SP 470: a cidade que nunca dorme e sempre se reinventa

24 de janeiro de 2024

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Em 1867, a inauguração de uma ferrovia provocou verdadeira revolução no comércio paulistano. Até então, os poucos comerciantes locais ofereciam quase nada em termos de diversidade de produtos, em razão do isolamento em que vivia a cidade. A partir daquele ano, tudo mudou — e para melhor. Pelos trilhos da São Paulo Railway, chegava, a todo momento, uma diversidade de novas mercadorias, comerciantes ávidos em fazer negócios, produtos importados da Europa e dos Estados Unidos e uma novidade: grandes placas de vidro, que permitiram a construção das primeiras vitrines. E, com elas, a melhoria da infraestrutura urbana, além de expansão da energia elétrica. Assim, a iluminação das ruas elevou  o padrão estético das lojas, que se tornaram muito mais iluminadas, atraentes e diversificadas. Por consequência, a clientela começou a crescer em ritmo acelerado, estimulando, cada vez mais, a circulação de dinheiro.

A região do Triângulo — perímetro formado pelas ruas São Bento, Quinze de Novembro e Direita, no Centro —, onde se concentrava boa parte do comércio e da vida urbana, se transformava. No esteio dessas mudanças, a ex-vila de Piratininga crescia e se desenvolvia. “A história das mudanças nos hábitos de consumo e no comércio do varejo é, em vários sentidos, a história da modernização e do urbanismo”, explica o historiador Nestor Goulart Reis Filho na introdução do livro São Paulo: um novo olhar sobre a história (editora Via das Artes, 2012). No texto, o professor emérito na Faculdade de Arquitetura da Universidade de São Paulo (USP) explica que, por um lado, a modernização tecnológica daquele período induziu a transformações na arquitetura, tanto nas lojas como no interior das residências. Do outro, acelerou a dinâmica socioeconômica mediante a inclusão de novas camadas sociais como consumidoras, novas formas de trabalho e negócios.

Ao completar 470 anos, neste 25 de janeiro, as pujanças do comércio e da cidade continuam atreladas ao desenvolvimento da metrópole, cujos horizontes continuam a ser ampliados, em todos os setores da economia e da sociedade. Atualmente, segundo levantamento da Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de São Paulo (FecomercioSP), só o Comércio responde por mais de 864 mil empregos diretos. Há uma projeção de o varejo paulistano ter faturado R$ 376 bilhões em 2023, 7% a mais do que o registrado no ano anterior, de acordo com dados da Pesquisa Conjuntural do Comércio Varejista (PCCV), da Entidade. A cada R$ 100 vendidos no Comércio paulista, R$ 30 estão na capital — e a cada segundo, o setor paulistano fatura R$ 12 mil.

Quem circula por regiões como a Rua 25 de Março, além de dezenas de shopping centers espalhados pelos bairros, ruas especializadas e grandes atacadistas, tem motivos para se impressionar com o movimento de vendedores e compradores e com a circulação de mercadorias: a cidade concentra 30,9% de todo o comércio realizado no Estado e cerca de 11,6% de todo o País, ainda segundo estimativa da Federação.

Em 2021, o Produto Interno Bruto (PIB) registrado no município foi de R$ 828,9 bilhões. O valor equivale a 30,5% do PIB estadual no mesmo período (R$ 2,7 trilhões) e 9,2% do PIB nacional (R$ 9 trilhões). “A cidade abriga 6% da população brasileira e responde por mais de 9% do PIB nacional. Isso mostra que a nossa produtividade é maior em comparação à média nacional”, destaca Fabio Pina, assessor econômico da FecomercioSP. Segundo ele, mesmo com todos os problemas e desafios para fomentar a qualidade de vida da população, em quase cinco séculos de história, a grandeza construída elevou São Paulo ao mesmo patamar de outras metrópoles mundiais, como Londres ou Nova York. “Nós invejamos muito essas cidades pelo que elas oferecem, mas elas também invejam nossas qualidades, que não são poucas, como o nosso clima, as nossas opções de lazer e a nossa gastronomia de excelente qualidade”, enumera Pina.

Os desafios urbanos, explica o assessor, são conhecidos e estão concentrados nas seguintes áreas: Mobilidade, Segurança, Zeladoria e Tecnologia. “A questão da desigualdade também é um grave problema, mas se trata de uma adversidade do País como um todo, que acaba se refletindo aqui em grande proporção”, explica Pina.

A opinião é compartilhada com o arquiteto Carlos Leite, diretor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie. “São Paulo é o principal centro econômico, financeiro, cultural e político do Brasil. A cidade representa, de certa maneira, toda a diversidade que temos em um país continental, com tudo de bom e de ruim”, afirma Leite, destacando que, com quase 12 milhões de habitantes, a capital paulista integra o seleto grupo das megacidades mundiais — classificadas pela ONU como aquelas que têm mais de 10 milhões de habitantes. “Pela diversidade, pela riqueza e pelos enormes desafios que temos de superar, podemos dizer que é um microcosmo do Brasil”, completa o arquiteto.

