Especialistas vinculados à ONU divulgaram o sexto relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC). É a primeira vez que os cientistas falam com tanta ênfase sobre a responsabilidade humana nas mudanças climáticas e aquecimento global e alertam para aumento de 2 a 5 graus na temperatura até a metade do século 21.
Os especialistas apontam que as mudanças incidem diretamente nos fenômenos meteorológicos, causando eventos extremos como ondas de calor, volumes de chuva acima ou abaixo da média e grandes cheias e grandes secas cada vez mais frequentes. Em 2021, grande parte da bacia amazônica registrou uma cheia recorde, com chuvas acima do normal, impactando milhares de famílias. O alerta é que, sem medidas urgentes, como o cumprimento do Acordo de Paris, firmado em 2015, que recomenda a redução das emissões de carbono, e o fim do desmatamento, as perspectivas para os próximos anos são alarmantes.
Os efeitos devastadores dos impactos ambientais e das mudanças climáticas não são inequívocos para os povos originários, que há vários anos observam e estudam, a partir de sua realidade e vivência locais, a crise climática global que afeta o planeta. Para eles, o colapso ecológico e humano é mais urgente do que atesta a ciência ocidental e os efeitos das mudanças climáticas já chegaram em seus territórios.
Em comunidades indígenas da região do Alto Rio Negro, no norte do estado do Amazonas, a cheia histórica de 2021 em grande parte da bacia amazônica causou impactos não sentidos há décadas. Professor, liderança indígena e mestre em Ciências Ambientais, Dzoodozo Baniwa, da comunidade Santa Isabel, no rio Aiari, na região do Rio Içana, conta como os povos indígenas da região já estão sofrendo com as mudanças climáticas. A comunidade de Dzoodozo fica na Terra Indígena Alto Rio Negro, no município de São Gabriel da Cachoeira (a 852 quilômetros de Manaus), no Alto Rio Negro.
“Aqui, nas cabeceiras do rio Negro e seus afluentes, já registramos perda de roça e dificuldade de pescaria. A maioria das comunidades indígenas não conseguiu queimar suas roças, então tem todo este impacto, o que eu chamo de impacto sistêmico, não somente questões isoladas”, explica ele. A região do Alto Rio Negro foi uma das mais afetadas pela cheia recorde de 2021, com impactos até a foz da bacia, atingindo Manaus, capital do Amazonas.
Segundo Dzoodozo Baniwa, esses impactos acabam afetando cada vez mais a vida das comunidades indígenas. “Mesmo nesta região, a floresta sendo bastante preservada, já estamos vivendo essa consequência de mudanças climáticas que este relatório [do IPCC] vem apresentando”, aponta ele.
Dzoodozo Baniwa faz parte de uma rede de pesquisadores indígenas que atua no monitoramento ambiental e climático, um trabalho que é desenvolvido desde 2005. “Há 16 anos a gente vem monitorando esses fenômenos. Então, há sim evidências reais aqui nas comunidades.”
O pesquisador sublinha que em 2018 ocorreu uma seca extrema na bacia do rio Negro, que afetou toda a parte norte da Amazônia brasileira. “Teve aumento de focos de incêndio no município de Barcelos. Em três anos isso tem aumentado 70%. Em 2018, aqui em São Gabriel da Cachoeira, foi decretado estado de emergência porque o nível do rio estava muito baixo. Então, não é uma questão de ‘vai acontecer’, já está acontecendo”, esclarece.
Na mesma semana da divulgação do relatório do IPCC, jovens indígenas do Alto Rio Negro realizaram um seminário no qual discutiram sobre os impactos das emergências climáticas no território, promovido pela Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn), e a contribuição dos povos originários e a preservação de seus territórios para superar o desafio do aquecimento global.
Um dos impactos citados pelos participantes, segundo informações da Foirn, foram os dois eventos climáticos de 2021 na região: a cheia histórica e a queda na temperatura. “Na região, há o período de temperaturas amenas, conhecido por muitos como Aru, mas este ano o frio durou mais”, descreveu a Foirn, em seu site.
Doodzo Baniwa foi um dos coordenadores do seminário. Ele salientou que a visão dos povos indígenas de preservação da floresta, conectando natureza, plantas, animais e humanidade, tem impacto negativo na emergência climática, mas seus territórios tradicionais estão sendo afetados pelas alterações.
Cheias cada vez maiores alternando com períodos de seca extrema. O desequilíbrio cada vez mais em evidência é um dos pontos centrais do relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC).
