A fraternidade luso-brasileira, assente na partilha da língua e de afinidades históricas e culturais, sustenta a narrativa oficial sobre as relações entre ambos os países. Contudo, o recente fluxo migratório põe esta amizade à prova. Diante de uma população envelhecida e em decréscimo, a economia portuguesa entraria em colapso sem os imigrantes. Dentre eles, destacam-se os brasileiros, por serem, com folga, a maior comunidade de forasteiros – 30% do total.
Setores econômicos, como turismo e construção civil, dependem profundamente da mão de obra estrangeira, mas a própria previdência precisa da contribuição dos que vêm de fora para fechar as contas. Ainda que a a mão de obra desta população seja necessária (e o idioma não seja um empecilho), o rápido crescimento da quantidade de brasileiros na terra de Cabral, nos últimos anos, tem trazido uma série de desafios para a população e as autoridades de ambos os lados do Atlântico.
Desde 2009, o saldo populacional natural em Portugal é negativo: morrem mais pessoas do que nascem. Os cidadãos portugueses têm cada vez menos filhos, ao passo que, ao mesmo tempo, a esperança de vida cresce, o que o torna um dos países com maior contingente de idosos da Europa. Segundo a Eurostat, a porcentagem de pessoas com 65 anos ou mais na população total é maior na Itália (22,8%), seguida por Grécia (22%), Portugal e Finlândia, que dividem a terceira posição, ambos com 21,8%. Para termos de comparação, no Brasil, a taxa está em 10%, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Com um perfil mais jovem e, sobretudo, de trabalhadores na ativa, os imigrantes são 7% da população total, representando 10% dos contribuintes da segurança social. No último ano, graças a estas pessoas, entrou, nos cofres da previdência, 1,3 bilhão de euros (cerca de R$ 7,3 bilhões), segundo dados do Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social. Os brasileiros foram responsáveis por 31,9% das contribuições estrangeiras.
Se, de um lado, Portugal quer os brasileiros, os que emigram do Brasil fogem de uma economia em crise ou da instabilidade política – ou simplesmente saem em busca de uma vida melhor. Desde a década de 1990, os cidadãos brasileiros se tornaram a principal comunidade estrangeira em Portugal. Contudo, a partir de 2019, o tamanho deste grupo tem batido recordes sucessivos. Num intervalo de apenas quatro anos, o número mais do que dobrou. Oficialmente, o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) aponta que há 233 mil brasileiros vivendo em Portugal. Na realidade, são muitos mais.
Os números oficiais não contabilizam quem entrou no país europeu e ainda busca a regularização, o que chega a levar dois anos – e não há registro de quantos estão na espera. Também há os que adquiriram nacionalidade portuguesa. Estes últimos saem das estatísticas de estrangeiros, embora continuem sendo brasileiros. Só em 2021, mais de 13 mil brasileiros adquiriram a nacionalidade portuguesa.
Por fim, há brasileiros com dupla cidadania de outros países da União Europeia que moram em Portugal registrados com a outra nacionalidade, pela facilidade que têm nos processos de imigração – basta comunicar a residência ao município onde mora. A comunidade italiana, por exemplo, conta com mais de 30 mil residentes em Portugal, talvez muitos deles nascidos no Brasil. Ninguém sabe ao certo.
Basta andar um pouco pelo país, ver o que se passa nas escolas ou no comércio local, para perceber a presença forte dos brasileiros. Eles estão tanto trabalhando nos serviços de limpeza e atendimento a clientes como são proprietários de negócios de diversos tamanhos. Enchem classes de escolas públicas e são um dos maiores públicos das escolas internacionais particulares. O fluxo atual é muito diverso, com gente de todas as classes socioeconômicas, áreas de atuação e graus de escolaridade.
Alguns chegam a chamar de “invasão”. O que não é o caso. José Manuel Diogo, diretor da Câmara de Comércio e Indústria Luso-Brasileira e fundador da Associação Portugal Brasil 200 anos, gosta de usar a palavra “contracolonização”. “Contra porque vai no sentido contrário ao da colonização. É algo inédito: vivemos um momento histórico”, afirma.
“O movimento é desejado e legislado. O novo visto para procurar trabalho é um grito desesperado. Não é um visto de mérito, para profissionais superqualificados ou em áreas críticas, como acontece em outros países”, ressalta Diogo. O governo português lançou, recentemente, novos tipos de vistos, um com validade de seis meses, para procura de trabalho, e outro para quem trabalha de forma remota, os nômades digitais. Antes disso, já oferecia opções para regularizar quem entrava como turista e encontrava trabalho, assim como visto para quem compre imóveis de valores determinados, modalidade conhecida como visa gold.
