Há 90 anos, o município de Palmeira dos Índios, em Alagoas, perdia o seu prefeito, que renunciou ao cargo. Ao mesmo tempo, a literatura brasileira ganhava um de seus maiores representantes: Graciliano Ramos. Autor de obras como Vidas Secas, São Bernardo e Caetés, o escritor alagoano deixou seu legado também na administração pública, como prefeito da cidade onde passou parte da infância e a juventude, no agreste alagoano.
Apesar de relativamente curta – entre 1928 e 1930 –, a carreira administrativa do prefeito Graciliano Ramos ficou conhecida em Alagoas e no resto do País como exemplo de honestidade, respeito e zelo pelo patrimônio público e pela população.
“Em apenas dois anos, Graciliano conseguiu avançar o município em uma velocidade impensável naquele contexto de República Velha e de um município pequeno do interior do Nordeste”, diz o escritor Dênis de Moraes, autor de O Velho Graça: uma biografia de Graciliano Ramos (Boitempo Editorial). “Além de um novo Código de Postura para estabelecer novos parâmetros para a conservação da cidade, ele revisou todo o sistema tributário e fechou as brechas para a sonegação. Isto é, colocou o serviço público a bem do público”, completa o autor.
Segundo o livro de Moraes e Mestre Graciliano: confirmação humana de uma obra, de Clara Ramos, filha do escritor, ele foi candidato único apoiado pelas oligarquias locais que dominavam o cenário político. Com 433 votos, foi eleito prefeito de Palmeira dos Índios, pelo Partido Democrata, em 7 de outubro de 1927, e tomou posse em janeiro do ano seguinte. Comerciante bem-sucedido em Palmeira dos Índios, onde a família Ramos possuía uma loja de tecidos chamada Sincera, Graciliano, que beirava os 35 anos, era conhecido e respeitado pela sua cultura, honestidade, convívio sociável e retidão nos negócios. A seu favor também tinha uma passagem anterior exitosa pela Junta de Ensino, espécie de secretaria municipal da educação do município. Além disso, era amigo da família Cavalcanti, que dominava a política em Palmeira dos Índios há mais de 40 anos.
A escolha do candidato era uma estratégia dos Cavalcanti para apaziguar os ânimos na cidade. Palmeira dos Índios vivia um período conturbado, algo muito comum naqueles rincões do País: o prefeito anterior, Lauro de Almeida Lima, fora assassinado a tiros em 1926, após desentender-se com o fiscal de tributos. Este, por sua vez, foi fuzilado em seguida pelo delegado de polícia local. O banho de sangue deixou o povo traumatizado.
Apesar de ser considerado o nome certo pelos caciques políticos, que buscavam alguém com o seu perfil ameno para concorrer à prefeitura e acalmar os ânimos da população, Graciliano relutou muito para aceitar a missão, já que não pensava em seguir carreira política. “Só se Palmeira estiver com urucubaca”, afirmou, ao ser chamado para uma reunião pela família Cavalcanti para tratar da candidatura. Só aceitou após os adversários políticos espalharem nas ruas que ele estava com medo de assumir a missão na administração pública, mexendo com os brios do alagoano sereno, mas de temperamento forte. “Apareça o filho da puta que disse que eu não sabia montar em burro bravo”, esbravejou Graciliano.
Candidato único, chegou ao cargo nos moldes das eleições da República Velha. “Fui eleito naquele velho sistema de atas falsas, os defuntos votando”, declararia o velho Graça tempos depois. Ao tomar posse, porém, sua administração nada tinha a ver com o velho sistema político: moralizou e reorganizou toda a estrutura da prefeitura, demitiu funcionários fantasmas, construiu escolas, melhorou o atendimento à saúde, abriu estradas ligando a cidade aos distritos, cobrou impostos atrasados e promoveu rigoroso controle fiscal das finanças municipais. Tudo isso tornou o jovem prefeito um precursor da futura Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), que só se tornaria realidade nacional 72 anos depois, em 2000.
