No começo de fevereiro, uma bola branca com uma espécie de antena acoplada, que lembrava um Ovni – mas construído à semelhança de um balão humano –, chamou a atenção do mundo planando sob o céu do Estado norte-americano de Montana.
De imediato, ninguém sabia o que era, até a Casa Branca afirmar que se tratava de um exemplo minúsculo do “grande programa de vigilância chinês”, que, naqueles dias, violara a soberania territorial de vários países nas Américas.
A China reagiu, primeiro, com formalidade e, depois, com força. Ressaltou que era um mero dispositivo meteorológico, inofensivo, que escapou do controle das agências locais e foi parar justamente no céu da maior potência do Ocidente. Posteriormente, ao elevar o tom, apontou a reação “exagerada” dos Estados Unidos como sinal do declínio de sua posição no mundo. Em uma reunião sobre segurança global na Alemanha, no fim do mês, um chefe da diplomacia chinesa foi mais longe, chamando a narrativa estadunidense de “histérica”.
Dias após as críticas ácidas – e o cancelamento de uma viagem diplomática do secretário de Estado daquele país, Antony Blinken, a Pequim –, enquanto se derrubava o dispositivo já na Carolina do Sul e a imprensa ocidental o batizava de “balão espião da China”, Lula se encontrou rapidamente com Joe Biden, em Washington. Não transparecia, mas era um momento delicado para a diplomacia brasileira, segundo fontes do Itamaraty ouvidas pela Problemas Brasileiros.
Não é à toa: em meio às duas grandes concorrentes globais, com relações tanto vitais como complexas com ambas, o Brasil ainda passa por um processo de reestruturação do seu posicionamento em um mundo disputado, pedaço a pedaço, por chineses e norte-americanos.
A visita de Lula fazia parte deste plano maior, mas uma outra (que já estava em planejamento naquela época) era parte essencial do projeto: colocar o presidente brasileiro face a face com Xi Jinping, em Pequim, após hostilidades seguidas do período Bolsonaro. O encontro foi marcado para o dia 28 deste mês, quando Lula seguirá com uma comitiva de políticos e empresários de setores vitais das trocas sino-brasileiras, como o agronegócio.
Ao fim, aparentemente o Brasil teve uma vitória paralela pequena, mas significativa: na declaração conjunta do encontro de Lula com Biden, não há nenhuma menção à China nem à crise do balão misterioso. A pergunta, porém, permanece no horizonte: como China e Estados Unidos observam os movimentos do Brasil no xadrez global?
Se o episódio do balão serviu para reforçar o conflito retórico entre chineses e estadunidenses, o antagonismo das duas potências tem outras concretudes. A principal delas envolve a postura de ambos diante da invasão russa na Ucrânia. Desde o início, a nação ocidental saiu em defesa dos ucranianos, enviando armas e dinheiro ao país europeu, enquanto Biden, cada vez que convocado a falar sobre o tema, xingava o presidente da Rússia, Vladimir Putin. No ápice, chamou o líder russo de “ditador assassino” e “ladrão”.
De outro lado, o posicionamento oficial de neutralidade chinesa acirra os ânimos geopolíticos, já que os movimentos recentes de Pequim sugerem uma tomada de lado: o da Rússia. Praticamente horas antes do primeiro movimento militar russo na fronteira ucraniana, Putin e Jinping haviam anunciado uma “parceria sem limites” entre os dois países, durante um encontro na capital chinesa. Ambos estão lado a lado nesta semana novamente, em uma visita do líder chinês a Moscou.
Em novembro passado, durante encontro do G20, em Bali, na Indonésia, o gigante asiático concordou em assinar a resolução final do encontro – que condenava veementemente a invasão russa à Ucrânia, assim como o Brasil. Em paralelo, porém, agências internacionais sustentam que a China tem fornecido tecnologia de uso militar para as tropas da Rússia (a Casa Branca dobra a aposta dizendo que este fluxo inclui armas).
Neste jogo complexo, as principais potências ocidentais estão convocando o Brasil a tomar um partido na guerra, em uma mudança radical na postura tradicionalmente neutra do Itamaraty diante de conflitos nos quais o País não esteja envolvido. Os Estados Unidos queriam uma condenação pública perante a comunidade internacional, sobretudo na ONU – o que aconteceu no mês passado.
Governos europeus, como a Alemanha, foram além: pediram o envio de armas para a defesa ucraniana, recusado durante a visita de Olaf Scholz, chanceler alemão, a Brasília, em janeiro. Ao menos oficialmente, a China ainda não fez nenhuma demanda ao Brasil.
Especialistas ouvidos pela reportagemsão unânimes na percepção de que os caminhos do Brasil pelo mundo, encabeçados agora por Lula, não mudam a posição do País perante as duas maiores potências da atualidade. Nem mesmo o intervalo curto entre as visitas a Washington e Pequim são vistas com desconfiança por ambos os lados.