Para chegar às conclusões que deram origem ao Sexto Relatório de Avaliação – AR6 – do Grupo de Trabalho 1 (WG1), o IPCC analisou um total de 14 mil publicações científicas produzidas em diversos países do mundo. As pesquisas foram analisadas por um grupo de 234 pesquisadores de vários países.
É dessa análise minuciosa de onde são extraídas as conclusões que dão origem ao relatório do IPCC. São quase três mil páginas, que apontam que, a não ser que ocorram reduções “imediatas, rápidas e em grande escala nas emissões de gases do efeito estufa”, limitar o aquecimento a 1.5 °C pode ser impossível. A meta de 1.5 °C foi estabelecida no Acordo de Paris.
A coordenadora da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB), Nara Baré, lembra que a luta contra o aquecimento global é uma bandeira que vem sendo levantada há anos pelas organizações indígenas. Segundo ela, o parecer sobre o desequilíbrio climático causado por impactos ambientais não é novidade para os povos originários.
“Essa é uma discussão que a gente sempre vem colocando nas conferências climáticas e nas várias edições da COP (Conferência das Partes da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança Climática). Tanto que nós conseguimos – eu falo enquanto indígenas globais, do mundo todo -, colocar dentro da plataforma, o reconhecimento dos modos tradicionais dos povos indígenas para essa ação, para o combate das mudanças climáticas e isso já foi aprovado desde o Acordo de Paris, etc.”, atesta.
Para Nara Baré, a demarcação de terras indígenas ajuda a contribuir para frear o avanço do desmatamento, mas é preciso que a proteção e a defesa destes territórios sejam feitas por toda a sociedade.
“Nas COPs, é onde a gente tem puxado e colocado a importância não só dos modos tradicionais dos povos indígenas, dos nossos conhecimentos tradicionais, como também dos territórios indígenas como essas barreiras que eles chamam de contenção do avanço climático. Então, é uma contribuição dos territórios indígenas para combater o aquecimento global. Por isso, a importância de se garantir as demarcações das terras indígenas”, destaca a liderança.
O relatório do IPCC apontou que é indiscutível que as atividades humanas estão causando mudanças climáticas, tornando eventos extremos, incluindo ondas de calor, chuvas fortes e secas, mais frequentes e severas. Segundo os autores, as mudanças climáticas já estão afetando diversas regiões do planeta Terra, de maneiras diferentes.
O documento do IPCC também aponta que algumas mudanças climáticas já são irreversíveis; outras, podem ser retardadas e outras podem ser interrompidas, caso sejam aplicadas as políticas de redução nas emissões de gases poluentes.
Para o IPCC, para limitar o aquecimento global são necessárias “reduções fortes e rápidas e sustentadas de CO2, metano e outros gases de efeito estufa”. Tais medidas, além de reduzir as consequências das mudanças climáticas, também melhorariam o nível de poluição do ar nas grandes cidades.
Doutor pelo Departamento de Ecologia e Biologia Evolucionária da Universidade de Michigan (EUA) e pesquisador titular do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), Philip Fearnside afirma que, com o aumento no aquecimento global, haverá uma alteração no padrão de chuvas, principalmente mais ao leste da Amazônia. “Será uma região mais seca com a redução de 10 a 20% na precipitação.”
Para o pesquisador, o relatório do IPCC é um sinal grave para o Brasil e em especial para a Amazônia. “Se forem continuar com as emissões no padrão atual, chegando ao ano 2050, isso ameaça a própria floresta amazônica, ameaça o agronegócio brasileiro, fomenta inundações e grandes secas tanto no sudeste do Brasil, quanto aqui na Amazônia. O Nordeste vai ser muito mais árido do que hoje.”
Fearnside projeta que, com o aumento da temperatura mundial em uma média de 4,3 °C, a temperatura na Amazônia pode subir para até 6°C. “O Brasil precisa agir para combater o aquecimento global. Precisa assumir um papel de liderança no mundo nisso, já que o Brasil seria uma das grandes vítimas de mudanças climáticas e é um dos países que pode fazer mais para reduzir as emissões”, diz o pesquisador.
O cientista lamenta a direção contrária que o Brasil tomou nos últimos anos, com o desmonte da política ambiental, principalmente no Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Renováveis (Ibama), além da “enxurrada” de leis aprovadas ou que ainda tramitam no Congresso Nacional no sentido de enfraquecer os licenciamentos ambientais e legalizar o desmatamento e a grilagem de terras.