Em agosto de 1928, Graciliano criou um Código de Posturas com 82 artigos e provocou uma revolução sanitária na cidade. O Código vetava, sob pena de multa, lixo nas ruas, exposição e venda de mercadorias nas feiras e mercados sem os devidos cuidados sanitários, animais soltos nas ruas, terrenos descuidados e com mato, urinar em espaço público, além de uma série de outras regras de convívio social. O rigor era tão grande que o prefeito chegou a multar o próprio pai, Sebastião Ramos, que costumava deixar cabras soltas na rua, como praticamente toda a população fazia com porcos, cavalos, vacas, galinhas e cabras. “Prefeito não tem pai. Eu pago a sua multa, mas o senhor não vai poder mais fazer isso”, disse ao pai, após lavrar a multa.
“É possível crer, a julgar pelos seus relatórios, que era um governante honesto, trabalhador, que encarava com o devido respeito, com postura republicana e com sinceridade de propósitos a tarefa de colocar a máquina pública local para funcionar em benefício da comunidade”, diz o economista Valdemir Pires, professor de Finanças Públicas e Orçamento do Departamento de Administração Pública da Universidade Estadual Paulista (Unesp), no campus de Araraquara. Os relatórios citados pelo economista foram escritos pelo prefeito como forma de prestar contas ao governo de Alagoas.
Mais do que balanços burocráticos de gestão pública, os relatórios de Graciliano Ramos ao governador de Alagoas, Álvaro Paes, são consideradas pérolas literárias. No primeiro, escrito em 1929, explicava em textos literários a situação da administração, no ano anterior, nas mais diversas áreas. “No cemitério enterrei 189$000 [189 mil réis] – pagamento ao coveiro e conservação”, registrou o prefeito. Em outro trecho, justificava a criação do novo Código de Posturas: “Constava a existência de um código municipal, coisa inatingível e obscura. Procurei, rebusquei, esquadrinhei, estive quase a recorrer ao espiritismo, convenci-me de que o código era uma espécie de lobisomem.”
No primeiro ano de gestão (1928), o balanço do caixa da prefeitura apontava um saldo positivo de 11 contos de réis, cerca de dez vezes superior ao saldo que Graciliano herdou do seu antecessor. E o Velho Graça recorreu à ironia para justificar os números positivos numa época em que o equilíbrio fiscal não era uma preocupação comum dos governantes. “Não favoreci ninguém. Devo ter cometido numerosos disparates. Todos os meus erros, porém, foram da inteligência, que é fraca”, registrou no balanço municipal, revelando também o preço da austeridade e a resistência à sua gestão. “Perdi vários amigos, ou indivíduos que possam ter semelhante nome. Não me fizeram falta. Há descontentamento. Se a minha estada na prefeitura dependesse de um plebiscito, talvez eu não obtivesse dez votos”, finalizou o relatório, em 10 de janeiro de 1929.
No segundo relatório ao governador, de 1930, o prefeito levanta suspeitas em contratos firmados pelos seus antecessores ao citar o gasto com iluminação pública. “A Prefeitura foi intrujada quando, em 1920, aqui se firmou um contrato para fornecimento de luz. Apesar de ser um negócio referente à claridade, julgo que assinaram aquilo às escuras. É um blefe. Pagamos até a luz que a lua nos dá”. O prefeito também justifica ao governador o adiamento da construção de um novo cemitério: “Os trabalhos a que me aventurei, necessários aos vivos, não me permitiram a execução de uma obra, embora útil, prorrogável. Os mortos esperarão mais algum tempo. São os munícipes que não reclamam”, escreveu o prefeito na segunda e última prestação de contas.