À PB, a economista Janaína Câmara, editora do portal especializado Radar China, destaca que uma convocação chinesa para um papel mais ativo na guerra da Ucrânia jamais chegará ao gabinete de Lula. “Se o Brasil não for crítico à postura da China na guerra, e não tem sido, esta é pragmática o suficiente para colocar cada tipo de relação em seu próprio contexto”, afirma, lembrando da visita recente do presidente brasileiro a Washington e das intenções do novo governo em dialogar com o maior número de players possível.
Segundo Janaína, o verdadeiro desafio diplomático brasileiro entre Estados Unidos e a potência asiática estará posto no próximo encontro do Brics, em agosto, em Durban, na África do Sul. Ali, qualquer sinal dado terá reações inevitáveis. “Haverá dois caminhos a seguir: ou ficamos malvistos na comunidade internacional por um suposto alinhamento com a Rússia ou nos indispomos com China e Rússia”, observa. “Esta reunião será, sem dúvida, mais delicada do que a visita de Lula a Pequim.”
Vinicius Mariano de Carvalho, professor do Departamento de Estudos da Guerra do prestigiado King’s College, em Londres, vê o Brasil em uma situação geopolítica complexa: em primeiro lugar, tem na China e nos Estados Unidos seus dois principais parceiros comerciais. Contudo, apesar de laços culturais mais robustos com os norte-americanos, é na mesa do Brics (com russos e chineses) que o País cultiva maior protagonismo global. Tudo isso em meio à reestruturação do próprio Itamaraty, que almeja voltar a ter condições de intermediar relações conflituosas pelo mundo, como pretendeu fazer entre Irã e Estados Unidos, no começo do século.
“É um papel de relevância, embora dependa da robustez que o Brasil demonstre internacionalmente para iniciar uma agenda de diálogo”, ressalta. “Em situações como a da guerra atual, todos os países se questionam sobre os próprios interesses. Se há ganhos em tomar um lado ou de abster. Devemos nos fazer essa pergunta agora. O posicionamento brasileiro é importante para o mundo.”
Para Mariano, em paralelo à guerra, são nos acirramentos localizados das relações entre as duas grande potências mundiais que o País pode reforçar o lugar estratégico. Funciona não apenas pelo pragmatismo que rege os diálogos entre nações, mas também como forma de ampliar vantagens políticas e econômicas. “Nestas horas, devemos deixar claro que não estamos tomando um lado, mas apenas agindo a partir do que é do próprio interesse dentro da questão em específico”, analisa ele, recordando do episódio mais famoso dessa posição intermediária: a briga pela infraestrutura de 5G em território nacional, que começou em 2017 entre empresas chinesas e norte-americanas – e ainda está longe de terminar. “Pensando nos benefícios das relações econômicas que o Brasil tem com ambos os países, não me parece que este é o momento de se tomar uma posição”, continua Mariano.
Já na visão de Vitor Ido, pesquisador da organização intergovernamental South Centre, sediada em Genebra, na Suíça, a China não espera que o Brasil seja um mediador dos seus canais com os norte-americanos. Mais do que isso, Pequim conhece Lula melhor do que sabia sobre Bolsonaro – e, por isso mesmo, entende que o atual presidente fará de tudo para manter boas relações com países que se antagonizem no cenário internacional. “Na visita a Biden, inclusive, não houve um alinhamento claro da diplomacia brasileira aos estadunidenses. A ida à China também terá o mesmo aspecto”, afirma Ido. “É mesma coisa que fizemos recentemente com os envolvidos na guerra: tivemos uma reunião em um dia com o embaixador da Rússia e, no seguinte, com o da Ucrânia”, completa.
Na agenda internacional de Lula em 2023, ainda estão previstos encontros com Emmanuel Macron, presidente da França, em Brasília, e uma viagem à bombardeada Kiev, na Ucrânia, para falar com Volodymyr Zelensky. Não são planos triviais, mesmo na dinâmica antagônica entre China e Estados Unidos, porque enquanto o governante francês tenta costurar um acordo de paz entre russos e ucranianos, incluindo Biden (e, quem sabe, o Brasil) na mesa, uma visita de Estado à Zelensky significaria tomar um partido evidente, a contragosto do Brics.
Mesmo internamente, os movimentos do governo passam pela disputa externa. Lula, por exemplo, vai aproveitar a visita a Pequim para se aproximar do agronegócio, que tem na China o seu principal cliente. Ele levará alguns empresários do setor na comitiva. Por outro lado, a pauta ambiental (que o Brasil espera protagonizar) passa muito pelo reconhecimento norte-americano – e, sem obra do acaso, o presidente brasileiro pediu à Biden ajuda para “engordar” o Fundo Amazônia. Por onde se olhe, sempre há a águia, de um lado, e o tigre, de outro.