Utopia tropical: 100 anos de Darcy Ribeiro

28 de outubro de 2022

Ao longo do século 20, o Brasil contou com destacados sociólogos, antropólogos e etnólogos. Alguns de nossos educadores alcançaram reconhecimento mundial. Não nos faltaram, também, intelectuais dispostos a pensar o País, nem romancistas para desvendar a alma dos brasileiros. Estas personalidades brilharam nas respectivas áreas, mas apenas Darcy Ribeiro deixou o seu nome marcado em todas elas, além de acrescentar à sua trajetória cargos públicos de alto nível.

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“Darcy é uma das grandes inteligências do Brasil de todos os tempos”, segundo o crítico literário Antonio Candido, elogio amplificado em nível continental pelo escritor colombiano Gabriel García Márquez, que o considerava “um dos homens mais brilhantes da América Latina”. Já no fim da vida, entretanto, o autor da obra seminal O povo brasileiro – a formação e o sentido do Brasil, que levou 30 anos para ser concluída, enxergava a si mesmo por outro prisma: “Fracassei em tudo o que tentei na vida. Tentei alfabetizar as crianças brasileiras, não consegui. Tentei salvar os índios, não consegui. Tentei fazer uma universidade séria e fracassei. Tentei fazer o Brasil desenvolver-se autonomamente e fracassei. Mas os fracassos são minhas vitórias. Eu detestaria estar no lugar de quem me venceu.”

Darcy Ribeiro nasceu em 26 de outubro de 1922, em Montes Claros (MG), Vale do São Francisco, entrada do sertão nordestino. De família abastada e culta, proprietários de uma fábrica têxtil e de fazendas, não teve carências materiais na infância ou juventude, mas perdeu o pai com apenas três anos. “Felizmente, porque não fui domesticado por ele. E como não tive filhos, nunca domestiquei ninguém”, escreveu, a respeito da paternidade, em suas memórias (Confissões, Companhia das Letras, 1997). Conheceu a brutalidade da classe dominante brasileira entre os próprios parentes, retratados posteriormente no romance O mulo.

A educação já estava no seu DNA, herdado da mãe, Josefina Augusta da Silveira, professora primária – que batiza, com o nome de “Mestra Fininha”, a principal avenida da cidade natal. Do “tio Plínio”, que era médico, herdou o gosto pelos livros.

Em 1939, aos 17 anos, em pleno Estado Novo, chega a Belo Horizonte para estudar Medicina, projeto que abandona ao descobrir que podia assistir às aulas de outras faculdades, aos seus olhos, bem mais interessantes. Disputado por integralistas e comunistas, adere a estes últimos, mas não por muito tempo: seu espírito libertário choca-se com a rígida disciplina partidária. “Meus caminhos foram outros, mas ainda me lavo naquelas águas. Não sou marxista, mas discípulo, herdeiro de Marx.”

Valendo-se de uma bolsa de estudos, matricula-se em São Paulo, na Escola Livre de Sociologia e Política (FESPSP), dotada de uma biblioteca doada pela Fundação Rockefeller e dirigida pelo sociólogo estadunidense Donald Pierson. Lá, faz o curso de Ciências Sociais, com especialização em Antropologia, graduando-se bacharel em 1945 e mestre em 1947. Por indicação de um dos professores, o alemão antinazista e exilado político Herbert Baldus, vai trabalhar com o Marechal Cândido Rondon na Seção de Estudos do Serviço de Proteção aos Índios (SPI).

Ao assumir a função de etnólogo indigenista, imerso durante dez anos em aldeias do Brasil Central e da Amazônia estudando as comunidades destas regiões, Ribeiro veste sua primeira pele, de acordo com a equiparação que fazia de si mesmo a uma cobra. São frutos desse período a criação do Parque Indígena do Xingu e do Museu do Índio, no Rio de Janeiro, além do primeiro livro, Religião e mitologia Kadiwéu. O deslumbramento com a “humanidade índia, tão ínvia e essencial” dará nos romances Maíra e Utopia selvagem.

A segunda pele surge de seu encontro com Anísio Teixeira, diretor do Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (Inep), entre 1952 e 1964, com quem compartilha a visão da educação como direito fundamental para eliminar o analfabetismo. Indicado diretor da Divisão de Estudos Sociais do Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais, é encarregado pelo então presidente Juscelino Kubitschek de planejar a Universidade de Brasília (UnB), da qual será o primeiro reitor. Durante o breve período parlamentarista da presidência de João Goulart, ocupa o cargo de ministro da Educação e Cultura.

Quando Goulart recupera os poderes presidencialistas em 1963, Ribeiro assume a pele de político e, com ela, a Casa Civil do governo. Será na tentativa de realizar a Reforma Agrária e disciplinar o capital estrangeiro que sucumbirá ao golpe militar, no ano seguinte.

Exilado no Uruguai, leciona na universidade local e aproveita para escrever O processo civilizatório, marco inicial de seus Estudos de Antropologia da Civilização, que inclui obras sobre a América Latina. Preso por nove meses ao tentar voltar ao Brasil, em 1968, retorna ao exílio e se torna assessor dos presidentes Salvador Allende, do Chile, e Velasco Alvarado, do Peru.

Após a anistia política de 1979, une-se a Leonel Brizola na fundação do Partido Democrático Trabalhista (PDT), e ambos se elegem governador e vice-governador do Rio de Janeiro, respectivamente, em 1982. Nomeado secretário estadual de Cultura, retoma a veia educadora com a concepção e realização dos Centros Integrados de Ensino Público (Cieps), efêmera tentativa de introduzir no Brasil o ensino em tempo integral, nos moldes dos países desenvolvidos.

“Os fracassos são minhas vitórias. Eu detestaria estar no lugar de quem me venceu.” Darcy Ribeiro

De 1991 até 1997, ano de sua morte, exerce o mandato de senador, durante o qual elabora e consegue aprovar a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, a Lei Darcy Ribeiro, como é chamada em homenagem a seu criador. Dentre seus últimos “fazimentos”, como costumava dizer, figuram a Universidade do Norte Fluminense (Uenf) e a Fundação Darcy Ribeiro.

Casado durante 25 anos com a também antropóloga Berta Gleizer, amou muitas mulheres pelos diversos continentes, mas seu amor maior sempre foi o Brasil, “a mais bela e luminosa província da Terra”, onde um dia florescerá “uma nova civilização, mestiça e tropical, orgulhosa de si mesma”.

ESTE CONTEÚDO FAZ PARTE DA EDIÇÃO #472 IMPRESSA DA REVISTA PB. ACESSE A ÍNTEGRA DA VERSÃO DIGITAL, DISPONÍVEL NAS PLATAFORMAS BANCAH E REVISTARIAS.

Herbert Carvalho Paula Seco
Herbert Carvalho Paula Seco