linguístico”, explica. “O resultado dessas iniciativas pode chegar à revitalização dessas línguas? De alguma forma sim. O que exatamente será aprendido é difícil de prever.”
Nem sempre a extinção de uma língua está ligada ao desaparecimento dos seus falantes, no entanto. Há outros motivos, como discriminação de um povo por causa de seu idioma, que então o deixa de falar. Ou uma razão mais drástica, como a proibição pura simples do seu uso. “Também pode ocorrer de uma outra língua oferecer melhores oportunidades sociais e econômicas”, diz Voort.
Por esses ou outros motivos, há países no mundo que perderam todas as suas línguas nativas, como é o caso do Uruguai. Casos mais raros ainda são os dos idiomas extintos, que foram revitalizados. O ivrit (ou hebraico), de Israel, é um bom exemplo. Com a destruição de Jerusalém pelos babilônios em 587 a.C., o hebraico clássico foi substituído no uso diário pelo aramaico. Ele só renasceu como língua falada durante o final do século 19 e começo do século 20 como o hebraico moderno,
Seja como for, não é um trabalho fácil preservar línguas. O também linguista no MPEG, Denny Moore, que coordena o projeto de criar uma enciclopédia digital das línguas dos gaviões e dos suruís, tem uma lista deles. “No caso desses dois povos, a fraca qualidade técnica das ortografias dificultou a transcrição das gravações”, diz. “Textos escritos adequadamente ajudam na manutenção da língua. A maior prioridade dos gaviões e dos suruís em relação à língua é corrigir e padronizar a escrita.”
Entre os problemas que os pesquisadores enfrentam, há ainda o tempo necessário para treinar e orientar o trabalho indígena de documentação e para processar, catalogar e depositar permanentemente as gravações e traduções e devolvê-las às comunidades, para alcançar os jovens e fazer com que se interessem pela cultura e língua tradicionais. “Não se pode esquecer da oposição missionária à religião indígena, que era vista como obra do diabo”, acrescenta Moore. “Muita cultura verbal é ligada à pajelança e às festas tradicionais. Quando elas são proibidas, a língua fica enfraquecida.”