Philipe Fearside é uma das maiores especialistas em aquecimento global. Há anos ele enfatiza os riscos dos impactos causados pela ação humana. Ele não fez parte da equipe que elaborou o sexto relatório do IPCC, mas participou de grupos anteriores. Em 2007, ele foi num dos cientistas premiados pelo Nobel da Paz dado ao IPCC.
O último relatório do IPCC havia sido elaborado em 2013. Até o quinto relatório, os cientistas ainda eram, no mínimo, cautelosos em admitir de forma veemente a interferência humana como causa principal das mudanças climáticas e aquecimento global. No sexto relatório, os cientistas admitem com bastante contundência as ameaças para o planeta.
Em entrevista à Amazônia Real, o pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), Lincoln Alves – que fez parte da equipe de 234 cientistas responsáveis pela elaboração do sexto relatório -, chamou atenção para a linguagem utilizada. “O que chamou mais atenção, primeiro, foi a questão da linguagem onde ele é mais enfático, categórico. No quesito de atribuição, ele usa até uma terminologia: ‘inequívoco’ que a ação do homem tem modificado o sistema climático, causado o aquecimento global”, ressaltou o pesquisador à reportagem.
Lincoln Alves também chama ressaltou para a gravidade e o nível que o aquecimento global atingiu. “Quando você compara, hoje o relatório apresenta que o globo está em torno de 1.1 e o Acordo de Paris sugere limitar a 1.5. Então, quando você compara com 1.5 ou 2°C de aquecimento global, ou seja, 0.5 de diferença, esse aquecimento de 0.5 °C revela significativas mudanças; ou seja, um mundo 2°C mais quente fica muito vulnerável, e ele se revela principalmente na questão dos extremos climáticos”, explicou.
Os pesquisadores ouvidos pela Amazônia Real apontaram saídas, no que diz respeito às políticas públicas, para reverter os avanços do aquecimento global. Para Lincoln Alves, as ações em nível estadual e federal precisam passar pelo controle de desmatamento nos biomas brasileiros.
“É o carro chefe. A maior contribuição do país neste contexto. Como o Brasil não é um país industrializado comparado com Estados Unidos, China, Índia, a contribuição do Brasil para o aquecimento global, para a emissão dos gases do efeito estufa, deriva do desmatamento. Então, a primeira ação é cobrar dos tomadores de decisão políticas que venham controlar este desmatamento”, propõe.
A pesquisadora Natalie Unterstell, do Instituto Internacional de Políticas Públicas Talanoa, também aponta o desmatamento como a principal contribuição para o aquecimento global no Brasil. “O que esse cenário de aquecimento global nos diz, por um lado, são resultados do excesso de desmatamento que contribui para eles. Mas a própria mudança na temperatura, a própria mudança nos regimes de precipitação, pode acelerar este processo de colapso. Esse ponto de não retorno na floresta. Isso tem que deixar de cabelo em pé, isso deveria estar na pauta do dia. Já está como preocupação principal, de todos os governantes do Brasil, o da Amazônia, o federal ou de outros lugares porque se a Amazônia colapsar, todo mundo vai colapsar junto.”
O pesquisador indígena Dzoodozo Baniwa também reclama do atropelo às políticas ambientais no Brasil e as ameaças à proteção da floresta e das terras indígenas, consideradas barreiras contra os impactos causados pelo desmatamento e pela degradação ambiental. Outro fator apontado por Dzoodoo é a política governamental às medidas de retrocesso à política e à legislação ambiental no país, que se agravou sobretudo na gestão de Jair Bolsonaro (sem partido). “A política brasileira sobre o meio ambiente, a respeito das mudanças climáticas, é uma mostra que o nosso governo está desrespeitando a ciência. Os projetos de lei que estão sendo criados também vêm trazendo essas ameaças sistêmicas, sobretudo nos territórios indígenas, que ainda mantêm a maior área e cobertura vegetal.”
Em meio a um cenário de incertezas quanto às políticas ambientais e ameaças constantes à democracia, os povos indígenas precisam conviver com o desmatamento constante e o avanço das mineradoras em seus territórios, grupo que ganhou muita força nos últimos anos graças aos discursos do governo federal, sempre em favor do garimpo.
“A gente vê o interesse das mineradoras em nossos territórios. Se for assim, o nosso território basicamente – a terra indígena do Alto Rio Negro -, e principalmente na bacia do rio Içana, 90% do nosso território será comprometido. Então imagina o que representa isso na perspectiva ambiental: é praticamente a destruição de toda a cobertura vegetal, reserva que a gente vem mantendo tradicionalmente no nosso modo de vida e contribuindo para o equilíbrio do clima do planeta”, alerta Dzoodozo Baniwa.