A austeridade custou ao prefeito muita resistência entre os opositores, embates no combate aos privilégios e cansaço com o peso do cargo ao qual nunca fora muito afeito, além de dificuldades financeiras pessoais. A loja Sincera enfrentava dificuldades econômicas e o salário simbólico como prefeito não pagava as contas pessoais da família. Por isso, aceitou de imediato o convite do governador Álvaro Paes, que tornou-se seu admirador, para dirigir a Imprensa Oficial do Estado. Assim, Graciliano Ramos renunciou à prefeitura de Palmeira dos Índios em 30 de abril de 1930, 27 meses depois de assumir o cargo, e partiu com a família – mulher e filhos – para Maceió.
A fama do prefeito do interior nordestino e seus relatórios bem escritos se espalhou e chegou ao Rio de Janeiro, então capital da República. Não se sabe ao certo como, o poeta e editor Augusto Frederico Schmidt ficou sabendo da trajetória de Graciliano e seus relatórios, e escreveu uma carta ao escritor perguntando se ele tinha algum livro para ser publicado. A resposta foi positiva e Caetés, seu primeiro romance, foi publicado em 1933 pela editora Schmidt. Era o começo da consolidação da carreira de um dos principais escritores da literatura brasileira.
Principais obras de Graciliano Ramos publicadas pela Editora Record
No dia a dia, Graciliano Ramos era conhecido pela família, amigos e empregados pela sua obsessão por limpeza e higiene. Tinha o hábito de lavar as mãos diversas vezes ao dia e evitar tocar em objetos como cédulas de dinheiro velhas e sujas. Na prefeitura de Palmeira dos Índios, a saúde pública e a questão sanitária estavam entre suas prioridades como gestor público. Em 1928, instalou um posto de higiene na cidade – algo que seria um posto de saúde nos dias de hoje – e cuidou muito da zeladoria urbana, conforme atestou no seu primeiro relatório ao governador:
“Cuidei bastante da limpeza pública. As ruas estão varridas; retirei da cidade o lixo acumulado pelas gerações que por aqui passaram. Houve lamúrias e reclamações por se haver mexido no cisco preciosamente guardado em fundos de quintais; lamúrias, reclamações, ameaças, guinchos, berros e coices dos fazendeiros que criavam bichos nas praças”, escreveu o então prefeito literato no texto enviado ao governador.
Saiba mais: “O velho Graça: uma biografia de Graciliano Ramos”, de Dênis Moraes, Boitempo Editorial
Depois de 80 anos, qual seria o comportamento do prefeito Graciliano Ramos diante de desafio da pandemia de covid-19?“Baseando-me na sua trajetória exemplar como homem público e no compromisso social irredutível que demonstrou nos dois anos como prefeito, posso supor que Graciliano Ramos jamais faltaria em empenho, solidariedade e capacidade de mobilização imediata de todos os serviços e recursos disponíveis da Prefeitura em defesa da saúde e da segurança da população de Palmeira dos Índios”, diz Dênis de Moraes.
“Acredito que ele não apenas tomaria providências concretas, como também colocaria à prova o seu patrimônio de credibilidade para convencer o conjunto da sociedade de que o isolamento social e os protocolos de prevenção, diagnóstico, tratamento e quarentena precisavam ser observados à risca. No limite, ele possivelmente não hesitaria em decretar o lockdown na cidade, se tal medida extrema fosse recomendada por especialistas para barrar a epidemia”, completa o biógrafo do Velho Graça.
Opinião semelhante tem o professor Valdemir Pires, da Unesp. “Graciliano Ramos, bem antes desses nossos tempos, de pandemia combinada com altos riscos de morte por causa do descaso e da incompetência governamentais, comportava-se como o tipo de político necessário frente a crises sanitárias: aquele gestor público que, primeiro, vê o problema de saúde pública se manifestando e, segundo, mobiliza-se para enfrentá-lo; sem medo de fazer uso de medidas impopulares, como multas, sem poupar delas até os mais próximos”, explica Pires.