O diretor da Câmara de Comércio defende que, mesmo com tantos brasileiros já instalados, o cenário se mantém propício para novos imigrantes vindos do Brasil, sobretudo para quiser quer fazer negócios. “Portugal está aqui ‘dando sopa’ para empresários brasileiros. Temos uma população escolarizada, que fala bem inglês, com boa infraestrutura de estradas, de fibra óptica. O país pode ser uma plataforma para se lançar para toda a Europa e ainda dá acesso a generosos fundos europeus de financiamento”, cita.
Muitos brasileiros têm conseguido se estabelecer no país europeu, nas mais diversas áreas, como o caso dos irmãos Paula e Lucas Galvanini. Nutricionista, Paula havia passado uma temporada nos Estados Unidos, onde estudou e trabalhou. Quando o visto estava para vencer, viajou à Itália para fazer os trâmites e obter a nacionalidade. Enquanto estava na Itália, foi convidada para dar um curso breve numa escola de gastronomia de Lisboa e se apaixonou pela cidade. “Já tinha contatos com a pessoa da escola, vi que tinha muitos brasileiros. A língua também ajudaria, porque não falo italiano. Senti que em Portugal tudo ia fluir melhor”, lembra, sobre os motivos de decidir se estabelecer na capital lusitana.
Com uma sócia também brasileira, começou em 2020, dentro da própria cozinha, a fabricar kombucha, um tipo de chá fermentado. “Havia mercado, porque as kombuchas produzidas aqui não tinham muita qualidade. O primeiro ponto de venda foi uma cervejaria do lado da minha casa”, relata. Para o negócio decolar, contou com o apoio de um programa de aceleração da Startup Lisboa, uma incubadora privada sem fins lucrativos.
Em uma área completamente diferente, a Tecnologia, o irmão de Paula chegou em janeiro de 2021. “Já tinha uma empresa no Brasil havia três anos e queria prestar serviço para outros mercados. Estar na Europa era importante, mas não tinha certeza de qual país, até que conseguimos um investidor de Portugal”, relata.
Para Lucas, a papelada e outras coisas para resolver no momento da mudança exigiram muita atenção, trazendo o risco de perder o foco do negócio em si. “Ainda precisa achar escola para os filhos, tem apartamento para montar. Entender a parte contábil também foi um desafio, porque a maneira que o contabilista trabalha aqui é diferente da que faz o contador no Brasil. Com tudo isso, por algum tempo senti a empresa patinar”, afirma.
Passados alguns meses, o ritmo voltou ao que esperava e, hoje, o empresário avalia que foi uma escolha acertada, ainda que nenhum de seus clientes esteja em Portugal – a empresa cria ferramentas para desenvolvimento de software a companhias norte-americanas e de outros países europeus. “Estou em território europeu, mas com custos de vida e empresarial menores do que seria na França, que era um dos possíveis destinos”, avalia.
O setor de Tecnologia da Informação (TI) é estratégico para Brasil e Portugal. Há iniciativas como a de trazer um polo do hub de inovação Porto Digital de Recife para a cidade de Aveiro. A implementação, que começa este ano, tem como um dos objetivos atrair talentos da área, ainda um desafio para ambos os países. Se há sol e comida boa nos dois lados, nem sempre os salários e as posições tornam os destinos atraentes.
Há dez anos, o brasileiro Rion Brattig Correia foi para os Estados Unidos fazer um doutorado em Ciências da Computação. Conheceu Portugal durante um projeto e acabou fazendo seu pós-doutorado no país europeu. “Eu tinha a opção de ficar em Boston, mas minha família e eu gostamos muito daqui, da qualidade de vida. O salário no laboratório de Portugal era menor, mas acabei conseguindo um suplemento com verbas estadunidenses”, diz.
Depois que a pesquisa de pós-doutorado acabou, Correia queria se manter em Portugal, mas não conseguiu vaga como professor. Acabou recebendo proposta para entrar em uma multinacional norte-americana, em trabalho remoto. Está satisfeito com o arranjo, que lhe garante bom salário, desafio profissional e qualidade de vida, mas sente que Portugal não consegue aproveitar bem os talentos, sejam portugueses, sejam brasileiros. “Em geral, as multinacionais têm em Portugal só a parte de customer service. As pessoas só podem trabalhar com pesquisa e desenvolvimento se saírem do país.”