A pequena vila chamada São Paulo

Em relação aos desafios históricos, o diretor do Mackenzie explica que a cidade aprendeu a se reinventar ao longo das décadas. O principal desses problemas foi lidar com a forte e rápida urbanização, que começou lá trás, quando deixou de ser uma vila de padres isolada no planalto. Para se ter uma ideia, em 1890, havia 64.934 habitantes no município. Em apenas três anos, em 1893, a população dobrou, saltando para 130.755 moradores. Grande parte dessa expansão demográfica se deve ao processo migratório, que se acelerava rapidamente após a abolição da escravatura. Em 1935, o número de habitantes superava o primeiro milhão. Dados mais recentes do Censo 2022 do IBGE apontam 11,4 milhões de paulistanos vivendo — ou sobrevivendo — na metrópole.

Ao longo de 470 anos, São Paulo apresentou diversas características, muitas delas praticamente desconhecidas e inusitadas. Nos primeiros tempos, a cidade era toda murada, como nas vilas medievais, para proteção da Vila de Piratininga. São Paulo também já fabricou o próprio dinheiro e tinha uma Casa da Moeda (no século 17), período em que começou a ser explorado ouro na região do Jaraguá. Aliás, a extração do minério no Brasil começou em São Paulo, e não em Minas Gerais, como acreditam muitas pessoas. No século 19, na região do atual bairro da Liberdade, havia espaços de tortura onde criminosos e escravos fugitivos eram executados como punição mais severa. Durante séculos, mulheres acusadas de bruxarias eram queimadas vivas em grandes fogueiras acesas no Centro Velho, em verdadeiros rituais medievais autorizados pelo Poder Público, fortemente influenciado pela mão pesada da Inquisição católica.

Mesmo localizada a muitos quilômetros do litoral, São Paulo já teve um porto para chamar de seu. O Porto Geral — daí o nome da atual Ladeira Porto Geral, que dá acesso do Centro Histórico à Rua 25 de Março — servia para escoar mercadorias pelo Rio Tamanduateí e fazer toda a comunicação da vila com o interior do Estado, à época chamado de “Boca do Sertão”, e Santos.

“Em São Paulo, até o passado surpreende. Tudo é parte de uma história em que o protagonista é o cidadão”, diz o jornalista e historiador Oscar Pilagallo, autor de vários livros, como História da imprensa paulista (Editora Três Estrelas, 2012). “Para fazer um paralelo, enquanto no Rio de Janeiro do século 19, a imprensa nascia associada ao Império, em São Paulo, ela vinha à luz, sem ajuda oficial, por iniciativa de intelectuais críticos ao governo da vez”, ressalta Pilagallo, sobre os fatos e episódios que conferem sabor à história paulistana.

Segundo o jornalista, as transformações na metrópole ao longo dos 470 anos ocorreram sem planejamento, para o mal e para o bem. “Por um lado, a cidade é caótica. Por outro, criativa — e consegue resolver os problemas criados pelo próprio crescimento desordenado”, afirma o autor, que elege o transporte público um dos principais desafios da atualidade. “Moradores da periferia gastam, por dia, o equivalente a meia jornada de trabalho, apenas para a locomoção. Um investimento pesado na área promoveria o revigoramento da cidade, com reflexos em outras áreas prioritárias, como emprego, saúde e segurança.”

A desigualdade social se reflete na desigualdade urbana. Exemplo disso é a concentração de áreas verdes em regiões de maior poder aquisitivo. “Deveríamos ter alguns Ibirapueras e centenas de pequenos parques espalhados por toda a cidade”, diz Leite, destacando a falta de preparo urbanístico para a convivência com os eventos climáticos extremos. “Os calores extremos que vivenciamos agora provocam impacto ainda maior às periferias, onde as casas têm pouca ventilação e conforto térmico”, explica o diretor do Mackenzie.

Outra preocupação é com o Centro Histórico, que enfrenta problemas graves, como a Cracolândia, o déficit de moradores e o esvaziamento gradual do comércio, além da insegurança nas ruas. No caso do comércio, são necessários novos conceitos que atraiam o comprador à antiga “cidade”. Para isso, não basta mais apenas oferecer produtos que estejam à disposição na internet. É preciso criar diferenciais e novas experiências de compra. O comércio vigoroso provoca impactos positivos a outras áreas, como Segurança — mais pessoas circulando nas ruas —, Infraestrutura e Mercado de Trabalho, criando um círculo virtuoso para toda a metrópole.

“O consumidor quer conhecer os produtos, receber um atendimento que ele não encontra na internet”, afirma Pina, da FecomercioSP, que também destaca o potencial dos clusters da cidade, uma peculiaridade paulistana. “Apenas em São Paulo há esse potencial de oferecer, em uma mesma região, produtos muitos específicos e em escala. E essa é uma característica própria do Centro”, explica o assessor da FecomercioSP.

Indiscutivelmente, as nuances históricas de São Paulo a tornam o que a escritora Lygia Fagundes da Silva Telles, um dia definiu: “São Paulo não é uma cidade, é um mundo.”

Marcus Lopes Débora Faria
Marcus Lopes Débora Faria