De fato, nem tudo são flores para brasileiros em solo português. Atualmente, salário baixo e inflação são realidades que afetam a vida de todos em Portugal, situação que acaba sendo agravada para os imigrantes, que não contam com uma rede de apoio. A inflação anual fechou 2022 na faixa dos 10%. Itens essenciais, como imóveis, energia e alimentação, puxaram a taxa, com aumentos de mais de 20%. Um em cada quatro trabalhadores recebe um salário mínimo, fixado em 740 euros. Convertendo para o real, seriam mais de R$ 4 mil – no entanto, este valor é praticamente impossível alugar um apartamento de um quarto em Lisboa ou no Porto.
“Há muitas pessoas que vêm iludidas. Temos visto famílias inteiras ficarem em situação crítica. A habitação está um caos para todos, mas os imigrantes sofrem duplamente. Quando a pessoa liga para um anúncio para alugar casa, as exigências aumentam de forma absurda só pelo sotaque,” afirma Cyntia de Paula, presidente da Casa do Brasil de Lisboa (CBL), associação sem fins lucrativos que ajuda a comunidade brasileira no país.
Os problemas não param por aí. Há 13 anos em Portugal, Cyntia conta que viu crescerem as expressões públicas de xenofobia, sobretudo nas redes sociais. Nem mesmo os brasileiros com situação imigratória regular ou já naturalizados portugueses ficam livres de discriminação. “Muitas vezes, as pessoas continuam vítimas de discurso de ódio, até de discriminação no acesso a direitos, nos serviços de saúde ou do governo”, afirma a ativista pelos direitos dos imigrantes.
Há, por exemplo, denúncias frequentes de preconceito linguístico dentro das universidades portuguesas. “Sempre tem alguma situação em que o professor diz que o brasileiro não fala português, ou que fala errado. É uma questão que está muito pautada na relação colonial e também acontece com imigrantes das outras ex-colônias. Há uma perspectiva de um lado civilizado, desvalorizando outras formas de usar a língua”, diz. Apesar das dificuldades, Cyntia defende que imigrar é um direito humano e que todos devem ser tratados com dignidade, onde quer que escolham viver.
Os laços culturais, comerciais e pessoais, assim como os problemas que acarretam, acabam se refletindo na diplomacia. Mesmo face a turbulências e disputas, a amizade oficial entre os países tem se mantido estável. “As questões de imigração não têm contribuído para melindrar as relações bilaterais. Problemas surgem, mas estão sendo resolvidos cordialmente”, afirma Carmen Fonseca, professora de Relações Internacionais da Universidade NOVA de Lisboa (UNL), que destacou o chamado “Acordo Lula”.
Em 2003, durante uma outra onda de imigração brasileira, o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva assinou, durante uma visita a Lisboa, um acordo de legalização que beneficiou milhares de cidadãos do país que moravam irregularmente em Portugal. “Hoje, a imigração não se apresenta como um problema, embora existam reivindicações. As questões principais tendem a ser resolvidas”, acredita.
A tendência de resolução se dá também pela maior proximidade entre o presidente atual e os líderes lusitanos. “Em termos políticos, durante quatro anos, os países estiveram afastados. Não existiram cimeiras [reuniões], Bolsonaro nunca veio a Portugal. As consequências não são piores pelo lastro de história, de relações muito consolidadas”, afirma a professora. Em comparação, Lula visitou Portugal logo depois de eleito. O presidente português, Marcelo Rebelo de Sousa, foi o primeiro governante estrangeiro a cumprimentar Lula no dia da posse. “Na diplomacia, estes gestos são muito importantes”, explica Carmen.
Além do tema da imigração, a agenda ambiental e a aproximação entre União Europeia e Mercosul podem ser beneficiadas com a retomada do estreitamento dos laços luso-brasileiros, avalia. “A questão climática parece ser um grande tema para Lula e é algo bastante presente na agenda europeia. O desenvolvimento bilateral pode reforçar o papel de Portugal na União Europeia (UE) e trazer benefícios ao Brasil. Nomeadamente, pode destravar o acordo com o Mercosul”, explica.
No dia a dia das pessoas comuns, nas discussões dos líderes globais, parece que há muito espaço para que uma fraternidade entre Brasil e Portugal traga melhorias para todos os lados.